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Bioengenharia

Próteses sob medida

Instituto Biofabris produz implantes de liga de titânio para pacientes que perderam ossos do crânio ou da face após acidente ou doenças

Imagens de tomografia do paciente, modelo em 3D do crânio e prótese sob medida projetada em software

INCT- Biofabris Imagens de tomografia do paciente, modelo em 3D do crânio e prótese sob medida projetada em softwareINCT- Biofabris

Uma prótese de titânio feita sob medida transformou a vida da estudante Jessica Alves Farias Cussioli, de 23 anos. Após um grave acidente em setembro do ano passado, em Araçatuba, interior de São Paulo, quando caiu da moto e bateu a cabeça em uma caçamba de entulho, Jessica teve afundamento profundo na lateral direita do crânio, em uma região que começa nos olhos e vai até o alto da cabeça. Oito meses depois, no dia 26 de maio, ela se tornou a primeira paciente a receber um implante craniofacial de titânio no Brasil, procedimento feito no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC-Unicamp). A fabricação da prótese feita sob medida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Biofabricação (INCT-Biofabris), sediado na Unicamp e financiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), faz parte de um longo processo de pesquisa e desenvolvimento multidisciplinar iniciado em 2009.

Além da Unicamp, participam do Biofabris as universidades de São Paulo (USP), as federais de São Paulo (Unifesp) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Instituto de Pesquisas Nucleares (Ipen) e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), entre outras instituições. “Trabalhamos no desenvolvimento de polímeros, biopolímeros, materiais metálicos e cerâmicos, destinados a diversas aplicações”, diz o engenheiro químico Rubens Maciel, professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp e coordenador do Biofabris. Os estudos de desenvolvimento de novos materiais envolvem ainda testes in vitro e in vivo para avaliar se não causarão nenhum problema ao paciente, no caso de uma futura implantação. “Sua atuação no organismo não pode ser nociva às células nem prejudicar o corpo no local onde está implantado.”

A operação de Jessica durou mais de oito horas e teve a participação de uma equipe médica composta por quatro cirurgiões plásticos e um neurocirurgião. O procedimento cirúrgico foi a última etapa de um trabalho colaborativo que envolveu médicos e pesquisadores durante três meses. A parceria entre o instituto e o HC começou logo após a inauguração do Biofabris. “Após uma longa conversa com Rubens Maciel e André Jardini [engenheiro mecânico e pesquisador do instituto Biofabris], percebi que poderíamos ter uma parceria científica”, relata Paulo Kharmandayan, professor e coordenador da área de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, integrante do Biofabris. Além da convergência de interesses nas linhas de pesquisa, também havia a proximidade física dos laboratórios. “Foi uma tarde inteira de conversas em que expus as minhas necessidades na área médica e eles se propuseram a encontrar soluções para as demandas apresentadas.” À medida que o tempo passou e o instituto cresceu, apareceram mais perguntas e propostas. “Atualmente fazemos reuniões semanais e a cada discussão surgem novas ideias.”

Próteses craniofaciais feitas de titânio

caius lucilius/hc-unicampPróteses craniofaciais feitas de titâniocaius lucilius/hc-unicamp

A tarefa de fabricação dos três implantes personalizados de titânio que compõem a prótese e formam uma superfície de 10 centímetros de comprimento demorou 20 horas. O primeiro passo para a fabricação de uma prótese é fazer, por meio de tomografia, imagens da área do corpo que necessita de reparos. Essas imagens são colocadas no programa InVesalius, um software desenvolvido pelo CTI, responsável pela reconstrução da parte afetada em 3D. A partir da comparação da parte preservada com a afetada por trauma ou acidente, os pesquisadores criam uma prótese com a dimensão e o formato mais apropriado, preservando a aparência e recuperando a função original de proteção ao cérebro. Com base nesse modelo virtual da cabeça do paciente, são feitos então um crânio-modelo e uma prótese em nylon por impressão 3D. “O planejamento virtual é uma etapa demorada, em que o programador e a equipe médica discutem todos os ajustes necessários, antes de chegar à prótese definitiva, em metal”, explica Kharmandayan.

