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Embriologia

Silenciar para sobreviver

Uma das cópias do cromossomo X é desativada nas mulheres nos primeiros dias do desenvolvimento embrionário

CAVALLINI JAMES / BSIP /Alamy /Latinstock Os cromossomos sexuais X e Y, encontrados nas células masculinas, e as duas cópias do cromossomo X, típicas das células femininasCAVALLINI JAMES / BSIP /Alamy /Latinstock

Cinco ou seis dias após o espermatozoide fecundar o óvulo, ocorre um fenômeno genético que garante que os embriões do sexo feminino se desenvolvam de modo saudável: o desligamento de uma das duas cópias do cromossomo X. Apesar de sua importância para a viabilidade dos embriões femininos, pouco se sabia sobre o momento em que esse processo era desencadeado, sobretudo nos seres humanos. Em um estudo publicado em setembro na revista Scientific Reports, as geneticistas Lygia da Veiga Pereira e Maria Vibranovski, ambas do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), oferecem uma nova explicação sobre o início desse fenômeno. A partir de análise de sequências de RNA de células de embriões humanos disponíveis em banco de dados públicos, elas verificaram que a inativação do cromossomo X se dá nos primeiros dias após a fecundação, antes do que se pensava.

As células humanas têm 46 cromossomos, cada uma com 22 pares de cromossomos somáticos, iguais em homens e mulheres, e um par de cromossomos sexuais: nas mulheres são dois cromossomos X e nos homens, um X e um Y. Com uma dose dupla dos genes presentes no cromossomo X, as mulheres poderiam produzir duas vezes mais proteínas relacionadas a esses genes do que os homens. Isso não acontece porque, durante o desenvolvimento embrionário, um dos dois cromossomos X é silenciado, evitando que seus genes sejam superexpressos. “A inativação de uma cópia do cromossomo X é um importante mecanismo epigenético responsável por calibrar a atividade dos genes ligados a essas sequências de DNA nas mulheres”, explica Lygia.

Nas últimas duas décadas, muitas hipóteses foram apresentadas na tentativa de explicar esse fenômeno, sem que se chegasse a uma conclusão sobre como e quando isso acontecia. A explicação mais recente foi proposta em março de 2016 por um grupo de pesquisadores suecos em um estudo publicado na revista Cell. Em oposição a quase tudo o que havia sido proposto até então, eles descartaram a existência de um mecanismo de inativação do cromossomo X no início do desenvolvimento embrionário. Segundo eles, a equiparação dos níveis da atividade genética se daria por meio da redução dos níveis de expressão gênica nos dois cromossomos X nos embriões femininos.

Os primeiros indícios sobre o processo de inativação do cromossomo X foram identificados na década de 1940 pelo médico canadense Murray Llewellyn Barr (1908-1995), que observou um pequeno novelo de DNA junto à face interna da membrana do núcleo das células femininas que não se desenrolava durante a mitose. Nos anos 1960, a partir dos trabalhos da geneticista inglesa Mary Lyon (1925-2014), constatou-se que essa estrutura era um cromossomo X inativado, e que isso era uma característica própria das células das fêmeas dos mamíferos que assegurava o desenvolvimento adequado do embrião. Nos anos seguintes, verificou-se que esse processo se dava de modo distinto em outros organismos. Nos vermes, a expressão dos genes nos dois cromossomos X da fêmea era reduzida pela metade. Já nas moscas, os machos duplicavam a expressão dos genes de seu único cromossomo X.

Em mamíferos, a inativação do cromossomo X foi estudada sobretudo em células embrionárias de camundongos, nos quais esse processo se dá assim que o embrião em estágio blastocisto se implanta na parede do útero e as células começam a se diferenciar. Sabe-se hoje que essa inativação pode acometer tanto o cromossomo X paterno como o materno, e que, uma vez definido o X inativo, seus genes deixam de ser expressos, característica que se mantém nas células descendentes. Até então, pensava-se que o processo em humanos seria igual ao observado em camundongos. Nos últimos anos, no entanto, com a descoberta das células-tronco embrionárias humanas e o desenvolvimento de uma nova técnica de mapeamento de DNA capaz de sequenciar o genoma completo de uma única célula, tornou-se possível estudar melhor esse fenômeno e com isso muitos grupos passaram a investigar a inativação do cromossomo X humano.

