Uma pequena revolução pode acontecer nas usinas de açúcar e álcool do país. Se incorporarem uma nova tecnologia desenvolvida no Centro de Tecnologia (CTC) da Cooperativa de Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar), em Piracicaba, elas serão capazes de elevar a produção de álcool em cerca de 30% sem a necessidade de plantar um único pé de cana a mais. O que parece mágica é, na verdade, resultado do aproveitamento total da biomassa da cana, mais precisamente do bagaço. Estima-se que sejam moídos 300 milhões de toneladas de cana por ano no país, resultando em 81 milhões de toneladas de bagaço.
Desse total, cerca de 70 milhões são queimados em caldeiras para produção de energia elétrica para abastecimento das próprias usinas. Com o aproveitamento de 50% da palha de cana, atualmente queimada ou deixada no campo, podem ser liberados 35 milhões de toneladas de bagaço para a produção de álcool. Somadas aos 11 milhões que já sobram, será possível produzir 5,4 bilhões de litros de álcool por ano, o que corresponde a cerca de 30% da oferta atual. A produção de energia elétrica não ficaria prejudicada desde que grande parte das caldeiras existentes fossem substituídas por outras mais modernas e eficientes, que aproveitam melhor a queima do bagaço e da palha.
A nova tecnologia é resultado de duas décadas de estudos, num trabalho conjunto entre pesquisadores da Copersucar e do Grupo Dedini, um dos maiores fabricantes de máquinas e equipamentos para o setor sucroalcooleiro. Eles conseguiram comprovar que é possível fabricar álcool etílico (etanol) carburante a partir do bagaço de cana, por meio de um processo batizado de Dedini Hidrólise Rápida (DHR). Esse processo já se mostrou eficaz em ensaios laboratoriais e num protótipo em escala piloto no CTC e está pronto para ser testado em escala industrial. Se tudo der certo, a nova tecnologia estará disponível para as usinas brasileiras a partir do segundo semestre de 2003.
“Estamos confiantes de que essa nova técnica, até então inédita em termos industriais, será bastante positiva para o país”, conta o engenheiro químico Carlos Eduardo Vaz Rossell, coordenador do projeto na Copersucar. “Todos os países desenvolvidos estão perseguindo essa tecnologia, de transformar biomassa vegetal em combustível.” Para ele, o processo DHR poderá fornecer álcool a custos competitivos, utilizando uma matéria-prima já existente e liberando mais caldo de cana para produção de açúcar. “A técnica possibilitará o aproveitamento do bagaço com o máximo de sinergia com as condições atuais: mesmo local de produção, mesmo produto e mesmos empresários investidores”, diz Vaz Rossell.
A inovação surge num momento em que o governo federal, usineiros e fabricantes de automóveis tentam novamente, depois de muitas tentativas ao longo da última década, se entender para elaborar o renascimento do Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Criado em 1975, para substituir, a preços baixos, a gasolina fortemente impactada com a crise mundial de abastecimento de petróleo em 1973, o Proálcool atingiu o sucesso entre 1984 e 1986, quando a porcentagem de automóveis saídos das montadoras de veículos com motor a álcool atingiu 96%.O programa começou a fazer água no final dos anos 80, quando a cotação internacional do petróleo começou a baixar e a relação vantajosa de preço entre o álcool e a gasolina, de até 40%, reduziu-se até cair pela metade. Ao mesmo tempo, os usineiros reduziram a fabricação de álcool e elevaram a de açúcar, cujos preços internacionais estavam mais atraentes. O resultado, todo mundo conhece: longas filas para abastecer, a perda de confiança do consumidor no combustível e a conseqüente desaceleração do Proálcool. Hoje, apenas 1% dos carros novos sai da fábrica com esse combustível.
Outro fator que prejudicou o Proálcool foram os excessivos subsídios aos usineiros. O governo comprava álcool por um preço mais elevado do que vendia para os postos de combustível, mantendo assim o valor diferenciado em relação à gasolina. No início dos anos 90, os incentivos do governo para o setor sucroalcooleiro haviam consumido cerca de US$ 11 bilhões, segundo números divulgados em reportagens das revistas Carta Capital e Isto É Dinheiro, em edições do mês de maio deste ano.
“A manutenção da política de preços, ancorada em subsídios, durou muito tempo e foi um dos fatores limitantes do programa”, afirma o economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-secretario de assuntos econômicos do Ministério da Fazenda, e ex-secretário estadual de Ciência e Tecnologia, na década de 80. “O Proálcool era bom, mas os subsídios dados no início deveriam ter sumido ao longo do tempo para o programa tornar-se competitivo. Eles eram muito onerosos para o governo”, diz Belluzzo, que vê com bons olhos a revitalização do programa. “O Proálcool traz segurança para o país na eventualidade de ocorrerem problemas no mercado do petróleo.”
