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Imunologia

Defesas vulneráveis

Médicos se mobilizam para detectar precocemente doenças causadas por falhas nas barreiras contra microrganismos

Science Photo Library / Glow ImagesAs imunodeficiências primárias acometem principalmente bebêsScience Photo Library / Glow Images

Pediatras, representantes do governo e pesquisadores do Brasil e de outros países se reuniram no primeiro sábado de março, abrindo uma Escola São Paulo de Ciência Avançada em Imunodeficiências Primárias, e formalizaram a criação de um consórcio de centros médicos de referência no diagnóstico e tratamento das chamadas imunodeficiências primárias (IDPs), conjunto de cerca de 180 doenças raras e de alta letalidade, caracterizadas pelo mau funcionamento do sistema imune. Por causa da incapacidade em produzir células de defesa ou anticorpos contra vírus e bactérias, crianças e adultos com IDPs são muito suscetíveis a infecções, mesmo as causadas por microrganismos geralmente inofensivos em pessoas normais, e podem desenvolver doenças autoimunes como diabetes, além de câncer, em uma frequência maior que na população considerada saudável.

Formado para ampliar o acesso ao diagnóstico e aprimorar o tratamento dessas doenças, em geral detectadas tardiamente, o consórcio é constituído inicialmente por médicos e pesquisadores de quatro centros do Nordeste (Fortaleza, Natal, Recife e Salvador), dois do Centro-Oeste (Brasília e Cuiabá), sete do Sudeste (Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Campinas, Ribeirão Preto, Botucatu e dois em São Paulo) e três do Sul (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre). Em todo o país, estima-se que 160 mil pessoas apresentem IDPs, mas apenas 2 mil estão em tratamento e mais de 18 mil aguardam o diagnóstico.

Como primeira medida, o grupo começou a divulgar folhetos em português, inglês e espanhol com uma lista de 12 sinais de alerta que podem ajudar pediatras a reconhecer as imunodeficiências primárias já no primeiro ano de vida, como a persistência de infecções ou diarreias, ausência de timo, uma glândula do sistema imune facilmente visível nos exames de raios X de tórax, lesões na pele e reações intensas a vacinas com microrganismos atenuados, especialmente a BCG, usada contra tuberculose e aplicada nos primeiros dias após o nascimento.

“Como as imunodeficiências primárias acometem principalmente bebês, não podemos esperar a repetição de infecções”, diz a pediatra Magda Carneiro Sampaio, coordenadora do grupo de IDPs do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e do novo consórcio de instituições. “Temos de pensar nas primeiras manifestações.”

As recomendações aos pediatras, já divulgadas na página do Ministério da Saúde na internet, se apoiam em uma revisão de propostas semelhantes e nos 35 anos de experiência de médicos da USP e foram publicadas em 2011 na revista Pediatric Allergy and Immunology. Essa é a proposta mais recente de sinais de alerta, focada nas primeiras manifestações das imunodeficiências, mas não a única. Em 2009 o médico e professor da USP de Ribeirão Preto Pérsio Roxo Júnior publicou no Jornal Brasileiro de Pneumologia os 10 sinais de alerta do Grupo Brasileiro de Imunodeficiência. Adaptado da proposta apresentada em 1999 pela Fundação Jeffrey Modell, dos Estados Unidos, e da Cruz Vermelha Americana, o conjunto de medidas inclui “duas ou mais pneumonias no último ano”, “quatro ou mais novas otites no último ano” e “história familiar de imunodeficiência”.

Os riscos da BCG
A incapacidade de produzir células de defesa ou anticorpos pode ser detectada por meio de um simples exame de sangue, Magda argumenta. Do mesmo modo, alguns cuidados simples poderiam ajudar a reduzir o número de mortes que geralmente acompanham essas doenças. Segundo ela, as enfermeiras deveriam sempre perguntar aos responsáveis pelo bebê se houve casos na família de crianças que morreram com infecções ou sobre casamentos consanguíneos, que podem facilitar o surgimento dessas doenças, quase todas de origem genética, antes de aplicarem as vacinas obrigatórias como a BCG.

