ROBERTO DE BIASI / DIVULGAÇÃOComeçou um experimento inédito que vai literalmente às nuvens com o propósito de desvendar um dos estranhos fenômenos associados aos relâmpagos, os sprites – efeitos luminosos débeis que duram pouquíssimo tempo, de 5 a 300 milissegundos, e aparecem durante as tempestades. No final de novembro, um balão de 40 metros de altura partiu de Cachoeira Paulista, a meio caminho entre São Paulo e o Rio de Janeiro, como parte de um projeto conjunto realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e as universidades norte-americanas de Washington e Utah.
Até 21 de dezembro, outros três balões não-tripulados deixarão as amarras e subirão até 30 quilômetros de altitude, carregando instrumentos que devem analisar as emissões de raios X e de luz visível dos sprites – um termo ainda não traduzido, que em inglês significa duende, fada ou fantasma. Monitorando os balões da terra ou de aviões, os pesquisadores tentarão, pela primeira vez, chegar perto o suficiente – menos de 100 quilômetros, se os ventos ajudarem – para caracterizar a intensidade dos campos elétrico e magnético que esses fenômenos geram numa faixa da atmosfera acima das tempestades – que nas regiões tropicais se concentram a até 15 quilômetros do solo – e abaixo da zona em que geralmente ocorrem os sprites, numa camada da atmosfera situada entre 40 e 90 quilômetros acima do solo, a mesosfera. “O fenômeno, que se manifesta numa região elevada da atmosfera, está sempre associado a um raio numa porção inferior”, explica Osmar Pinto Júnior, do Inpe, e coordenador da parte brasileira do projeto. “Pretendemos ver o que acontece nessa faixa intermediária.”
Num estudo semelhante, realizado em 1999 com balões que sobrevoaram os estados de Iowa e Texas (EUA) tentou-se fazer essa análise, mas sem sucesso, segundo o físico norte-americano Robert Holzworth, da Universidade de Washington e um dos coordenadores do estudo atual, financiado pela FAPESP e pela National Science Foundation (NSF), dos Estados Unidos. “Os balões ficaram a mais de 300 quilômetros dossprites . A essa distância é impossível fazer as medições que pretendemos realizar”, comenta Holzworth, que esteve no Rio de Janeiro no início de novembro durante o 3º Workshop Brasileiro de Eletricidade Atmosférica (WAE), organizado pelo Grupo de Eletricidade Atmosférica do Inpe.
Se tudo correr bem, os balões darão pistas para reforçar as teorias que procuram explicar como os sprites se formam e permitirão descobrir se esses flashes de luz, que surgem durante grandes tempestades, têm características diferentes nos trópicos, onde ocorrem 70% dos temporais. Atualmente, os estudos sobre esses efeitos luminosos se concentram nos Estados Unidos por um motivo simples: nove de cada dez sprites aparecem sobre o território norte-americano, especificamente no centro-oeste do país, embora astronautas em ônibus espaciais tenham detectado essas descargas elétricas em outras regiões do planeta – inclusive perto de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 1994.
Aviões e mísseis
Além de trazer avanços teóricos, conhecer em detalhe as características dessas descargas elétricas pode influenciar, no futuro, a aviação comercial caso os vôos hipersônicos se tornem realidade, segundo Pinto Júnior. Hoje os aviões civis viajam a cerca de 10 quilômetros de altitude e a 900 quilômetros por hora. Com aviões hipersônicos, pretende-se atingir velocidades dez vezes mais altas, mas, para isso as aeronaves teriam de voar a 20 quilômetros do solo. Isso se torna importante, uma vez que observações recentes, feitas com câmeras mais sensíveis, indicam que os sprites ocorrem também – com intensidade menor, é verdade – em camadas muito mais baixas da atmosfera, a altitudes inferiores a 30 quilômetros, pouco acima das tempestades. Segundo o pesquisador do Inpe, o estudo do fenômeno desperta ainda interesse militar, principalmente nos Estados Unidos, pois se acredita que a radiação emitida pelossprites seja semelhante à de mísseis nucleares.
Previstos em 1925 pelo físico escocês Charles Rees Wilson (1869-1959), que recebeu o Nobel em física em 1927, esses fenômenos são considerados recentes: a equipe do pesquisador aposentado Jack Winkler filmou um sprite pela primeira vez apenas em 1988, durante uma noite sem luar no Estado de Minnesota (EUA). Publicados no início dos anos 90, os primeiros artigos científicos ainda não ligavam esses fenômenos aos relâmpagos. Desse modo, a variedade de formas e de estruturas – colunas ou águas-vivas, que atingem até 30 quilômetros de altura e 40 quilômetros de extensão – determinou a escolha de um nome sem nenhuma associação física. Hoje já se sabe que os sprites geralmente aparecem quando ocorre uma tempestade de grande porte, associados a relâmpagos que partem da nuvem para o solo.
