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Biologia evolutiva

Os pioneiros da América do Sul

Gambás e outros marsupiais brasileiros antecedem os cangurus australianos na escala evolutiva

Catita Marmosa sp./Thylamys) na caatinga, no Parque Nacional da Serra de Capivara

FABIO COLOMBINICatita (Marmosa sp./Thylamys) na caatinga, no Parque Nacional da Serra de CapivaraFABIO COLOMBINI

Entre levantamentos bibliográficos, análises em laboratório e coletas de campo, a jornada diária de trabalho pode chegar a 12 horas. É cansativo, mas o esforço extra se justifica: até o final de 2012, Ariovaldo Cruz Neto, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, pretende recolher informações preciosas sobre o metabolismo energético – produção e gasto de energia, basicamente – de dez espécies de marsupiais que vivem na América do Sul. Do outro lado do planeta, pesquisadores australianos que participam do projeto aceleram o passo e querem contribuir com descrições de outras trinta espécies que vivem por lá.

“Na literatura internacional, já compilamos informações para um banco de dados com trabalhos sobre cerca de 70 espécies, feitos nas três últimas décadas. Com as novidades, vamos ultrapassar a centena”, comemora Cruz Neto. Ele explica que conhecer hábitos de consumo e identificar como os marsupiais acumulam e queimam energias é fundamental para compreender as relações que estabelecem com o meio em que vivem, como se adaptam a diferentes condições de clima, como respondem à disponibilidade de recursos naturais, de que maneira partilham seus nichos com espécies similares, além dos hábitos reprodutivos. A partir desses dados, torna-se possível simular como se comportariam em cenários de dificuldades e de rupturas, como mudanças climáticas, fragmentação do hábitat ou presença de predadores ou de espécies exóticas.

“O metabolismo energético é uma medida altamente integrativa e representativa, que exprime tanto a pressão que o ambiente exerce sobre o animal como as respostas que os bichos desenvolvem para sobreviver naquele hábitat”, define o pesquisador da Unesp. “Além disso, observando e comparando o funcionamento do metabolismo, conseguimos colaborar com o entendimento da história evolutiva das espécies e construí-mos relações de parentesco”, completa. Ainda que preliminares, os estudos desenvolvidos pelo grupo coordenado por ele sugerem que os marsupiais da América do Sul são os pioneiros na escala evolutiva – os australianos vieram depois e são parentes mais jovens daqueles que vivem no continente americano.

O enredo científico até aqui apurado pela equipe de Cruz Neto, sempre em parceria com os australianos, indica que os marsupiais surgiram na América do Sul, há aproximadamente 160 milhões de anos. Por conta da competição estabelecida com os vorazes roedores (ratos, esquilos, castores e até a capivara), procuraram refúgio em nichos chamados de baixa energia, onde desenvolveram dietas à base principalmente de pequenos insetos, o que foi suficiente para dar conta das necessidades de sobrevivência deles e para sustentar o metabolismo mais lento que caracteriza os marsupiais. A maioria das quase 90 espécies da América do Sul pesa entre 10 gramas e 1 quilograma e vive geralmente em florestas. Os mais conhecidos são o gambá, a cuíca e a catita.

Há 60 milhões de anos, por trechos da Antártida que foram usados como pontes (os continentes estavam ainda bem mais próximos), começaram a chegar à Austrália. Como não encontraram competidores que precisassem enfrentar por lá, tiveram liberdade para explorar outros ambientes, como túneis, florestas mais úmidas e até desertos, diversificando a dieta e alimentando-se, além de insetos, de açúcares, néctar, frutos e até de carne. A Austrália abriga atualmente quase 200 espécies de marsupiais. A mais conhecida é o canguru, que pode alcançar o tamanho de um homem adulto e pesar até 70 quilos. No entanto, explica Cruz Neto, essa diversificação morfológica não significou mudanças no metabolismo energético. “O padrão fisiológico de baixo consumo e gasto foi mantido como marca da espécie. Nesse sentido, não houve pressão de seleção”, reforça.

Na revista Pesquisa FAPESP nº 179, de janeiro de 2011, o pesquisador da Unesp conta que, depois de concluir as análises sobre os metabolismos de duas espécies de cuíca da América do Sul (Gracilinanus agilis e Micoureus paraguayanus), constatou que a primeira apresentou temperatura corporal média de 33,5 graus Celsius; a outra, de 33,3 graus Celsius. Foi avaliada também a taxa metabólica basal, índice que mostra o nível mínimo de energia de que o animal necessita para manter em bom funcionamento as funções vitais do corpo. Para alcançar esse número, as espécies gastam, respectivamente, 4,8 quilocalorias (kcal) e 5,5 kcal por dia. Ao comparar os números encontrados, Cruz Neto confirmou que tanto a temperatura corporal quanto a taxa metabólica eram muito parecidas com as verificadas em marsupiais australianos que já tinham sido estudados e descritos. Segundo o pesquisador, é como se os marsupiais tivessem uma mala com roupas que lhes permitissem viver em diferentes ambientes. “Uma vez marsupial, sempre marsupial, apesar das evoluções diferentes”, sentencia.

Estudo feito por pesquisadores da universidade alemã de Münster e publicado pela PLoS Biology em julho de 2010 conseguiu revelar que o pequeno monito del monte (Dromiciops gliroides), que pesa apenas 25 gramas e vive nas matas do Chile e da Argentina, é provavelmente o ponto de encontro, o ancestral vivo mais antigo e comum aos dois grupos – é encontrado na América do Sul, mas é fisicamente muito mais parecido com os representantes australianos do grupo.

A dispersão pelos continentes fez surgir ainda exclusividades. A cuíca-d’água (Chirnonectes minimus), que mede 30 centímetros, tem cauda longa e manchas negras espalhadas pelo corpo acinzentado, é uma espécie aquática; já a cuíca-de-cauda-grossa (Lutreolina crassicaudata), parecida com a lontra, é semiaquática. As duas são encontradas apenas na América do Sul. Por outro lado, são endêmicas da Austrália a Tarsipes rostratus, popularmente conhecida como gambá do mel, por se alimentar de néctar, e o Sarcophilus harrisii, o famoso e temido demônio da Tasmânia, que é carnívoro e recebeu o apelido justamente por ameaçar os rebanhos domésticos das regiões onde vive. “Nenhum marsupial da América do Sul segue essas dietas”, diz Cruz Neto, reforçando que os dados são ainda preliminares e que detalhes ainda mais precisos poderão surgir até o final do ano, quando espera concluir e publicar os estudos.

O Projeto
Energética de morcegos: bases estruturais e significado funcional da taxa metabólica basal (nº 2000/09968-8) (2001-2004); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenador Ariovaldo Pereira da Cruz Neto – Unesp; Investimento R$ 441.455,78

Artigos científicos
ASTÚA, D. Cranial sexual dimorphism in New World marsupials and a test of Rensch’s rule in Didelphidae. Journal of Mammalogy. v. 91, n. 4, p. 1011-24. 2010.
COOPER, C.E.; WITHERS, P.C.; CRUZ-NETO, A.P. Metabolic, ventilatory and hygric physiology of a South American marsupial, the long-furred woolly mouse opossum. Journal of Mammalogy. v. 91, p 1-10. 2010.

De nosso arquivo
Os mamíferos da discórdia – Edição nº 192 – fevereiro de 2012
Buenos días, cangurus
– Edição nº 179 – janeiro de 2011

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