MIGUEL BOYAYANNo final de 1998, poucos meses depois de instalar-se como professor visitante em um dos laboratórios da Universidade Harvard, Estados Unidos, o médico Antonio Bianco encontrou em músculos de primatas, incluindo os seres humanos, a mesma proteína com que havia trabalhado em ratos durante 15 anos na Universidade de São Paulo (USP). Trata-se da D2, como é chamada a enzima que ativa o principal hormônio produzido pela glândula tireóide e, a partir daí, acelera as reações que aumentam o consumo de oxigênio – ou, em termos práticos, a liberação de calor.
Sete anos mais tarde, já ocupando o cargo de diretor de pesquisas do laboratório de tireóide do Hospital Brigham and Women’s em Boston, afiliado à Universidade Harvard, Bianco descobriu dois mecanismos pelos quais o organismo pode regular a produção e a atividade dessa proteína. Essas descobertas, publicadas em dois artigos recentes da Nature e da Nature Cell Biology, podem levar a novas abordagens terapêuticas para combater a obesidade, freqüentemente associada ao diabetes tipo 2 – um sério problema para cerca de 300 milhões de pessoas e a causa de morte de 3 milhões de indivíduos por ano. À medida que sirvam como base para novos medicamentos, esses achados também podem contribuir para o tratamento de outras centenas de milhões de pessoas que sofrem de disfunções da tireóide.
Um dos mecanismos recém-descobertos que induzem a produção da D2 põe em cena a bile, um líquido esverdeado produzido diariamente durante a digestão que atraiu o interesse, primeiramente, dos filósofos, começando pelos gregos. Um deles, Hipócrates, dividia os fluidos corpóreos em quatro humores – bile negra, bile amarela, fleuma e sangüíneo -, equiparados a quatro elementos universais – terra, água, fogo e ar – e às estações do ano.
Para Hipócrates, as doenças resultavam de um desequilíbrio entre esses quatro humores. A despeito dessa popularidade, os sais biliares, principal componente da bile, não ganharam muita atenção durante séculos. Admitia-se que participassem exclusivamente da absorção de lípides – ou gorduras – e da eliminação do colesterol. Só há três décadas é que se descobriu que poderiam ter outras tarefas no organismo. De fato, mostrou-se que agem em outras reações químicas – e não só no fígado, onde são produzidos, ou no intestino, onde atuam na absorção das gorduras, mas também em outras partes do corpo. Lentamente, deixaram de ser apenas um agente emulsificador – uma espécie de detergente – de gorduras e ganharam status de hormônios multitarefas.
Em um estudo publicado em janeiro de 2006 na Nature, Bianco e pesquisadores de institutos da França e do Japão descrevem os resultados de um experimento que demonstra os efeitos, em camundongos, de uma dieta rica em sais biliares. Um deles é o aumento da atividade da enzima D2 no tecido adiposo marrom – um tecido especializado na produção de calor em pequenos roedores – e, como também se
demonstrou, no tecido muscular esquelético humano. Esse fenômeno não foi verificado nos roedores em que se bloqueou a ação do gene que leva à produção da enzima D2. Depois de ter sido acionada pelos sais biliares, a D2 acelera o metabolismo celular, com maior gasto energético, evitando a obesidade e o diabetes tipo 2, causado por uma deficiência da atuação da insulina.
Os pesquisadores concluíram que os ácidos biliares se ligam a moléculas específicas – os receptores – da superfície das células de gordura. Em resposta, aumenta a produção intracelular de moléculas sinalizadoras que acionam o gene da D2, uma sigla que significa desiodase das iodotironinas tipo 2. Esse é só o meio do caminho. Por sua vez, a D2 converte a tiroxina ou T4, um pró-hormônio da tireóide, no hormônio T3. É o T3 que inicia uma série de reações químicas que aumentam a atividade metabólica dos músculos e os fazem funcionar como o radiador dos carros, liberando calor.
“Trata-se de um mecanismo muito seletivo, que só funciona em células como as dos músculos esqueléticos, que contêm ao mesmo tempo os receptores específicos dos ácidos biliares e a D2”, diz Bianco. “Como resultado, aumenta o gasto de energia, sem modificar os níveis de hormônios tireoideanos na circulação ou os processos metabólicos em outras células”. Segundo ele, esses estudos demonstram o papel essencial dos ácidos biliares e dos hormônios da tireóide na regulação do organismo, também chamada de homeostase, “além de mostrar quanto a medicina dos gregos antigos já era sofisticada”.
