Em março de 1912, os médicos Arthur Neiva e Belisário Penna, notáveis cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, deixaram seus laboratórios e embarcaram para Salvador, na Bahia, de onde seguiram rumo aos sertões de Pernambuco, Piauí e Goiás. A bordo de paquetes e marias-fumaças, a cavalo ou no lombo de mulas, eles percorreram regiões pouco conhecidas, avaliando as condições de saúde da população e a ocorrência de moléstias infecciosas. Ao mesmo tempo, documentavam aspectos geográficos, econômicos e socioculturais dos lugares que visitavam. Os registros dessa expedição resultaram em uma crônica das condições de vida da população interiorana, seus hábitos e modo de pensar. As fotos e diários produzidos tiveram grande repercussão entre a elite médica e intelectuais do país ao revelarem um Brasil doente, explorado e inculto que vivia à margem do cosmopolitismo das grandes cidades.
A expedição chefiada por Neiva e Penna veio na esteira de outras viagens científicas levadas a cabo no início do século XX por demanda de órgãos governamentais e empresas privadas. O objetivo era explorar os potenciais econômicos do território brasileiro e promover a integração nacional a partir de ações que levassem o desenvolvimento aos rincões do Brasil. Já em 1906 o médico Antônio Cardoso Fontes (1879-1943) havia sido enviado a São Luís, no Maranhão, para conter um surto de peste bubônica, enquanto o médico Carlos Chagas (1879-1934) executava a primeira campanha contra a malária no país, em Itatinga (SP), onde a Companhia Docas de Santos construía uma usina hidrelétrica. No ano seguinte, ao lado de Arthur Neiva (1880-1943), Chagas também promoveu uma campanha para debelar a malária em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a Inspetoria Geral das Obras captava água para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro.
Também em 1907, Chagas e Belisário Penna (1868-1939) seguiram para Minas Gerais para conter um surto de malária que dificultava os trabalhos de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil. Anos mais tarde, em 1910, o médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) realizou inspeções em áreas próximas às obras da usina hidrelétrica que a Light and Power construía em Ribeirão das Lages, no Rio.
As expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz (atual Fundação Oswaldo Cruz), entre 1911 e 1913, partiram das mesmas demandas. Entre setembro de 1911 e fevereiro de 1912, o médico Astrogildo Machado (1885-1945) e o farmacêutico Antônio Martins percorreram os vales do São Francisco e do Tocantins com as equipes da Estrada de Ferro Central do Brasil. Outra viagem importante foi a de Carlos Chagas, Pacheco Leão (1872-1931) e João Pedro de Albuquerque (1874-1934), em expedição requisitada pela Superintendência da Defesa da Borracha, entre outubro de 1912 e março de 1913. “Viajar por empreitada não era novidade para os pesquisadores de Manguinhos”, esclarece o historiador Fernando Pires-Alves, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz). “Muitos já haviam conduzido inspeções e medidas profiláticas em canteiros de obras de ferrovias, barragens e portos ao longo da costa brasileira.”
No entanto, nenhuma expedição repercutiu tanto quanto a chefiada por Neiva e Penna, que pretendia conhecer e mapear a ocorrência de doenças no norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e norte e sul de Goiás. Os cientistas percorreram essas regiões entre abril e outubro de 1912. Dormiam muitas vezes em tendas improvisadas no meio da mata e estudavam as condições de vida e a história das localidades que visitavam para melhor compreender a incidência e a distribuição de algumas moléstias e propor medidas profiláticas para combatê-las. “A expedição de Neiva e Penna se destaca pelos detalhes das observações, depoimentos dos moradores das regiões percorridas e pelo vultoso registro fotográfico sobre o modo de vida das populações interioranas do Brasil”, conta a historiadora Dominichi Miranda de Sá, também do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da COC-Fiocruz.
