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Fonte de ouro e régua do universo

Choque de astros produz elementos químicos pesados e permite medir a taxa de expansão do Cosmo

Podcast: Valdir Guimarães

 
     
A colisão de estrelas de nêutrons registrada em 17 de agosto terminou em uma explosão chamada quilonova. O evento lançou ao espaço uma quantidade colossal de matéria incandescente que brilhou por dias. Mudanças no brilho e na cor da quilonova proporcionaram as evidências mais robustas de que a matéria e a energia liberadas em choques de estrelas de nêutrons produzem boa parte dos elementos químicos mais pesados do Universo. Não se sabe com precisão quais elementos foram gerados nem quanto deles foi forjado na explosão, mas é quase certo que houve uma grande produção de urânio, ouro e outros metais raros, como a platina.

“O estudo da radiação emitida pela quilonova permitirá ter uma ideia de quais elementos foram sintetizados”, conta o físico nuclear Valdir Guimarães, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). Ele não participou das observações, mas acompanhou a publicação dos resultados. “Alguns trabalhos sugerem que o evento tenha produzido uma quantidade de ouro igual a massa da Terra.” Além de ouro e platina, estima-se que tenham se formado outros 60 elementos que constam da tabela periódica e, somados, correspondem a menos de 1% da matéria visível do Universo.

“Esse evento forneceu um indício muito forte de que uma parte importante dos elementos químicos pesados encontrados na natureza é produzida em explosões do tipo quilonova”, conta o astrofísico brasileiro Vinicius Placco, professor na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. Ele estuda a abundância de elementos químicos em estrelas pobres em metais da Via Láctea e compara esses padrões com predições teóricas para um fenômeno mais energético chamado supernova, a morte explosiva de estrelas com massa dezenas de vezes superior à do Sol, que também produz elementos pesados. Com outros brasileiros, Placco integrou o grupo que observou a quilonova de agosto com o telescópio T 80 Sul, instalado no Chile (ver reportagem). Ele explica por que ainda não é possível conhecer tudo o que foi produzido no evento. “Como o brilho na faixa da luz visível diminui 360 vezes em 10 dias, é difícil fazer medições detalhadas da abundância dos elementos químicos formados”, relata. “Será necessário observar mais eventos de quilonova para obter essas estimativas.”

21,5 mil terras
A quilonova de 17 agosto não foi a primeira a ser descoberta. Em 2013, uma outra havia sido registrada pelo grupo do astrofísico Nial Tanvir, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, com os telescópios espaciais Swift e Hubble. Mas o brilho era fraco e não havia informações sobre a causa da explosão – se o choque havia sido de duas estrelas de nêutrons ou de uma estrela de nêutrons e um buraco negro. Já o evento de agosto é um dos mais bem documentados pela astronomia nos últimos anos. Houve registro de sua luz em todas as faixas do espectro eletromagnético, e a análise das ondas gravitacionais emitidas na aproximação final das estrelas permitiu saber que uma tinha 30% e outra 60% mais massa que o Sol.

O anúncio da detecção da quilonova ocorreu em 16 de outubro e nos dias seguintes uma enxurrada de artigos científicos detalhou o fenômeno. Depois de duas semanas, pesquisadores de quatro universidades norte-americanas consolidaram a primeira síntese das observações da quilonova e a tornaram disponível nos ArXiv, um repositório de artigos científicos. Medições feitas por 38 telescópios durante até um mês sugerem que o choque das estrelas lançou ao espaço matéria correspondente à massa de 21,5 mil planetas como a Terra.

Da explosão, restou um buraco negro, um objeto escuro e extremamente denso, do qual nem a luz escapa. A energia do choque produziu em menos de um segundo toda uma gama de elementos químicos pesados ao pressionar as partículas sem carga elétrica (nêutrons) liberadas pelas estrelas contra os núcleos de elementos químicos mais leves lançados ao espaço na explosão. Esse mecanismo, a captura rápida de nêutrons ou processo r, produz elementos tão pesados quanto o urânio, que contém em seu núcleo 92 prótons (partículas de carga elétrica positiva) e 146 nêutrons. Elementos mais pesados podem surgir, mas são instáveis e se desfazem rapidamente, liberando outras partículas e energia na forma de radiação eletromagnética – em especial, raios gama, uma luz invisível ao olho humano.