Se esse primeiro mecanismo de produção da D2 implica a ativação do gene dessa enzima, o segundo mecanismo – descrito por Bianco em julho do ano passado em um artigo na Nature Cell Biology – depende essencialmente de uma proteína conhecida pela sigla WSB1, que, como ele verificou, controla o tempo de vida da D2. “Após reconhecer e se ligar à D2, a WSB1 auxilia na ligação de outra proteína, a ubiquitina, à D2”, explica Bianco. A estrutura da ubiquitina já havia sido caracterizada há três décadas, mas sua função só foi esclarecida recentemente. Em 2004, Aaron Ciechanover e Avram Hershko, ambos do Instituto de Tecnologia Technion, de Israel, dividiram o Prêmio Nobel de Química com Irwin Rose, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, por terem identificado os mecanismos de degradação de proteínas, que são destruídas após se ligarem com a ubiquitina.
Não é só a D2 que está marcada para morrer após ganhar uma ubiquitina – a maioria das proteínas produzidas pelas células tem o mesmo destino. “Uma característica muito importante desse mecanismo é que ele é regulável e altamente específico, pois exige a interação de uma ligase, tal com a WSB1, que faz a ligação entre a ubiquitina e a proteína que será marcada para degradação”, explica Bianco. A ubiquitina inativa a D2 e faz com que ela seja destruída em alguns minutos por outras enzimas. Por outro lado, uma D2 à qual não se ligou nenhuma ubiquitina permanece na célula por muitas horas.
Bianco mostrou também como uma outra proteína, a VDU1, reconhece, se liga e salva a D2 da degradação, retirando-lhe a ubiquitina. “É como um interruptor”, compara. Examinando esse mecanismo de liga e desliga, ele concluiu que, inibindo-se a ação da WSB1, a D2 poderia permanecer ativa por mais tempo – normalmente, sua meia-vida, como é chamado o tempo no qual se desfaz metade da quantidade de moléculas, varia de dez minutos, quando conjugada à ubiquitina, a cerca de cinco horas.
O controle desse mecanismo poderia não só acelerar a queima de gorduras. Por aumentar ou diminuir a conversão do pró-hormônio T4 para o hormônio T3, representaria também uma forma de ajudar a regular a quantidade de hormônio tireoideano em circulação no organismo. A falta de T4 e, por conseqüência, de T3, que caracteriza o hipotireoidismo, causa fadiga, perda de peso e de memória, intolerância ao frio, depressão ou irritabilidade, entre outros sintomas; seu excesso, o hipertireoidismo, acelera o ritmo cardíaco, provoca tremores e causa emagrecimento.
No hipotireoidismo, o organismo procura aumentar a atividade da D2, maximizando a conversão de T4 a T3. Essa transformação do pró-hormônio no hormônio ativo só é possível porque, nessas circunstâncias, a WSB1 deixa de se ligar com a D2, maximizando a produção de T3, como Bianco demonstrou por meio de experimentos em cultura de células e em camundongos. Já no hipertireoidismo, ocorre o contrário: a WSB1 parece procurar a D2 e, com mais intensidade, adiciona-lhe uma ubiquitina, evitando assim que ainda mais hormônio seja produzido.
À procura de uma semelhante
Bianco acredita que seja realmente viável a utilização desse conhecimento para gerar novas formas de tratamento médico – e já obteve nos Estados Unidos o registro da patente sobre o mecanismo de ligação dos ácidos biliares com o receptor das células musculares, que ativa a D2 e pode ser utilizado para tratamento contra diabetes e obesidade. Ele pretende encontrar uma molécula semelhante à dos ácidos biliares, que se ligue ao receptor celular e ative a D2 e a produção do hormônio T3 com o mínimo possível de efeitos colaterais.
“O tratamento prolongado com sais biliares não é recomendado, por causa de efeitos adversos”, alerta. “Estamos em contato com indústrias farmacêuticas, que se mostraram muito interessadas em licenciar nossa patente”.
Ele não é o único brasileiro trabalhando no laboratório de tireóide do Hospital de Boston que abriga essas pesquisas. Nos últimos anos passaram por lá, sob sua orientação, Rogério Ribeiro e Cyntia Curcio, pós-graduandos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Luciane Capelo, da USP, e Miriam Ribeiro, professora de fisiologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Neste momento estão lá Marcelo Christoffolete e Beatriz Freitas, da Unifesp, e o pós-doutorando Wagner Seixas da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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