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microbiologia

Para pessoas e plantas

Medicamento expectorante pode ser eficaz no controle de praga da laranja

Xilema (verde) colonizado por Xylella fastidiosa

Alessandra de souza / iacXilema (verde) colonizado por Xylella fastidiosaAlessandra de souza / iac

Enquanto dava xarope expectorante para o filho gripado, a bióloga Alessandra de Souza teve uma ideia: será que o medicamento poderia tratar a doença de laranjais que ocupa sua mente no âmbito profissional? A inspiração é menos inusitada do que parece quando se imaginam os sintomas da gripe numa criança e a anatomia de um pé de laranja. É que a bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada dos citros (CVC), também conhecida como praga do amarelinho pelas manchas que deixa nas folhas e nos frutos, toma a planta formando um biofilme que une a comunidade de microrganismos invasores. Romper esse biofilme no início de sua formação pode ser a melhor forma de combater a doença, que causa graves prejuízos à produção nacional de laranjas, afirma a bióloga Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP), em reportagem na Edição Especial 50 anos da FAPESP. É justamente esse o objetivo de Alessandra, pesquisadora do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em Cordeirópolis, interior paulista.

E ela parece estar no caminho certo, conforme indicam resultados obtidos no mestrado de sua aluna Lígia Muranaka e publicados este ano na PLoS One. “A patogenicidade da Xylella é próxima à de bactérias que causam infecções em seres humanos, com expressão gênica e mecanismos semelhantes”, afirma Alessandra. Por isso, ela já testou vários tipos de antibióticos, como a tetraciclina e a neomicina. “A Xylella é suscetível a esses medicamentos”, conta, “mas são muito caros para se usar na agricultura”. A pesquisadora explica que a formação do biofilme dentro da planta permite às bactérias se comunicarem entre si e se comportarem como um organismo único. Essa peculiaridade acaba por entupir os vasos do xilema, onde os microrganismos se alojam, e impede a passagem de nutrientes e água das raízes para a copa das árvores. Se é esse o mecanismo de ação da doença, talvez esteja aí mesmo a solução economicamente viável e que não cause impactos ambientais.

A N-acetilcisteína (NAC), princípio ativo do xarope que Alessandra deu ao filho, velho conhecido de quem costuma ter problemas respiratórios, é um agente mucolítico – ou seja, desmancha muco. “Ela desfaz o biofilme e desestrutura as proteínas de várias bactérias que infectam seres humanos, como Staphylococcus aureus, Enterococcus faecalis e Pseudomonas aeruginosa”, conta. O medicamento nunca tinha sido usado em plantas, mas sabendo, por meio de estudos do genoma funcional, que muitas das proteínas que promovem a adesão entre as bactérias X. fastidiosa dentro da laranjeira formam ligações entre si graças à cisteína, seu grupo partiu do pressuposto de que a medicação poderia ser eficaz para combater a clorose.

Bactérias vivas, com mutação fluorescente, no microscópio confocal

Richard janissen / unicamp, microscópio infabicBactérias vivas, com mutação fluorescente, no microscópio confocalRichard janissen / unicamp, microscópio infabic

No laranjal
Deu certo em experimentos in vitro, mas uma coisa é a teoria ou a ação em bactérias cultivadas em placas de vidro no laboratório, outra muito diferente é aplicar o conhecimento às bactérias ativas nos laranjais. No primeiro experimento em plantas inteiras, o grupo de Alessandra aplicou NAC em laranjeiras mantidas num sistema hidropônico, em que as raízes são diretamente expostas à medicação. Os resultados foram promissores: o número de folhas com manchas amarelas e a quantidade de bactérias diminuíram nas plantas medicadas. Mas, para manter o controle, era preciso suprir a planta quase continuamente com o medicamento. Se fosse retirado, em três meses os sintomas voltavam.

Um experimento mais realista (“afinal, laranjeiras não crescem em hidroponia”, lembra Alessandra), em que plantas foram irrigadas com uma solução que incluía NAC e, em alguns casos, tinham o fármaco injetado nas raízes, teve resultados semelhantes. Mas a ação positiva do mucolítico era promissora o suficiente para que a equipe, que também incluía pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), buscasse uma maneira mais eficaz de aplicá-lo.