Acabamento e esterilização
Na etapa final, de fabricação da prótese metálica, uma liga com pó de titânio é colocada dentro da máquina de manufatura aditiva, técnica de impressão em que um modelo tridimensional é criado por sucessivas camadas de material. O pó é sinterizado a laser e forma as camadas com 0,4 milímetro. Dependendo da peça, a fabricação pode demorar até um dia para o processo ser finalizado. Depois de retirada da máquina, a peça é submetida a um tratamento térmico ou químico e, no caso de ser usada em aplicações médicas para implantes, ainda passa por um processo de limpeza, acabamento superficial para retirada de resíduos e esterilização.

Jessica foi a sexta paciente operada pela equipe de Kharmandayan. Ela é uma das pacientes que integram um projeto aprovado pelo comitê de ética da Unicamp, que prevê a realização de 15 cirurgias. “Foi a primeira cirurgia craniofacial que fizemos com o material. As outras eram apenas de crânio ou face”, contou o cirurgião plástico. O primeiro paciente operado, em 2012, colocou uma prótese para reconstrução do crânio aos 17 anos, três anos depois de um grave acidente de bicicleta. “Ele parou de estudar, ficava trancado em casa, não tinha vida social. Depois que fez a cirurgia, voltou a estudar, começou a tocar violão, ficou noivo, tirou carta de motorista e passou em um concurso público.”

Projeção da prótese a partir do modelo 3D

inct-biofabrisProjeção da prótese a partir do modelo 3Dinct-biofabris

O tratamento mais utilizado atualmente para recompor a região afetada é retirar um segmento do osso do lado sadio da cabeça e colocá-lo no local com o trauma. Mas nem sempre isso é possível. “Quando os defeitos são grandes ou quando ocorre absorção do osso por causa da infecção, é preciso recorrer a um substituto sintético, metálico ou não”, explica. Um dos mais utilizados para essa finalidade é o metilmetacrilato, um tipo de plástico descoberto na década de 1920. “Existem vários relatos de pacientes que tiveram rejeição à prótese porque o material pode liberar substâncias químicas.” Outro detalhe é que a reconstrução com o metilmetacrilato é feita artesanalmente pelo cirurgião. “O plástico em pasta, a uma temperatura de 82 graus Celsius, é modelado diretamente em cima do cérebro do paciente, no caso de uma reconstrução do crânio.” A modelagem a mão deixa muito a desejar. Dentre os pacientes operados no HC da Unicamp como parte do projeto, quatro tinham feito anteriormente próteses a partir do plástico.

A liga de titânio é usada há bastante tempo na medicina e, de uns anos para cá, na odontologia no setor de implantes, por ser um material já bastante testado, seguro e que não libera resíduos depois de pronto. “As miniplacas que utilizamos, além de seguras, permitem a integração com o osso”, diz Kharmandayan. “Sua superfície é fabricada com pequenas ranhuras, de forma que a osteointegração e o crescimento celular ocorram mais rapidamente do que em uma superfície comum”, ressalta Maciel. As placas de titânio para reconstrução craniofacial são produzidas por outros países e vendidas no mercado, mas elas são feitas em tamanho padrão, e não sob medida para o paciente e para as suas necessidades. “Uma placa como a que foi implantada na Jessica custaria no mercado em torno de R$ 130 mil”, estima Maciel. “Os gastos que tivemos com material para construir a placa personalizada e com as utilizadas pelos outros pacientes ficaram em cerca de R$ 3 mil a R$ 5 mil, dependendo do material utilizado.” Isso sem contar os honorários médicos e custos com aquisição de máquinas, projeto e esterilização, por exemplo, que foram absorvidos pelo Biofabris.

Modelo de estudo do crânio e da prótese

antonio scarpi nettiModelo de estudo do crânio e da próteseantonio scarpi netti

Novos materiais
Além das próteses customizadas com ligas de titânio, outras linhas de pesquisa envolvendo a busca de novos materiais são desenvolvidas com instituições parceiras. Uma delas, em colaboração com a UFRGS, tem como foco as biocerâmicas de fosfato de cálcio, como a hidroxiapatita, material semelhante à parte mineral do osso, e outras similares. “Fazemos a síntese e a caracterização de cerâmicas e moldamos as peças no equipamento de prototipagem rápida”, diz Cecília Zavaglia, professora do Departamento de Engenharia de Materiais da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) e vice-coordenadora do instituto. Essas cerâmicas desenvolvidas, chamadas de beta fosfato tricálcico, podem ser utilizadas como substituto de ossos e dentes, em pequenos reparos. Já foram realizados testes in vitro e in vivo para avaliar a biocompatibilidade do material e sua toxicidade. A próxima etapa serão os testes clínicos.

