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Físico-Química

H2O no nanotubo

Confinada nessa ínfima estrutura a -69ºC, água apresenta simultaneamente duas densidades distintas

Imagem de microscopia eletrônica de microtubos de difenilalanina

Michelle da Silva LiberatoImagem de microscopia eletrônica de microtubos de difenilalaninaMichelle da Silva Liberato

A zero grau Celsius (ºC), a água normalmente se solidifica, virando gelo. Mas, em certas condições específicas, mesmo a temperaturas bem abaixo do ponto de congelamento, ela se mantém líquida e apresenta propriedades termodinâmicas peculiares. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC) acredita ter flagrado um comportamento singular das moléculas de H2O quando submetidas a uma situação extrema. Confinada em micro e nanotubos feitos do composto orgânico difenilalanina e submetida à temperatura de 204 Kelvin (K), ou -69,15ºC, a água não só permanece no estado líquido, algo já conhecido, como exibe simultaneamente duas fases distintas, uma possibilidade teórica até agora não demonstrada em laboratório. “Há uma coexistência de água de alta e de baixa densidade quando a armazenamos nessas condições controladas”, afirma o físico Herculano Martinho, da UFABC, um dos autores de um experimento que forneceu evidências da ocorrência desse duplo rearranjo das moléculas de H2O quando submetidas às condições acima descritas.

Os resultados do estudo, feito sem alteração da pressão atmosférica incidente sobre as diminutas estruturas com água confinada, foram publicados em 1º de junho no periódico científico Physical Chemistry Chemical Physics (PCCP). As amostras de H2O líquidas foram analisadas por meio das técnicas de espectroscopia Raman, capaz de determinar em alta resolução os detalhes estruturais de um material ou substância, e de difração de raios X. Os pesquisadores encontraram evidências de duas “assinaturas físico-químicas” distintas para a água presa nos micro/nanotubos a -69°C. “Usamos os nanotubos mais simples que existem para estudar as propriedades da água confinada”, explica o químico Wendel Alves, da UFABC, outro autor do estudo. Os trabalhos do grupo coordenado pela dupla de pesquisadores são financiados pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Aprisionar a água em micro/nanotubos da molécula biológica é mais fácil do que um leigo pode imaginar. Todo o processo ocorre de forma espontânea, natural, sem nenhum controle de temperatura e pressão, de acordo com uma receita já consagrada. O primeiro passo é sintetizar em laboratório ou adquirir a difenilalanina, peptídeo presente na formação de fibras beta-amiloide na doença de Alzheimer, que pode ser ordenada na forma de micro/nanotubos em um processo de cristalização. “Misturamos os aminoácidos com álcool butílico e água”, conta Martinho. Em uma ou duas horas, formam-se as diminutas estruturas de difenilalanina com moléculas de água no interior dos canais. “Os nanotubos funcionam como uma esponja e retêm a água”, compara Alves.

Cada fio do microtubo é um nanotubo

hiago de Carvalho CiprianoCada fio do microtubo é um nanotubohiago de Carvalho Cipriano

A olho nu, as estruturas estudadas não passam de um montinho de pó branco. Em nível molecular, o arranjo interno do material é mais complexo, embora seja fácil de ser alcançado. As moléculas de difenilalanina se ligam em grupos de seis e formam uma estrutura circular. No centro desse hexâmero, espaço equivalente a 1 nanômetro de diâmetro, ficam aprisionadas em média 24 moléculas de H2O. Essas estruturas circulares com água no meio se ligam entre si no plano vertical e originam nanotubos. A junção de vários nanotubos forma um microtubo de difenilalanina (ver quadro).

Os nanotubos funcionam como tijolos porosos que se agregam para moldar as paredes permeáveis à água do microtubo. A facilidade e o baixo custo de produzir essas estruturas tornaram os estudos com nanotubos feitos de peptídeos um tema frequente na literatura científica atual. Há grupos no Brasil e no exterior analisando a possibilidade de usá-las em diferentes áreas, como biossensores, carregadores de drogas no interior do corpo humano ou até geradores de energia em miniatura (ver Pesquisa FAPESP nº 174).

Segundo Ponto Crítico
Por sabidamente conter água líquida em seu interior, os micro/nanotubos de difenilalanina são uma boa estrutura para analisar possíveis alterações nas propriedades das moléculas de H2O a baixas temperaturas. “Entender o comportamento da água confinada é importante para a biologia e até para a indústria espacial”, comenta Martinho. “Boa parte da água no corpo humano está armazenada em nano e microcanais. No espaço, parte da corrosão do equipamento ocorre pelo acúmulo de água em nanoporos.” Em seu experimento, Martinho, Alves e seus colegas analisaram o comportamento da água confinada no intervalo de temperatura entre 290 K (16,85ºC) e 10 K (-263,15ºC). Aos 204 K, registraram um comportamento anômalo na água, que denotaria a coexistência de arranjos distintos das moléculas de H2O.

A possibilidade de a água líquida super-resfriada apresentar concomitantemente duas fases diferentes é denominada, no jargão dos físico-químicos, seu segundo ponto crítico. Por definição, o ponto crítico de um material é representado por uma determinada temperatura e uma certa pressão em que dois estados distintos dessa substância, quase sempre o líquido e o gasoso, coexistem. Em outras palavras, trata-se de uma situação extremamente específica em que não se consegue dizer se o material é líquido ou gasoso, pois ele é ambos ao mesmo tempo.

A água exibe um (primeiro) ponto crítico quando aquecida a 647 K (374 ºC) e mantida a uma pressão 218 vezes maior do que a atmosférica. Nessa situação, não se consegue diferenciar a água líquida de seu vapor. Nas últimas duas décadas, vários autores propuseram que a água, a baixíssimas temperaturas, poderia apresentar um segundo ponto crítico, no qual se manteria na forma líquida, mas teria duas densidades distintas, uma mais viscosa e outra, menos. Como praticamente tudo cristaliza nessas condições, essa hipótese teórica é de difícil comprovação. “Confinar a água evita formar o cristal e, dessa maneira, o segundo ponto crítico seria visível”, diz a física teórica Márcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda comportamentos anômalos das moléculas de H2O. “O artigo dos pesquisadores da UFABC traz indícios de um segundo ponto crítico da água. Ele não dá a martelada final no tema, mas é um grande avanço.”

Projeto
Auto-organização hierárquica de peptídeos anfifílicos: mecanismos fundamentais e potenciais aplicações (nº 2013/12997-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Wendel Alves (UFABC); Investimento R$ 374.155,00.

Artigo científico
FERREIRA, P. M. et al. Relaxation dynamics of deeply supercooled confined water in L,L-diphenylalanine micro/nanotubes. Physical Chemistry Chemical Physics. 1º jun. 2015.

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