“Em caso de suspeita, o melhor é não vacinar e encaminhar para um centro de referência capaz de fazer o diagnóstico e o tratamento”, ressalta Magda. “Crianças com imunodeficiências primárias não deveriam ser vacinadas.” As vacinas podem ser fatais para bebês cujo organismo é incapaz de produzir células de defesa ou anticorpos contra bactérias ou vírus. “Estamos na fase de sensibilizar os médicos para darem mais atenção a esses problemas, porque a maior parte das crianças com imunodeficiências primárias morrem de infecção ou septicemia, antes do diagnóstico correto”, diz ela.

Com base na frequência populacional das IDPs nos Estados Unidos (um caso para cada grupo de 1.200 pessoas), estima-se que no Brasil devem viver 160 mil com IDPs, das quais 34 mil no estado de São Paulo, mas apenas 3 mil foram diagnosticadas. Um trabalho publicado em janeiro na Journal of Clinical Immunology examina 1.008 casos de crianças e adultos de todo o país diagnosticados e tratados de 1978 a 2011 no Hospital das Clínicas da USP. É o maior levantamento nacional – 
e um dos maiores do mundo – realizado em um único centro médico.

Nesse estudo, os médicos identificaram 62 tipos diferentes de imunodeficiências primárias. A deficiência na produção de anticorpos – principalmente imunoglobulina A (IgA) – representou a categoria mais comum (61% do total). A porcentagem de deficiência na produção de anticorpos aumentou de acordo com as faixas de idade, de 15% no grupo de crianças de até 2 anos até 84% no grupo de pessoas com 30 anos ou mais.

Como esperado, já que a maioria das IDPs graves é causada por falhas no funcionamento de genes do cromossomo X, os bebês do sexo masculino e os homens predominaram (566 casos ou 56% do total), embora a distribuição por gênero tenha variado bastante entre os grupos de idade. Os meninos constituíam 75% dos pacientes com até 2 anos de idade e 64% no grupo de 2 a 5 anos, enquanto as mulheres predominavam (58%) no grupo com 30 anos ou mais.

Uma vez diagnosticadas, várias imunodeficiências primárias podem ser tratadas por meio da aplicação mensal de anticorpos, sob a forma de gamaglobulina, disponível na rede pública de saúde. Os casos mais graves implicam o transplante de células-tronco hematopoiéticas, oferecido em três centros médicos ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Normalmente usamos células do cordão umbilical armazenadas em bancos públicos, mas em alguns casos é possível usar células-tronco extraídas da medula óssea de irmãos. É uma terapia com grande chance de cura, que possibilita à criança uma vida normal no futuro”, diz Magda. As infecções são combatidas por meio de antibióticos, em doses similares às utilizadas em pessoas com sistema imune normal, mas geralmente por mais tempo.

Rastreamento neonatal
Na Escola São Paulo de Ciência Avançada em Imunodeficiências Primárias, o encontro internacional apoiado pela FAPESP que se seguiu à formação do consórcio, o médico Jorge Andrade Pinto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), anunciou um projeto-piloto de rastreamento de um grupo de doenças conhecido como imunodeficiência severa combinada (SCID), que reduz a produção de linfócitos B e T e deixa os bebês altamente suscetíveis a infecções. Os exames devem começar a ser feitos no segundo semestre deste ano no Hospital das Clínicas da UFMG, com financiamento do Ministério da Saúde. Um projeto similar de triagem neonatal para IDPs está em andamento desde 2010 em São Paulo.

Science Photo Library / Glow ImagesSe infecciona, a cicatriz deixada pela BCG pode indicar uma deficiência do sistema imuneScience Photo Library / Glow Images

“Pretendemos avaliar 250 mil recém-nascidos em 12 meses”, disse ele à Agência FAPESP. Com base na prevalência registrada em estudos norte-americanos, de 1 caso em 35 mil triados, Andrade Pinto espera encontrar de 5 a 10 recém-nascidos portadores de SCID e de outras doenças graves caracterizadas pela redução na população de linfócitos no sangue. Nos Estados Unidos, 20 bebês com SCID foram identificados por meio da triagem neonatal, feita de forma rotineira na maioria dos estados. “Com certeza, muitos bebês morriam sem o diagnóstico”, comentou John Routes, do Hospital das Crianças de Wisconsin. “Se a doença for descoberta antes que o bebê fique doente, a chance de cura é de 90% a 95%.”