O grupo de Lygia e Maria decidiu seguir essa linha de pesquisa em 2013. Ao lado da bióloga Joana Carvalho Moreira de Mello, elas começaram a trabalhar no sequenciamento de RNA de células isoladas de embriões humanos. A estratégia permite identificar quais genes estão ativos, ou determinar em que momento se tornam ativos. “Pretendíamos analisar a atividade dos genes ligados ao cromossomo X em embriões em diferentes estágios de desenvolvimento”, explica Maria. No entanto, no mesmo ano, um grupo de pesquisadores chineses publicou um artigo analisando a mudança de expressão gênica em embriões a partir dos mesmos experimentos que elas pretendiam fazer.

Atalho inesperado
Os chineses haviam feito toda a parte laboratorial: conseguiram os embriões humanos, separaram as células, extraíram e sequenciaram o RNA, mas não olharam para a inativação do cromossomo X. Eles também disponibilizaram todas as informações em bancos de dados genômicos. “Com isso, não precisamos gastar tempo com os experimentos, apenas com a análise dos dados prontos”, conta Lygia, que também é chefe do Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias e pesquisadora principal do Centro de Terapia Celular da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. Elas interromperam o sequenciamento de RNA e passaram a analisar os dados com o apoio de estratégias de bioinformática, determinando o sexo dos embriões com base em dados de RNA e avaliando a expressão dos genes no cromossomo X.

No estudo, elas monitoraram a dinâmica de expressão dos genes do cromossomo X no início do desenvolvimento embrionário humano. Verificaram que o gene XIST, responsável por iniciar a inativação, era expresso em embriões femininos a partir do estágio de oito células e que sua expressão se estabilizava no estágio de blastocisto, seis dias após a fertilização. Os resultados sugerem que o processo de inativação do cromossomo X em embriões humanos tem início em um estágio anterior ao dos embriões de camundongos. “O ajuste da atividade gênica em humanos se dá pela inativação de um dos cromossomos X, como em camundongos”, explica Lygia. “A diferença é que em humanos esse processo começa a se desenhar antes de o embrião se fixar à parede do útero, enquanto em camundongos isso acontece quando as células estão começando a se especializar.”

Na avaliação da geneticista Anamaria Camargo, do Centro de Oncologia Molecular do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, o trabalho se destaca pelo rigor científico e pela análise cuidadosa dos dados. “O padrão de expressão observado é compatível com o modelo de inativação de um dos cromossomos X e permite refutar o modelo proposto pelos pesquisadores suecos”, comenta a pesquisadora, que não participou do estudo na Scientific Reports. “Trata-se de uma contribuição valiosa para uma melhor compreensão do mecanismo de ajuste da atividade dos genes ligados ao cromossomo X em seres humanos.”

Segundo Lygia, o próximo passo é estudar como se dá a escolha do cromossomo que será silenciado, isto é, se se trata de um processo aleatório ou não. Para isso, pretendem analisar o processo de inativação do cromossomo X logo após a fertilização. As pesquisadoras também pretendem seguir monitorando as etapas seguintes da inativação do cromossomo X para investigar melhor esse mecanismo.

Projetos
1. Centro de Terapia Celular – CTC (nº 13/08135-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Dimas Tadeu Covas (FMRP-USP); Investimento R$ 25.560.734,64 (para todo o projeto).
2. O papel da gametogênesis na origem e evolução dos genes novos (nº 15/20844-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Maria Dulcetti Vibranovski (IB-USP); Investimento R$ 394.581,10.
3. Análise in silico do estado epigenético do cromossomo X em embriões humanos em estágio pré-implantacional (nº 15/03610-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Maria Dulcetti Vibranovski (IB-USP); Bolsista Joana Carvalho Moreira de Mello; Investimento R$ 233.872,74.

Artigos científicos
MELLO, J. C. et al. Early X chromosome inactivation during human preimplantation development revealed by single-cell RNA-sequencing. Scientific Reports. v. 7, 10794. 7 set. 2017.
LANNER, F. et al. Single-cell RNA-Seq reveals lineage and X chromosome dynamics in human preimplantation embryos. Cell. v. 165, n. 4, p. 1012-26. 5 mai. 2016.

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