O governo federal já acenou com um sinal verde para uma nova era do álcool como combustível, desde que os incentivos fiscais, comuns no início do programa, sejam esquecidos. O ministro Sérgio Amaral, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em nota à imprensa após uma reunião com usineiros, em maio, disse que o Proálcool vai depender do mercado e da garantia, dos usineiros aos consumidores, de que não faltará álcool. “É preciso que governo, usineiros e fabricantes de automóveis reúnam-se para estabelecer metas e condições que dêem sustentabilidade ao projeto, principalmente na questão da oferta. Quem não cumprir sua parte, deve ser punido”, diz o economista Luciano Coutinho, professor do IE da Unicamp e primeiro-secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia quando de sua criação, em 1985.
“Não pode ser como no passado, uma política do oba-oba que foi acompanhada por uma expansão maluca da frota sem planejamento de oferta e demanda”, completa Coutinho. Para ele, se os erros do passado forem corrigidos, não há nenhum problema na revitalização do programa. O economista sugere, para o estímulo do uso do combustível, que parte da frota seja equipada com motores flexíveis álcool-gasolina e que utilitários e lotações funcionem com álcool ou gás.A maior oferta de carros a álcool, para os usineiros, é um fator essencial para a revitalização do programa. “Excesso de produção de etanol, nós temos. Precisamos retomar a produção de carros a álcool a fim de utilizar o combustível para o mercado interno”, diz Eduardo Carvalho, presidente da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo. “O momento é ideal para revitalizar o programa.”
O governo federal tem também planos ambiciosos de exportar o produto para o resto do mundo. Segundo estudos feitos pela Copersucar, a demanda de álcool no mercado externo é alta e tende a crescer ainda mais, impulsionada por problemas relacionados ao suprimento de petróleo e à poluição nas grandes metrópoles – como se sabe, o álcool é um combustível com enormes vantagens ambientais quando comparado à gasolina. Na Europa, estima-se que o consumo chegue a 4,5 bilhões de litros por ano em 2005. Já nos Estados Unidos, a demanda atingirá 11,9 bilhões de litros em dois anos – hoje, a produção americana de etanol, extraído do milho, está em torno de 5 bilhões de litros. Lá, o consumo crescerá em função da utilização do álcool como aditivo à gasolina e pelo seu uso em automóveis com motores flexíveis a álcool e gasolina.
A estratégia do governo de exportar álcool também conta com o apoio dos dois economistas, embora eles creiam que não será fácil. “Não acredito que, hoje, os Estados Unidos comprem nosso álcool”, diz Coutinho. “É praticamente impossível vender para os americanos, já que o país tem fortes barreiras alfandegárias para proteger o álcool deles, que é produzido a partir de cereais”, complementa Belluzzo. “A alternativa seria exportar o combustível para Europa, China ou Índia”, afirma o economista.
Apoio da FAPESP
O aquecimento do mercado mundial é encarado com entusiasmo pelo governo e dirigentes do setor. Além de ser o maior produtor de açúcar do mundo, com 33% do mercado, o Brasil domina como ninguém a tecnologia de produção de álcool a partir da cana-de-açúcar. Dos 15,4 bilhões de litros de álcool produzidos no país por ano, 9,7 bilhões são de álcool hidratado e 5,7 bilhões de álcool anidro, aquele que vai misturado à gasolina, hoje num patamar de 24%. São Paulo, com 57% do volume fabricado, é o maior centro produtor e a Copersucar, com suas 35 usinas filiadas, responde por 22% da produção nacional.
Com um cenário favorável para a retomada no Brasil do uso do álcool como combustível, a nova tecnologia criada pela Dedini e Copersucar tem tudo para ser um sucesso. No começo deste ano, elas obtiveram apoio financeiro da FAPESP para implantar uma unidade de desenvolvimento de processo (UDP), que funcionará anexa à Usina São Luiz, em Pirassununga, pertencente à Dedini. É nela que a nova tecnologia DHR é testada em escala industrial. O valor total do projeto, que faz parte do programa Parceria para a Inovação Tecnológica (PITE), chega a R$ 3,58 milhões, sendo que a Fapesp entrou com R$ 1,76 milhão; a Dedini, com R$ 1,32 milhão; e a Copersucar, com R$ 500 mil.