“Fizemos uma parceria sem fins lucrativos com uma empresa de fertilizantes orgânicos”, conta Alessandra. A fabricante, Agrolatino, desenvolveu uma forma de inserir NAC no fertilizante granulado, de maneira que a liberação do medicamento seria gradual. Dessa vez os sintomas tiveram uma redução ainda maior por um tempo mais longo, por volta de oito meses depois da aplicação. Essa solução pode ser viável para controlar a clorose variegada dos citros em plantações reais, mas Alessandra ainda vê potencial para melhorar. “Estamos estudando como fazer para que a liberação seja ainda mais lenta, usando NAC nanoencapsulado.” Ainda é preciso avaliar a eficácia em campo desse tipo de tratamento, por isso ele está sendo testado em parceria com o setor citrícola.

Dentro do xilema
A trajetória que Alessandra vem seguindo começa na iniciativa ambiciosa que sequenciou o genoma da X. fastidiosa (ver Edição Especial 50 Anos de FAPESP), quando ela acabara de concluir o mestrado e foi trabalhar no IAC com Marcos Machado, coordenador de um dos grupos de trabalho do projeto em que a FAPESP investiu US$ 12 milhões e que veio a ser um marco da maturidade da comunidade científica brasileira. Ela está entre os 116 autores do artigo publicado na Nature em julho de 2000 com os resultados do primeiro projeto genômico do país e encontrou nesses resultados a substância para seu doutorado, em que investigou os genes envolvidos com a patogenicidade e a formação de biofilme nessa bactéria. Vem daí o título da palestra que apresentou no Congresso Brasileiro de Fitopatologia, que aconteceu em Ouro Preto em outubro deste ano: “O genoma da Xylella fastidiosa: 13 anos após o ‘momento de glória’, onde estamos?”. A resposta muito abreviada é que o investimento numa empreitada controversa, centrada num organismo até então mais afamado (mesmo que mal) entre produtores de laranjas do que entre pesquisadores, não para de render frutos. E continua a se ramificar em diversas áreas da ciência.

Enquanto testa na prática como controlar a doença que é o pesadelo dos citricultores e em 2009 ainda acometia 35% dos laranjais, a mesma cifra registrada uma década antes, Alessandra encontrou na física parceiros para entender em maior detalhe como a X. fastidiosa forma o biofilme que lhe permite infectar as plantas. A pesquisa liderada por Mônica Cotta, da Unicamp, é independente daquela feita no IAC, mas complementar. “Temos agora um modelo de adesão completo, que nos permite entender o que a Xylella faz em todas as superfícies”, conta. A escala é bem diferente, em contraste com os laranjais em que Alessandra espalha o olhar. A principal ferramenta de trabalho da física são microscópios sofisticados, como o de força atômica e o confocal com spinning disk, este último no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fotônica Aplicada à Biologia Celular (Infabic), coordenado por Hernandes Carvalho, da Unicamp.

Os frutos das plantas doentes 
são menores

Helvecio Della Coletta Filho / iacOs frutos das plantas doentes 
são menoresHelvecio Della Coletta Filho / iac

Com esses equipamentos, o grupo de Mônica consegue observar como as bactérias se comportam em diferentes superfícies, principalmente no que diz respeito à formação do biofilme. Ela está quase conseguindo responder à pergunta fortuita que Alessandra lhe fez quando se conheceram, em 2007: por que elas ficam “de pé” no final do ciclo de cultivo em laboratório, passados 30 dias? Elas são pequenos bastões cilíndricos e de fato ficam apoiadas numa das pontas em determinadas situações, mas o que importa por enquanto é que a abordagem física mostrou que cultivar essa bactéria em placas de vidro para observação ao microscópio eletrônico não é suficiente para entendê-la, já que as condições em que vivem fazem toda a diferença.

Mônica fez valer sua expertise em microscopia e usou substratos mais próximos ao natural – dois tipos de celulose –, além do vidro. “Primeiro ela adere, depois secreta os exopolissacarídeos para formar uma cápsula e em seguida o biofilme”, explica. Um artigo publicado em setembro na PLoS One, parte principal do doutorado de Gabriela Lorite, de sua equipe, mostra que o substrato causa variações importantes tanto no formato do biofilme como de suas bordas. “Ela adora silício e não gosta de celulose”, conta a física, que construiu sua carreira no estudo de materiais e parece ter se afeiçoado ao organismo que a aproximou do mundo biológico. Entre os dois tipos de celulose que produziu no laboratório, o acetato de celulose é mais rugoso e menos confortável para a Xylella, que não consegue cobrir a superfície toda. Já a etilcelulose tem irregularidades menores, onde a bactéria adere melhor. “São tipos de rugosidade diferentes, como se fossem os Alpes e a serra da Mantiqueira”, compara.

