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Biodiversidade

São Paulo na Amazônia

Equipes paulistas e paraenses colaboram na formação de novos pesquisadores e em estudos sobre animais venenosos da região Norte

Salamanta ou jiboia vermelha (Epicrates cenchria crassus), Amazonas, 1989

FABIO COLOMBINISalamanta ou jiboia vermelha (Epicrates cenchria crassus), Amazonas, 1989FABIO COLOMBINI

“Lembro bem quando apresentei o projeto aqui no Butantan, em 2005, e um colega disse que, se conseguíssemos formar um doutor, a missão estaria cumprida”, rememora Ana Moura da Silva, responsável pela integração das equipes paraenses com os pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas (INCT-Tox), sediado no Instituto Butantan, e coordenadora do Subprograma Ações da Amazônia do programa de pesquisas Butantan na Amazônia. “Conseguimos formar novos pesquisadores e já estamos com uma perspectiva muito maior.”

Houve avanços notáveis nas áreas de biologia, bioquímica e farmacologia, entre os quais Ana Moura enumera: o levantamento da diversidade de serpentes e escorpiões da Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, próxima de Santarém; uma revisão da classificação e a ampliação da diversidade de aranhas neotrópicas do grupo Haplogynae; o detalhamento dos efeitos farmacológicos do veneno do escorpião Tityus paraensis; o estudo de plantas usadas como antídotos contra picadas de cobras na Amazônia, vistas como possível matéria-prima para inibidores de toxinas animais; na área médica, a ampliação do conhecimento sobre os sintomas e a evolução do envenenamento por toxinas animais, por meio dos relatos e do acompanhamento de casos de pessoas atendidas no hospital municipal de Santarém, e estudo da história da saúde em Belterra, no Pará.

O trabalho chegou a esses resultados, mais do que se previa inicialmente, porque conseguiu aproximar experientes pesquisadores do Instituto Butantan e especialistas antes dispersos nos centros de pesquisa do Pará. Os pesquisadores que agora trabalham em conjunto lembram que Otávio Mercadante, diretor do instituto e coordenador do programa na época de sua implantação, costuma repetir: “Não teria sentido fazer nada em paralelo, sem aproveitar as competências locais”.

Desde antes do primeiro encontro entre especialistas do Butantan com estudantes e profissionais de instituições do Pará, realizado em Santarém em 2006, Mercadante costurou o apoio de prefeituras, governo estadual, fundações de financiamento à pesquisa do Pará e de São Paulo e ainda dos ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia para levar adiante os estudos em três vertentes: a biodiversidade amazônica, a ação de toxinas de animais e a história da saúde na região. De modo complementar, vem sendo feito um trabalho com médicos e agentes de saúde locais sobre tratamentos de acidentes com animais venenosos. A equipe do Butantan, inclusive, já fez e distribuiu um livreto sobre animais venenosos na região.

Surucucu (Lachesis muta )

Instituto Butantan/ANTONIO COR DA COSTASurucucu (Lachesis muta )Instituto Butantan/ANTONIO COR DA COSTA

A convivência das equipes dos dois estados tem se mostrado produtiva. “Neste ano, teremos a conclusão de uma pesquisa de doutorado, de Hipócrates Chalkidis, do programa de pós-graduação do Museu Goeldi, e uma de mestrado, de Valéria Moura Mourão, do programa de pós em recursos naturais da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), que não é pouca coisa”, festeja Ana Moura, que, além de pesquisadora do Butantan, é professora do curso de pós-graduação em recursos naturais da Amazônia da UFPA em Santarém. Há outros quatro projetos de mestrado e três de especialização em andamento no Instituto Butantan, nas mãos de estudantes do Pará que podem fazer parte de seu trabalho em São Paulo e depois voltam para atuar em sua própria região.

A partir de 2009, os encontros com as comunidades e instituições do Pará avançaram com a entrada de verba específica do INCT-Tox e da FAPESP destinada a pesquisas e bolsas para estudantes de Santarém e de São Paulo”, diz Ana Moura. A cada ano o trabalho se tornou mais abrangente. “Acabamos de aprovar duas etapas de fôlego junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com valores que somam mais de R$ 7 milhões em projetos de pesquisa e bolsas de estudos, que terão a participação de outros centros de pesquisa do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.”