A energia emitida pela conversão de elementos pesados e instáveis em outros mais leves e estáveis faz a cor da quilonova mudar. Nos primeiros dias, os telescópios captaram uma luz azulada, produzida por uma nuvem com massa de 5,3 mil Terras, rica em elementos mais leves que o lantânio (57 prótons e 139 nêutrons), que se afastava do local da colisão a 81 mil quilômetros por segundo, segundo o artigo, submetido para publicação na Astrophysical Journal Letters. À medida que esse material se expandia e esfriava, a região central da quilonova tornou-se primeiro púrpura e depois avermelhada. “A mudança de cor é consequência do decaimento radiativo dos elementos químicos mais pesados, com massa mais elevada que a do lantânio, concentrados em uma região da nuvem de matéria que se deslocava mais lentamente”, explica Placco.

Estima-se que a colisão de estrelas de nêutrons seja rara no Universo – ocorreria uma a cada milhão de anos em nossa galáxia. Os astrofísicos esperam, porém, que o aumento da sensibilidade dos observatórios Ligo e Virgo torne a detecção desses eventos corriqueira. Essa perspectiva anima astrofísicos e cosmólogos. É que a observação conjunta das ondas gravitacionais e da luz produzidas na colisão de estrelas de nêutrons pode ajudar a resolver uma disputa na cosmologia: conhecer o valor da constante de Hubble, um número que indica a taxa de expansão do Universo e, por consequência, sua idade e composição.

Mais longe, mais rápido
Desde que medições feitas pelo astrônomo norte-americano Edwin Hubble confirmaram em 1929 que o Universo estava em expansão, vários grupos tentam calcular com precisão esse ritmo, que cresce com a distância. O próprio Hubble teria calculado que a velocidade de afastamento dos objetos celestes aumentava 500 quilômetros por segundo a cada megaparsec (3,3 milhões de anos-luz). Hoje se sabe que esse valor, medido por duas estratégias, é bem mais baixo.

Um dos métodos consiste em estimar as distâncias a partir da luminosidade de cefeidas, estrelas que pulsam com regularidade e têm brilho bem conhecido. Com essa técnica, obtém-se o valor de 73 quilômetros por segundo por megaparsec para a constante. Mas há problemas. “A técnica das cefeidas exige uma calibração do brilho dessas estrelas”, explica o astrofísico Luis Raul Abramo, professor do IF-USP. “Essa calibração é empírica, apesar de os modelos do interior dessas estrelas serem bastante sofisticados.”

A outra forma de estimar o valor da constante é usando as medições que satélites na órbita terrestre fizeram da radiação cósmica de fundo, uma forma de luz invisível (na faixa de micro-ondas) que permeou o Universo 380 mil anos após o Big Bang. Essa luz estava distribuída segundo certo padrão naquela época, quando o Cosmo era mais denso. Conhecendo como variou a densidade e a geometria desse padrão, os físicos calculam a constante de Hubble – o resultado é 67 quilômetros por segundo por megaparsec. Essa forma também é indireta e pode gerar variações, pois depende do modelo usado para explicar o Universo – o mais aceito é que ele seja plano, formado por matéria comum, matéria escura e energia escura, e que se encontre em expansão acelerada.

A diferença entre os dois valores para a constante de Hubble é pequena (10%), mas incomoda os cosmólogos. “Ou as medições feitas com as cefeidas precisam ser corrigidas ou há problemas com o modelo cosmológico mais aceito, o que teria consequências teóricas importantes na cosmologia”, afirma o astrofísico Jailson Alcaniz, do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro.

A expectativa é de que a disputa seja resolvida com mais medições de distância por meio das ondas gravitacionais emitidas em colisões de estrelas de nêutrons. A medição de agosto resultou em um valor intermediário da constante: 70 quilômetros por segundo por megaparsec, segundo artigo publicado na Nature. A imprecisão, nesse caso, ainda é grande. “As ondas gravitacionais permitem fazer uma medição mais direta dessas grandes distâncias, que, no caso das estrelas de nêutrons, podem ser associadas à análise da luz para verificar a velocidade de afastamento”, conta Abramo. “Na minha opinião, esse dilema será resolvido com mais observações de ondas gravitacionais.”

Artigos científicos
ASHLEY VILLAR, V. et al. The complete ultraviolet, optical, and near-infrared light curves of the kilonova associated with the binary neutron star merger GW170817: Homogenized data set, analytic models, and physical implications. ArXiv. On-line. 31 out. 2017 (submetido para publicação à revista The Astrophysical Journal Letters).
THE LIGO SCIENTIFIC COLLABORATION AND THE VIRGO COLLA­BORATION. et al. A gravitational-wave standard siren measurement of the Hubble constant. Nature. v. 551, p. 85-8. 2 nov. 2017. On-line. 16 out. 2017.

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