Outros materiais usados na biofabricação são os biopolímeros. O melaço da cana-de-açúcar, a semente do açaí e o óleo de mamona são matérias-primas de fontes renováveis utilizadas para a fabricação desses materiais. A partir do melaço, por exemplo, os pesquisadores obtiveram o poliácido láctico, um polímero absorvido pelo organismo em taxas controláveis. “Fazemos a polimerização do ácido láctico para usar como base em uma série de aplicações, como regeneração de tecidos, pele artificial, formação de cartilagem e de ossos”, diz Jardini. “Esse material pode ser utilizado como se fosse o arcabouço para semear células que precisam ser desenvolvidas em um determinado local.” Em uma impressora 3D o polímero é processado para adquirir o formato a ser implantado no paciente. Esse biopolímero é então semeado com células do próprio paciente e, após o crescimento, a prótese pode ser implantada no local desejado.

Da semente do açaí, foi desenvolvido um poliuretano para ser usado como prótese óssea, principalmente nas regiões do crânio e da face (ver Pesquisa FAPESP nº196). E o óleo de mamona associado ao ácido cítrico resultou em um novo polímero, objeto de um depósito de patente. “O óleo de mamona obtido foi submetido a uma reação com o ácido cítrico, o que resultou em um poliéster reticulado obtido a partir de um processo de polimerização que não envolveu agentes tóxicos para conduzir a reação química”, diz Maria Ingrid Rocha Barbosa Schiavon. Ela iniciou a pesquisa durante o pós-doutorado que resultou em um depósito de patente em conjunto com outros pesquisadores do Biofabris.

A partir do poliácido láctico obtido da cana-de-açúcar, em associação com o poli 2hidroximetilmetacrilato (pHEMA), foi formado um polímero híbrido como resultado da pesquisa de doutorado de Marcele Fonseca Passos, sob orientação de Maciel e de Carmen Gilda, do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Pará (UFPA). A pesquisa levou a um depósito de patente, o processo não necessita de agentes químicos, e o produto obtido tem uso potencial em odontologia, regeneração parcial de cartilagem, de menisco e orelha. Testes de citotoxicidade mostraram biocompatibilidade do polímero e atualmente estão sendo feitos testes com animais na Faculdade de Biologia da UFPA em colaboração com o Instituto Evandro Chagas, também no Pará.

Projetos
1. Biofabris – Instituto de Biofabricação (nº 2008/57860-3); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Investimento R$ 2.691.894,52 (FAPESP) e R$ 2.239.094,33 (CNPq).
2. Síntese de biopolímeros epoxídicos a partir de fontes renováveis para construção de dispositivos biomédicos utilizando técnicas de prototipagem rápida e biofabricação (nº 2009/16480-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Bolsista Maria Ingrid Rocha Barbosa Schiavon; Investimento R$ 215.732,36 (FAPESP).
3. Redes IPNs de pHema-PLA para aplicação em engenharia tecidual (nº 2011/18525-7); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Bolsista Marcele Fonseca Passos; Investimento R$ 177.978, 84 (FAPESP).

Artigos científicos
CALDERONI, D. R. et al. Paired evaluation of calvarial reconstruction with prototyped titanium implants with and without ceramic coating. Acta Cirúrgica Brasileira. v. 29, p. 579-87. 2014.
JARDINI, A. L. et al. Cranial reconstruction: 3D biomodel and custom-built implant created using additive manufacturing. Journal of Cranio-Maxillo-Facial Surgery. v. 42, p. 1877-84. 2014.
LAROSA, M. A. et al. Microstructural and mechanical characterization of a custom-builtimplant manufactured in titanium alloy by direct metal laser sintering. Advances in Mechanical Engineering. v. 2014. p. 1-8. 2014.

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