Cada vez mais nacional e interinstitucional, atraindo o interesse até mesmo de grupos de pesquisa biomédica de outros países, o programa de pesquisas do Butantan na Amazônia reúne no momento mais de 50 profissionais qualificados e pelo menos 12 instituições federais, estaduais e municipais das áreas de ambiente, ciência e saúde pública.

A colaboração entre as equipes facilita a busca de novos medicamentos a partir de toxinas animais e de plantas da Amazônia, aproveitando os investimentos já feitos em prédios, equipamentos e recursos humanos em São Paulo. Alguns pesquisadores trabalham para conhecer melhor como os venenos de escorpiões podem agir no organismo humano e, a partir daí, desenvolver novas formas de evitar o envenenamento, enquanto outros pretendem chegar a compostos químicos biodegradáveis que pudessem ser usados para combater escorpiões nas áreas em que são mais abundantes.

Das serpentes coletadas na Floresta Nacional do Tapajós, os pesquisadores extraíram venenos, cujos efeitos estão sendo mais bem conhecidos, por meio de estudos em animais de laboratório. Hoje, um dos grupos do Butantan avalia a eficácia dos soros produzidos regularmente no instituto contra os efeitos da picada dessas serpentes, especialmente sobre a coagulação do sangue. “Estamos aprofundando os estudos sobre as alterações na coagulação produzidas pelas toxinas animais”, diz Ana Moura.

Escorpião-preto do Pará (Tityus obscurus)

Instituto Butantan/ANTONIO COR DA COSTAEscorpião-preto do Pará (Tityus obscurus)Instituto Butantan/ANTONIO COR DA COSTA

Cobras e escorpiões
O biólogo – e futuro doutor – Hipócrates Chalkidis começou sua trajetória nesse projeto com viagens frequentes à Floresta Nacional do Tapajós, há mais de dois anos, para coletar serpentes com estudantes de biologia das Faculdades Integradas do Tapajós (FIT), onde ele é professor. As armadilhas montadas para atrair cobras trouxeram também escorpiões e aranhas, que se tornaram objeto de estudo e matéria-prima para ampliar o conhecimento sobre a riqueza biológica da região.

O trabalho de coleta de venenos para pesquisas sobre novas toxinas aproximou especialistas de São Paulo dos centros científicos e médicos do Pará. Chalkidis e sua equipe capturaram exemplares do escorpião-preto do Pará, o Tityus obscurus, que causa a maioria dos casos notificados de picadas de escorpiões na região Norte. Com mais bichos à mão, a equipe do Butantan ampliou as informações sobre os soros produzidos contra os seus venenos.

Em paralelo, também se aprofundando na pesquisa sobre a biodiversidade da Amazônia, Pedro Pardal, da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, começou a estudar os escorpiões dessa espécie, para ver o que os diferencia geneticamente, já que os escorpiões-pretos de diferentes regiões do Pará produzem venenos com maior ou menor grau de letalidade.

Aranhas
Diferentemente dos escorpiões e das cobras, que prevalecem na região, as aranhas demoraram a entrar no projeto das toxinas da Amazônia porque não havia bichos vivos em quantidade suficiente para fornecer veneno e tornar as pesquisas viáveis. As coisas mudaram. O biólogo Antonio Brescovit, do Butantan, que percorreu as matas da região Norte há 20 anos, quando a viagem de Belém a Santarém só podia ser feita de barco e demorava uma semana, agora está estudando intensamente as aranhas do grupo haploginas de toda a América do Sul, por meio de um projeto temático aprovado no ano passado.

“Pretendo, com minha equipe, aprofundar o conhecimento sobre esse grupo das aranhas mais primitivas, que inclui a aranha-marrom, que causa problemas graves às pessoas e pode levar à morte”, diz Brescovit. “São bichos raros, difíceis de coletar e complexos de trabalhar, porque estudamos a minúscula genitália [para diferenciar as espécies]. Aliás, há poucos estudos sobre as aranhas desse grupo na América do Sul e muitas lacunas de conhecimento sobre as espécies da região Norte.”