Adesão física
Mas a rugosidade não é a variável mais determinante na adesão, e as técnicas acopladas à microscopia permitem manipulações muito minuciosas para detalhar esse processo. Mônica consegue, por exemplo, prender à ponta do microscópio de força atômica uma proteína que a Xylella produz no início do ciclo infeccioso. Ao cutucar as bactérias com essa substância, os pesquisadores as induzem à adesão e medem a força de interação entre o organismo e o substrato. “Verificamos que as bactérias gostam mais de umas regiões do que outras.” No silício e na etilcelulose, os experimentos indicam que quase sempre pelo menos uma das proteínas se liga ao substrato. O mesmo não aconteceu no acetato de celulose, em que a adesão só foi observada em 20% dos casos. A conclusão mais geral do trabalho é que a Xylella tem maior tendência a se fixar em superfícies eletricamente mais uniformes, com carga positiva, além de hidrofílicas (que atraem a água).

Os estudos feitos até agora pelo grupo de Mônica são o início da compreensão de como o biofilme se instala e se espraia pelo xilema das laranjeiras. Tirando proveito da característica que dá nome à bactéria e que permite observar sua dinâmica em tempo real – ela é fastidiosa, no sentido de lenta –, Mônica tem muitos planos à vista. Eles incluem estudar melhor como a expressão gênica influi na formação do biofilme, usar o brilho conferido pela proteína fluorescente verde (GFP, na sigla em inglês) para enxergar a sua dinâmica e, em consonância com o trabalho de Alessandra, aprimorar o entendimento da ação da NAC sobre as propriedades do biofilme ao longo de sua formação e desenvolvimento. Isso permitirá detalhar a sugestão de Marie-Anne, de que os momentos iniciais da infecção são cruciais.

Lesões típicas da CVC nas folhas

Alessandra de souza / iacLesões típicas da CVC nas folhasAlessandra de souza / iac

A maior resolução com que os físicos trabalham ajuda, inclusive, a redefinir os momentos iniciais do ponto de vista experimental. Quando Mônica disse a Alessandra que o biofilme já era detectável, embora ainda com poucas bactérias, seis horas após a inoculação da bactéria no meio de cultura, a bióloga recebeu a informação com descrédito. Afinal, ela só conseguia enxergar um conjunto de bactérias a partir de cinco dias de incubação.

Mônica ressalta que os avanços obtidos só são possíveis graças à interação constante, mesmo que esporádica, entre biólogos e físicos. Como disse um de seus alunos, depois de uma visita ao IAC: “Eles pensam diferente”. Esse pensar diferente é o que gera novas perguntas, novos olhares, e permite encontrar respostas inovadoras. Para ela, o uso de equipamentos multiusuários, em que a FAPESP investe bastante, é crucial nesse sentido. “Aprendemos a interagir com outras áreas, não apenas a usar o equipamento.”

Outra particularidade que a física da Unicamp vê como importante é o fato de ambos os laboratórios serem liderados por mulheres. “E tagarelas”, completa. As conexões que se revelaram frutíferas surgiram em conversas de hora de almoço nas quais interesses em comum vieram à tona e relações de trabalho se desenharam. Além disso, conta o fato de serem malabaristas que constantemente equilibram a vida pessoal e a profissional, a maternidade, as amizades e as colaborações. “As ideias nascem da experiência”, ressalta Mônica, lembrando a inspiração inicial da colega ao dar xarope ao filho.

Projetos
1. Características biológicas de Xylella fastidiosa em biofilme: importância de genes de adesão e adaptação na patogênese (2004/14576-2); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coord. Alessandra Alves de Souza/IAC; Investimento R$ 205.432,59 (FAPESP)
2. Análise estrutural e química de biofilmes de Xylella fastidiosa (2010/51748-7); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Mônica Alonso Cotta/Unicamp; Investimento R$ 187.405,53 (FAPESP)

Artigos científicos
MURANAKA, L. S. et al. N-Acetylcysteine in agriculture, a novel use for an old molecule: focus on controlling the plant-pathogen Xylella fastidiosa. PLoS One. v. 8, n. 8, e72937. ago. 2013.
LORITE, G. S. et al. Surface physicochemical properties at the micro and nano length scales: role on bacterial adhesion and Xylella fastidiosa biofilm development. PLoS One. v. 8, n. 9, e75247. set. 2013.

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