O desenvolvimento do processo demandou grande esforço por parte dos pesquisadores. A Dedini começou a estudar a hidrólise (reação química com a água) do bagaço de cana no início dos anos80 e desenvolveu o processo DHR em 1993. Mas somente em 1997, quando assinou um acordo de cooperação técnica com a Copersucar, que já vinha acompanhando vários estudos relacionados a novos usos do bagaço, a empresa atingiu resultados promissores. A partir daí, uma unidade piloto da Dedini, com capacidade para processar 20 quilos de bagaço por hora, foi transferida para o CTC, em Piracicaba. “Os resultados verificados nessa planta experimental foram muito importantes”, conta o pesquisador Vaz Rossel, que também é coordenador do projeto do PITE. “Agora, com a montagem da unidade semi-industrial, financiada com recursos da FAPESP, poderemos fazer a avaliação técnica e econômica do processo.”
Solventes orgânicos
A nova UDP ampliará a fabricação para 5 mil litros de álcool por dia, produzidos em regime contínuo, o que equivale a cerca de 50 toneladas de bagaço. Ainda é pouco quando comparado a uma unidade industrial final, que deverá fabricar 100 mil litros por dia, mas será essencial para avaliar o comportamento dos materiais e dos equipamentos em processamento em condições reais de operação. “A UDP é fundamental para demonstrar a confiabilidade do processo e sua viabilidade econômica”, afirma Vaz Rossel.
A unidade de demonstração é relativamente simples. Formada por um reator, que opera sob pressão de 25 a 27 kg/cm2 e temperatura próxima a 190 graus, ela é continuamente alimentada por bagaço e por um hidrossolvente orgânico (etanol, preferencialmente, embora outros, como acetona, ácido acético, metanol possam ser empregados) misturado a ácido sulfúrico. É essa mistura que fará a transformação da celulose presente no bagaço em glicose. Em seguida, o xarope de glicose é purificado, para retirada de substâncias indesejadas, principalmente ácido sulfúrico, e recebe a adição de nutrientes, resultando num mosto fermentável que será misturado ao caldo e ao melaço usado normalmente para a fabricação do álcool. O restante do processo – fermentação e destilação – é realizado nas instalações já existentes na própria usina.
“A grande vantagem do processo DHR é sua rapidez”, afirma o engenheiro químico Antônio Hilst, o consultor da Dedini que inventou a técnica. “A transformação ocorre em apenas dez minutos, ao passo que os processos clássicos de hidrólise que recorrem a ácidos concentrados ou diluídos demoram pelo menos cinco horas.” Para entender como a mágica da transformação acontece, é preciso antes saber que o bagaço de cana é uma biomassa vegetal composta basicamente de três substâncias: celulose, hemicelulose e lignina, presentes numa proporção aproximada de 50%, 30% e 20%, respectivamente. O fracionamento da celulose para produção de açúcar é muito difícil por causa da presença da lignina, que funciona como uma teia protetora, compactando e unindo os demais polímeros vegetais. Graças a ela, a fibra da cana é muito resistente nos aspectos mecânicos e químicos.
No processo DHR, o bagaço permanece dentro do reator o tempo necessário para que ocorra a dissolução da lignina e a hidrólise da celulose. “No final do processo, pretendemos atingir um rendimento de cerca de 60% sobre o açúcar contido no bagaço”, explica o engenheiro Hilst. Isso significa dizer que 60% da celulose presente no bagaço deverá virar glicose. “Com esse teor de açúcar, temos condições de garantir uma fermentação e uma destilação completamente viável do ponto de vista econômico”, afirma o pesquisador da Dedini.
A glicose é apenas uma das substâncias resultantes do beneficiamento. Além dela, são extraídos do bagaço outros subprodutos, como metanol, ácido acético, lignina e furfural, cujo uso comercial poderá aumentar ainda mais a rentabilidade do processo. “A lignina, por exemplo, poderá ser usada como pré-polímero em resinas e na fabricação de aglomerados de madeira (com adesivos) ou empregada como combustível, graças ao seu alto valor calorífico”, exemplifica Vaz Rossel. Já o furfural, que estará disponível em grande quantidade (15 quilos por tonelada de bagaço), poderá ser utilizado na fabricação de náilon. Tudo vai depender do interesse do mercado.