Espécie nova de caranguejeira (Acanthoscurria geniculata)

Rafael IndicattiEspécie nova de caranguejeira (Acanthoscurria geniculata)Rafael Indicatti

Normalmente as pesquisas se concentram em espécies mais vistosas de aranhas, que fazem teias, e deixam de lado as de menor porte, como a marrom, o que Brescovit considera “um erro, já que é essa espécie que pode ser perigosa”. Ele evidencia um paradoxo: “A maioria das pessoas tem medo das aranhas-caranguejeiras, mas o veneno delas é fraco, praticamente inofensivo, quando comparado ao das marrons”. Esse gênero de aranha é constituído por 11 espécies encontradas no Brasil – e a equipe do Butantan tem mais 14 ou 15 novas para descrever.

Parte desse trabalho depende do conhecimento das espécies de aranhas que vivem no Pará. Os pesquisadores já identificaram uma espécie nova de uma aranha-caranguejeira da região amazônica, de até 30 milímetros, do gênero Acanthoscurria, que deve ser batizada com o nome da cidade em que foi encontrada, Belterra, onde o Butantan deve instalar uma base avançada de pesquisas e laboratórios para atender estudantes e os professores.

Faz tempo que o Instituto Butantan tem contato com animais da floresta amazônica. Essa região permaneceu isolada das outras regiões do país até o início do século XX, por causa da dificuldade de comunicação e transporte. Mesmo assim, de acordo com um levantamento de Maria de Fátima Furtado e Myriam Calleffo, publicado nos Cadernos de História da Ciência, Emília Snethlage, então diretora do Museu Goeldi, de Belém, enviou em 1914 uma coleção de serpentes do Pará ao Butantan para identificação e guarda. O envio de animais não parou mais, e hoje o instituto paulista reúne 6.625 exemplares de 213 localidades da região amazônica.

Em 1924, Vital Brazil Mineiro da Campanha, o primeiro diretor e que então reassumia a direção do instituto, contratou o médico Jean Vellard para ajudar na identificação de aranhas venenosas. Vellard trabalhou com Vital Brazil no soro contra o veneno de uma aranha-de-grama, a Lycosa raptoria, estudou a toxidade de outras aranhas, identificou espécies novas e fez muitas expedições de coleta de animais à região amazônica.

Hoje, toda a Amazônia passa por um desmatamento intenso, que, supõe-se, está mudando as relações entre os animais e o ambiente. Para saber o que está se passando, em março Lisle Gibbs, professor de ecologia molecular da Universidade de Ohio, dos Estados Unidos, esteve em Santarém, participou dos trabalhos de campo, deu palestras e conversou com os pesquisadores do Pará e de São Paulo, que e continuam trabalhando juntos. “Entre outras coisas”, diz Ana Moura, “queremos saber que tipo de variação genética está se processando naquela área, que vem sendo intensamente desmatada há 30 anos, e como isso deve afetar as espécies.”

Os projetos
1. Subprograma ações na Amazônia (nº 2008/57898-0) (2009-2014); Modalidade Projeto Temático; Coordenadora Ana Moura da Silva – Instituto Butantan; Investimento R$ 345.000,00
2. Sistemática de aranhas Haploginas heotropicais (Arachnida, Araneae) (nº 2011/50689-0) (2011-2016); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Antonio Domingos Brescovit – Instituto Butantan; Investimento R$ 814.653,03

Artigos científicos
CALVETE,  J. J. et al. Snake population venomics and antivenomics of Bothrops atrox: paedomorphism along its transamazonian dispersal and implications of geographic venom variability on snakebite management. Journal of Proteomics. v. 74, n. 4, p. 510-27, 2011.
LUCAS, S. M. et al. Redescription and new distribution records of Acanthoscurria natalensis (Araneae: Mygalomorphae: Theraphosidae). Zoologia. v. 28, n.4, p. 525–30, 2011.

De nosso arquivo
Os venenos da floresta Edição nº 167 – janeiro de 2010

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