Se os romanos antigos soubessem o tamanho real do planeta Marte, talvez não o tivessem batizado com o nome de seu deus da guerra. Pois Marte estaria mais para um guerreiro-anão do que para um gigante, caso seu corpo guardasse uma proporção acurada com as dimensões do planeta de mesmo nome. Marte é o segundo menor planeta do sistema solar, com um décimo da massa da Terra. E o motivo de sua pequenez é uma das principais questões em aberto para os astrônomos e os geofísicos que estudam a formação dos planetas solares. Especialistas em mecânica celeste da Universidade Estadual Paulista (Unesp), entretanto, acreditam ter finalmente encontrado uma solução satisfatória para o problema.
Simulações em computador da formação do sistema solar já explicaram a posição e as propriedades físicas de muitos dos planetas e demais corpos celestes que giram em torno do Sol. Marte, no entanto, ainda está entre os corpos cuja origem é um mistério. De acordo com essas simulações, a massa do planeta vermelho deveria ser tão grande quanto a da Terra ou de Vênus, que são semelhantes. Alguns pesquisadores já propuseram teorias para resolver a disparidade. A principal delas, conhecida como cenário do grand tack, assume que uma série de eventos pouco prováveis durante a movimentação dos planetas no início do sistema solar, cerca de 4 bilhões de anos atrás, gerou condições favoráveis à formação de um planeta Marte pequeno. “A beleza de nosso trabalho é explicar Marte de um jeito muito mais simples e provável”, diz o astrônomo Othon Winter, da Faculdade de Engenharia da Unesp em Guaratinguetá, que faz parte da equipe que sugeriu um novo modelo para a formação de Marte em fevereiro deste ano no Astrophysical Journal.
Infográfico: Ana Paula Campos / Ilustração: Guilherme LepcaO astrônomo André Izidoro, que concluiu seu doutorado na Unesp em 2013 sob a orientação de Winter, teve a ideia de testar se o tamanho reduzido de Marte poderia ser consequência da falta de “material de construção” na vizinhança marciana nos primórdios do sistema solar. Segundo esse novo cenário, há 4 bilhões de anos haveria uma grande lacuna de matéria-prima numa região do disco protoplanetário – composto por milhares de corpos semelhantes às luas e aos asteroides atuais que originaram os planetas rochosos por meio de colisões – próxima à órbita atual de Marte. Atualmente fazendo pós-doutorado no Observatório da Costa Azul, da Universidade de Nice, na França, Izidoro construiu esse modelo com base em teorias recentes de que lacunas como essa podem ter surgido naturalmente no disco planetário.
As simulações em computador baseadas nesse novo cenário sugerem que Marte teria começado a se formar em uma das seguintes regiões: próximo à localização atual da Terra ou mais perto de onde hoje se encontra o cinturão de asteroides, entre a órbita de Marte e de Júpiter. Tanto em um caso como no outro, Marte teria migrado muito rapidamente para a região carente em material de construção planetária e ali permanecido, a uma distância uma vez e meia maior que a que separa a Terra do Sol, segundo as simulações em computador realizadas por Izidoro e Winter em parceria com Nader Haghighipour, da Universidade do Havaí em Manoa, Estados Unidos, e Masayoshi Tsuchida, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp em São José do Rio Preto.
Disco original
Os astrônomos acreditam que já conhecem bem a história da origem do sistema solar, embora faltem detalhes a serem preenchidos. O Sol, como muitas outras estrelas, nasceu do gás e da poeira do meio interestelar que se condensaram em uma nuvem 4,6 bilhões de anos atrás. A maior parte desse material colapsou formando o Sol, enquanto o restante permaneceu na forma de um disco girando em torno da nova estrela. Nesse disco, os grãos de poeira se aglomeraram ao longo de milhões de anos até formarem corpos rochosos com cerca de 100 quilômetros de diâmetro semelhantes aos asteroides – são os chamados planetesimais.
Infográfico: Ana Paula Campos / Ilustração: Guilherme LepcaA maioria dos planetesimais continuou a colidir entre si até formar os embriões planetários: corpos semelhantes a planetas, com massa entre a da Lua (um centésimo da terrestre) e a de Marte. Alguns dos primeiros embriões cresceram o suficiente para a sua atração gravitacional começar a sugar o gás do disco protoplanetário, formando os atuais planetas gigantes gasosos: Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.