Propriedade intelectual
Os pesquisadores avaliam que, para viabilizar essa nova tecnologia, as usinas deverão investir nos novos módulos industriais DHR aproximadamente R$ 0,90 por litro por ano de capacidade instalada. Uma unidade com produção estimada de 100 mil litros por ano custará em torno de R$ 9 milhões. Pelos cálculos da Copersucar e da Dedini, o investimento para aproveitamento de todo bagaço que estará disponível quando a tecnologia for introduzida no mercado será de cerca de R$ 4,9 bilhões. A estimativa é de que sejam criados pelo menos 5 mil empregos diretos com a nova tecnologia.
A Dedini já depositou vários pedidos de patente referentes ao processo DHR no Brasil, sendo que duas já foram concedidas e outras se encontram sob análise. No exterior, foram solicitadas patentes em alguns países da Europa e no Japão, sendo que nos Estados Unidos a patente principal já foi concedida. “A propriedade industrial pertence aos três parceiros e a repartição dos lucros se dará na proporção da participação de cada um deles no processo”, afirma Vaz Rossell. “A Dedini receberá cerca de 60% da receita líquida da venda da licença do processo, enquanto a Copersucar ficará com 30% e a FAPESP, com 10%”, conclui. Assim, está firmada mais uma parceria de desenvolvimento tecnológico de sucesso. Espera-se, agora, que a DHR possa ser um novo e importante ingrediente para a retomada do Proálcool.
Gasolina ou álcool? Os dois.
Os veículos com motor flexível ou flex-fuel podem ser um importante aliado para a reativação do Proálcool. Com ele, é possível abastecer o automóvel com álcool e gasolina simultaneamente, misturados em qualquer proporção ou mesmo puros. Ao contrário dos sistemas antigos, que operavam com sensores instalados na linha de combustível do motor, antes da queima, ele utiliza um sensor de pós-combustão, que avalia o nível de oxigênio resultante da queima e realimenta o módulo de injeção eletrônica com informação sobre o combustível disponível no tanque. A grande vantagem para o consumidor é que ele poderá desfrutar o preço mais baixo do álcool com a garantia de também poder encher o tanque com gasolina, no caso de desabastecimento do primeiro.
De olho nesse promissor nicho de mercado, a Ford saiu na frente e apresentou, em maio passado, o protótipo de um Fiesta com motor flexível gasolina-álcool, desenvolvido pela Visteon, uma empresa da Ford sediada nos Estados Unidos. Quatro protótipos já estão sendo testados nas ruas. Mas a direção da fábrica já avisou: só produzirá o carro em escala industrial caso o novo Proálcool deslanche. A GM também está desenvolvendo um modelo flexível do Vectra.
Apesar de estar ocupando agora as manchetes de jornais, a tecnologia de motores flexíveis não é nenhuma novidade. Em 1992, engenheiros da indústria de autopeças Bosch, sediada em Campinas, iniciaram estudos para fabricação de um motor flexível e, dois anos depois, apresentaram o protótipo de um Ômega, da GM. A Magnetti Marelli, empresa do grupo Fiat que fabrica sistemas de injeção de combustível, também domina a tecnologia. “A Bosch já investiu cerca de R$ 2 milhões no desenvolvimento desse novo motor”, afirma Besaliel Botelho, diretor de sistemas de injeção da empresa. Nas previsões elaboradas na empresa, o motor flexível não adentrará ao mercado de um dia para outro, mas somente após um ou dois anos após a aprovação da tecnologia pelo governo. Será necessário, afirmam os engenheiros da indústria alemã, uma série de modificações no processo industrial, como a proteção de componentes do motor contra a corrosão causada pelo álcool. Segundo a Bosch, além da flexibilidade nahora do abastecimento, essa nova linha de motores tem outro benefício: a reduzida emissão de poluentes.
“O álcool é um combustível extremamente benéfico do ponto de vista ambiental”, diz a ex-diretora da Cetesb Laura Tetti, atual coordenadora da Câmara de Mudanças Climáticas do Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. “Trata-se de uma energia renovável e muito menos poluente do que a gasolina. A poluição gerada pelo álcool, nas emissões que saem dos escapamentos dos carros, é menor e menos reativa”, assegura. Os carros a álcool emitem 50% a menos de monóxido de carbono (CO). Assim, o álcool não contribui para agravar o chamado efeito estufa, o gradual aquecimento da Terra provocado pela queima de combustíveis fósseis.
O projeto
Processo DHR (Dedini Hidrólise Rápida) – Projeto, Implantação e Operação da Unidade de Desenvolvimento de Processo (nº 00/13185-9); Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (PITE); Coordenador Carlos Eduardo Vaz Rossell – Copersucar; Investimento R$ 1.822.100,00 (Codistil-Dedini) e R$ 1.751.487,00