As causas e os tipos de tratamento de algumas formas de imunodeficiências primárias ainda são pouco conhecidos. É o caso da linfo-histiocitose hemofagocítica ou HLH, em que os macrófagos eliminam outras células de defesa. Em uma das apresentações, Geneviève de Saint-Basile e Fernando Sepúlveda, ambos do Hospital Necker, de Paris, mostraram os avanços com o estudo de camundongos em que conseguiram induzir essa doença, de modo similar ao das pessoas. Segundo eles, a superativação dos macrófagos pode ser causada pela infecção com o vírus Epstein-Barr (EBV), que infecta linfócitos B, geralmente sem maiores consequências, e pode causar alguns tipos de câncer, principalmente em adultos.

“Adultos também podem ter imunodeficiências primárias, em geral menos graves que as das crianças”, diz Cristina Kokron, uma das coordenadoras de um ambulatório do HC que nos últimos 15 anos atendeu 840 adultos com suspeita de IDPs, a maioria com diagnósticos já definidos (449 casos) e com deficiência na produção de anticorpos (398 casos). Muitas vezes as infecções persistem durante décadas até serem associadas à incapacidade de produzir células ou anticorpos capazes de deter os microrganismos que as causam. Um dos 155 pacientes que recebem imunoglobulina por via endovenosa todo mês tem 81 anos e tinha diarreias constantes desde criança. “Em adultos”, diz ela, “nem sempre as infecções causadas pela deficiência na produção de anticorpos são fatais”.

O uso de medicamentos que enfraquecem as defesas do organismo, como os corticosteroides, é a causa de 58 casos de imunodeficiências (secundárias) tratados no hospital da USP. “Qualquer médico deve prestar muita atenção nos efeitos colaterais dos medicamentos que prescrevem, porque as consequências podem ser dramáticas”, alerta Cristina.

Dos 14 adultos com agamaglobulinemia, um tipo de IDP, 9 vieram do Instituto da Criança do HC, indicando que as crianças que antes morriam agora sobrevivem. Em um dos estudos, Cristina, Ana Karolina Oliveira e Maira Pedreschi verificaram que a vacina contra gripe aplicada em 22 adultos com deficiência na produção de anticorpos ajudou a reduzir a frequência de gripes, sinusites e pneumonias e a reduzir o uso de antibióticos, apesar de não estimular a produção de de anticorpos contra o vírus da gripe.

Projetos
1.  Autoimunidade na criança: investigação das bases moleculares e celulares da autoimunidade de início precoce (2008/58238-4); Coord. Magda Maria Sales Carneiro Sampaio – FM-USP; Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 1.827.061,70 (FAPESP).
2. São Paulo Advanced School on Primary Immunodeficiencies (2012/50308-9); Coord. Magda Maria Sales Carneiro Sampaio – FM-USP; Modalidade Escola São Paulo de Ciência Avançada; Investimento R$ 354.969,80 (FAPESP).
3. Avaliação do perfil TH17 em pacientes com imunodeficiência comum variável (ICV) com ou sem autoimunidade (2011/22076); Coord. Cristina Maria Kokron – FM-USP; Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Investimento R$ 108.770,83 (FAPESP).

Artigos científicos
CARNEIRO SAMPAIO, M. et. al. Primary immunodeficiency diseases in different age groups: a report on 1,008 cases from a single brazilian reference center. Journal of Clinical Immunology. 2013 (on line).
CARNEIRO SAMPAIO, M. et. al. A proposal of warning signs for primary immunodeficiencies in the first year of life. Pediatric Allergy and Immunology.  v. 22, p. 345-6. 2011.
ROXO, P. Imunodeficiências primárias: aspectos relevantes para o pneumologista. Jornal Brasileiro de Pneumologia. v. 35, p. 1.008-117. 2009.

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