Essa primeira fase de formação do sistema solar durou no máximo 10 milhões de anos e terminou quando todo o gás do disco se dissipou ou foi capturado pelos gigantes gasosos e pelo Sol. O sistema solar ainda era muito diferente do atual: os gigantes gasosos orbitavam mais próximos do Sol, imersos em um mar de planetesimais e embriões planetários. Colisões e chacoalhões gravitacionais ocorridos nos 500 milhões de anos seguintes acabaram por levar os gigantes gasosos até suas posições atuais, empurrando os corpos menores para faixas específicas e mais distantes do Sol, que formam o cinturão de Kuiper, onde está Plutão, e, mais além, a nuvem de Oort, de onde vêm muitos cometas.
Os astrônomos Hal Levison, Alessandro Morbidelli, Kleomentis Tsiganis e o brasileiro Rodney Gomes, atualmente no Observatório Nacional, apresentaram esse modelo de formação inicial do sistema solar em 2005, em uma série de artigos publicados na revista Nature. Essa teoria ficou conhecida como modelo de Nice, por ter sido criada quando seus autores trabalhavam juntos no Observatório da Costa Azul.
Ao mesmo tempo que os gigantes gasosos se formavam, o choque de planetesimais e embriões planetários acumulados entre o Sol e Júpiter começou a originar os planetas rochosos atuais – Mercúrio, Vênus, Terra e Marte –, além do cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter. Foram necessários de 50 milhões a 150 milhões de anos para Mercúrio, Vênus e a Terra alcançarem sua forma atual, enquanto Marte se formou muito mais rapidamente, em menos de 10 milhões de anos. Izidoro dedicou seu doutorado justamente a simular esse período final de formação dos planetas. “Nossas simulações, assim como a maioria das feitas pelos outros pesquisadores, costumavam falhar na produção de Marte”, conta Izidoro. “Geravam de dois a três planetas parecidos com a Terra e Vênus, mas nunca algo parecido com Marte.”
Na mesma época em que Izidoro iniciou seu doutorado, a comunidade astronômica internacional começou a perceber qual era o principal problema das simulações. Elas assumiam que a quantidade de planetesimais e embriões planetários variava de maneira suave ao longo do disco protoplanetário. Na sequência, diversos estudos começaram a mostrar que um planeta menor poderia surgir na vizinhança atual de Marte, se a distribuição de material variasse de modo mais abrupto, com uma faixa estreita contendo mais material próximo à órbita da Terra hoje, seguida de uma faixa com menos material na região onde atualmente se encontra o planeta vermelho.
O cenário mais famoso para explicar essa distribuição incomum de material é chamado de grand tack. De acordo com esse cenário, proposto em 2011 na Nature, no final da primeira fase de formação do sistema solar, quando os gigantes gasosos já haviam surgido, forças gravitacionais atuando entre o resto de gás que ainda permeava o disco protoplanetário e os gigantes gasosos fizeram Júpiter e Saturno avançar em direção ao Sol. Nessa viagem, os gigantes gasosos saíram de suas órbitas originais a cerca de quatro unidades astronômicas – uma unidade astronômica é a distância que separa a Terra do Sol – e migraram até a região onde hoje está Marte, a 1,5 unidade astronômica. Nesse momento, interações complexas das forças gravitacionais atuando sobre o gás e os gigantes gasosos fazem a migração dos planetas mudar de sentido, levando Júpiter e Saturno de volta a suas órbitas mais afastadas. Simulações mostraram que a movimentação abrupta desses dois planetas teria espalhado os corpos do disco protoplanetário, criando uma distribuição desigual de material que explicaria Marte. Esse cenário foi batizado de grand tack por um de seus autores, Alessandro Morbidelli, do Observatório da Costa Azul, em alusão à manobra de tacking, quando os barcos a vela revertem seu curso em relação à direção do vento.
A grande lacuna
Embora o cenário do grand tack seja possível, Izidoro nota que o modelo só funciona para uma combinação muito precisa das propriedades físicas do disco protoplanetário e dos gigantes gasosos. “É muito pouco provável que a reversão de movimento de Júpiter tenha ocorrido exatamente na atual órbita de Marte”, ele explica. “Se as propriedades do disco e dos planetas forem um pouquinho diferentes, as simulações do modelo formam um sistema solar completamente diferente do real.”
Buscando uma alternativa ao grand tack, Izidoro resolveu explorar uma ideia proposta em 2008 pelo astrônomo Liping Jin, da Universidade de Jilin, na China. Jin e seus colegas propuseram que a distribuição dos corpos rochosos no disco protoplanetário poderia ter uma grande lacuna de densidade próxima à órbita de Marte. Mas a origem dessa lacuna seria mais antiga do que supõe o cenário do grand tack. Ela teria sido criada pelas propriedades do gás e da poeira na infância do disco protoplanetário, antes da formação dos gigantes gasosos. Ainda nessa época, os efeitos da radiação solar e dos raios cósmicos, combinados com o fato de o gás do disco planetário girar mais rapidamente mais próximo ao Sol, poderiam criar uma lacuna de densidade – uma faixa com menos gás e poeira que, milhões de anos mais tarde, poderia resultar numa faixa com menos planetesimais e embriões planetários, justamente na órbita atual de Marte.