Um dos modelos teóricos atuais sugere que os sprites decorrem do campo elétrico gerado entre os dois pólos que se formam dentro de uma nuvem de tempestade – o positivo, próximo ao topo da nuvem, e o negativo, na base – e a conseqüente ionização da camada isolante, formada logo acima da nuvem. Quando ocorre um raio positivo, esse pólo é temporariamente esvaziado e, como conseqüência, as cargas restantes geram um campo elétrico na mesosfera – eis o sprite. Mas pode não ser assim. Se o campo elétrico sozinho não for capaz de gerar a ionização e criar o fenômeno, ganha força o outro modelo, segundo o qual o campo elétrico apenas aceleraria elétrons oriundos dos raios cósmicos, que então ionizariam o meio e criariam o sprite. Caso os experimentos com os balões detectem a emissão de raios X, ganhará força esta última hipótese, já que esses elétrons emitem essa forma de radiação quando freados pela atmosfera.
Calor e poluição
O encontro no Rio de Janeiro não se restringiu aos sprites. Cerca de 200 físicos e engenheiros discutiram ainda outro fenômeno para o qual não há respostas claras: a incidência de raios dez vezes maior sobre os continentes do que sobre os oceanos, conforme os levantamentos feitos nos últimos anos com auxílio do satélite Tropical Rainfall Measuring Mission (TRMM), da Nasa, a agência espacial norte-americana. Há outra coisa intrigante: formam-se duas vezes mais raios sobre as cidades do que sobre as áreas desertas, de acordo com levantamentos recentes realizados por centros distintos, como o Inpe e a Universidade do Texas. Duas hipóteses tentam explicar essas diferenças: a poluição ou o perfil de temperatura e umidade da atmosfera.
Embora não exista consenso, os indícios sugerem que a maior umidade sobre os oceanos seja responsável pela menor ocorrência de raios, enquanto a maior capacidade de retenção de calor dos solos – principalmente nos centros urbanos com mais de 100 mil habitantes, onde há concentração de asfalto e concreto – favoreceria a formação de correntes de ar quente ascendentes, as termais, responsáveis por conduzir vapor d’água para a mesosfera, onde se condensa em nuvens eletricamente carregadas sobre os continentes, onde se originam os raios.
A equipe do Inpe, após cruzar as informações dos satélites com dados de sensores de raios instalados em solo, produziu o primeiro mapeamento rigoroso de descargas elétricas que atingem o solo no Brasil. Esse novo mapa, segundo Pinto Júnior, poderá substituir o atualmente adotado pelas normas brasileiras de proteção contra descargas elétricas (NBR 5419), feito com precisão bem menor: um observador anotava somente os trovões que ouvia durante uma tempestade, o que não corresponde ao número de raios que efetivamente caíam na região.
Apresentado pela primeira vez no evento do Rio, o novo mapa coloca o Brasil como um dos campeões mundiais de ocorrência total de raios por ano. Calcula-se que entre 50 milhões e 70 milhões de descargas elétricas atinjam o país anualmente – o dobro do total detectado nos Estados Unidos, um país de dimensões semelhantes. Mesmo no cômputo do número relativo de descargas elétricas por quilômetro quadrado por ano (raios/km2/ano), o Brasil não fica muito atrás dos campeões, as nações centro-africanas, muito menores, mas onde a taxa de raios que caem no solo ultrapassa 20 raios/km2/ano. Por aqui, esse índice atinge até 16 raios/km2/ano, o que não é nada bom, por causar prejuízos anuais de até US$ 200 bilhões, além de 100 a 150 mortes.
O trabalho traz outra novidade. Os mapas anteriores indicavam a Amazônia como a região do país onde ocorre a maior incidência de descargas elétricas por área durante o ano. Agora não mais. De acordo com o novo mapa, as áreas mais atingidas são o sul do Mato Grosso do Sul e a porção oeste do Rio Grande do Sul – com índices de 16 raios/km2/ano. Justamente para prevenir os danos causados pelas descargas elétricas, a equipe do Inpe desenvolveu nos três últimos anos um detector de relâmpagos. Com o tamanho de uma caixa de 40 centímetros, o equipamento, produzido e patenteado pela empresa Indeleth, financiadora de parte da pesquisa, dispara um alarme sonoro e visual quando detecta tempestades distantes até 60 km. Apresentado no encontro do Rio, começa a ser vendido este mês por R$ 1.500, metade do preço dos importados. Instalado em parques e indústrias, poderá ajudar a salvar vidas e reduzir acidentes.
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