Inspirados nesse cenário, Izidoro e seus colegas realizaram simulações em computador que começavam assumindo um disco com quase mil planetesimais e cerca de 150 embriões planetários entre o Sol e Júpiter, com uma lacuna de densidade próxima à posição atual de Marte. A equipe realizou 84 simulações usando o cluster de computadores do laboratório do Grupo de Dinâmica Orbital e Planetologia da Unesp de Guaratinguetá. Cada simulação começava assumindo condições iniciais diferentes, variando parâmetros tais como as órbitas de Júpiter e Saturno, a largura, posição e intensidade da lacuna de densidade.
O resultado de cada simulação é uma espécie de filme em movimento acelerado, com um a três meses de duração, retratando 1 bilhão de anos de colisões e acrobacias interplanetárias. O resultado de uma única simulação é como um filme de ficção científica, contando uma história alternativa do sistema solar, mas fiel às leis da física. Comparando os resultados de muitas simulações diferentes, porém, os pesquisadores podem ter uma ideia do que é mais provável que tenha acontecido no passado do sistema solar.
As simulações em que um planeta com as dimensões e a posição atual de Marte permanecia orbitando o Sol de maneira estável eram aquelas que assumiam uma lacuna de densidade no disco protoplanetário entre 1,5 e 2,5 unidades astronômicas, com 50% a 75% de material a menos que a média do disco. As simulações também deixaram claro que, ao contrário do que se pensava, Marte não começa a se formar na região de pouco material. Em metade das simulações bem-sucedidas, Marte nasce próximo de onde a Terra e Vênus se formaram, enquanto no restante das simulações ele nasce mais afastado do Sol, do outro lado da lacuna. As forças gravitacionais entre o Sol, os gigantes gasosos e os planetas nascentes, porém, acabam por lançar Marte na lacuna, onde seu crescimento é interrompido. “A lacuna tem tão pouco material que quase não há colisões na região”, explica Winter. “Nem mesmo um planeta pequeno poderia se formar ali.”
Além de Marte, simulações também conseguem formar planetas muito parecidos com a Terra e Vênus, além de um cinturão de asteroides com órbitas semelhantes às dos asteroides reais. As simulações não conseguiram, porém, formar um análogo de Mercúrio. De fato, Mercúrio vem sendo relativamente ignorado pela maioria dos modelos até agora. “Mas alguns pesquisadores já estão trabalhando em cima do nosso modelo para tratar disso”, diz Izidoro. “Agora, Mercúrio é a pedra da vez.”
O tempo que os planetas semelhantes à Terra e a Marte levam para se formar nas simulações também está de acordo com os tempos de formação que os geoquímicos estimam comparando a proporção de elementos químicos radioativos nas rochas terrestres e de meteoritos marcianos. Marte teria terminado de crescer prematuramente apenas 2 milhões de anos depois de começar a se formar. Já a fase de crescimento da Terra teria demorado em torno de 50 milhões de anos.
Winter faz questão de ressaltar que o estudo tem aplicações que vão além da formação de Marte e do sistema solar. “Uma grande variedade de sistemas planetários extrassolares vem sendo descoberta, muito diferentes do nosso sistema solar e ainda sem explicação”, conta o astrônomo. “Os modelos para a origem deles ainda assumem um disco protoplanetário de densidade uniforme, sem lacunas.”
“Esse déficit local de planetesimais e embriões que eles assumem, ainda que extremo, é esperado”, diz o astrônomo brasileiro Wladimir Lyra, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa. Em 2008, Lyra e colaboradores fizeram simulações para estudar o efeito do movimento turbulento do material do disco protoplanetário na formação dos planetesimais. “A distribuição não homogênea de gás e rochas que resulta de nossos modelos coincide razoavelmente bem com as que Izidoro e colegas necessitam no modelo deles.”
Projeto
Dinâmica orbital de pequenos corpos (nº 2011/08171-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Othon Cabo Winter (Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá/Unesp); Investimento R$ 560.886,80 (FAPESP).
Artigo científico
IZIDORO, A. et al, Terrestrial planet formation In a protoplanetary disk with a local mass depletion: a successful scenario for the formation of Mars. The Astrophysical Journal. v. 782: 31. 10 fev. 2014.