As cerca de 1.700 fotografias foram tiradas pelo fotógrafo da equipe, José Teixeira. Parte delas foi recuperada e hoje se encontra no acervo do Departamento de Arquivo e Documentação da COC-Fiocruz, que também reúne os diários de viagem e relatórios feitos pelos cientistas. Os registros indicam que os sertanejos eram vítimas de doenças como malária, tuberculose, sífilis, leishmaniose, hanseníase e bouba, um tipo de doença dermatológica. Eram frequentes os casos de difteria e carbúnculo, uma infecção de pele que costuma atingir a nuca e as costas. Alguns dos aspectos que impressionaram os médicos foram os casos de doenças desconhecidas, como “entalação” e “vexame”.
Os que padeciam de “entalação” “provocavam irreprimivelmente o riso quando, em trejeitos e ginásticas tragicômicas, esforçavam-se por deglutir o bolo alimentar, o que nem sempre conseguem, deixando de alimentar-se, às vezes, dois a três dias a fio”, escreveram os sanitaristas em seu diário de viagem. Já o “vexame” acometia sobretudo as mulheres, desencadeando “um ataque silencioso, mudo, sem contorções nem convulsões de qualquer espécie, caindo a paciente, se estava em pé, ou continuando sentada, se já estava assim, sem fala, sem movimento, mas ouvindo, muitas vezes, e vendo o que se passava ao redor, durante esse estado de imobilidade de 10 minutos a uma hora”. Essas condições foram mais tarde esclarecidas como sendo manifestações clínicas da doença de Chagas.
Os pesquisadores também registraram práticas curandeiras. Uma delas, aplicada a pessoas mordidas por cães infectados com o vírus da raiva — ou “estripados”, no jargão local —, consistia em uma mistura de alho, sal e urina, além da introdução da chave do sacrário da igreja na boca do paciente. Já para os casos de difteria, administrava-se limão e o dente canino esquerdo de um porco-do-mato que, depois de torrado, deveria ser diluído em álcool e bebido. Nas comunidades isoladas de Porto Nacional (no atual estado de Tocantins) e Goiás, fizeram observações sobre o estilo de vida dos habitantes: “(…) homens do mato, que falam pouco, ouvem muito e, em silêncio, decifram os sinais da natureza, indicando-lhes quando plantar e quando colher”. Diferentemente do sertão do Piauí, no de Porto Nacional e Goiás quase não havia bois, cavalos e mulas. O fumo só vingava em terras adubadas e o milho só dava uma ou duas espigas. Também não circulava dinheiro, e todos os mantimentos eram obtidos por meio da barganha.
“Raro é o indivíduo que sabe o que é o Brasil”, escreveu Neiva em uma de suas notas. “O governo é, para esses párias, um homem que manda na gente, e a existência desse governo conhecem-na porque esse homem manda todos os anos cobrar-lhes os dízimos”, destacaram os médicos. Os relatórios de Neiva e Penna foram publicados em 1916 na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Apresentavam um sertão marcado pela vastidão, baixa densidade demográfica e pelo analfabetismo, em uma situação de ausência de meios de transporte e de vias de comunicação com o litoral. “Os relatos também evidenciaram a presença mínima de médicos, além da pobreza, apatia, desatenção às leis e resolução violenta de conflitos”, diz Dominichi.
Segundo ela, os escritos tiveram grande repercussão em meio à opinião pública letrada das cidades do Rio e de São Paulo a partir de textos e artigos jornalísticos publicados em jornais como o Correio da Manhã. Após a expedição, Neiva e Penna se tornaram propagandistas contumazes do saneamento do Brasil, procurando sensibilizar governantes sobre a ideia de que o progresso econômico, social e moral do país só viria com a melhoria das condições de saúde da população rural. Vários escritores foram influenciados pelos relatos desses cientistas, entre eles Monteiro Lobato (1882-1948), que aderiu à campanha em prol da consciência sanitária nacional. O próprio Lobato, após a divulgação dos relatórios, reviu suas concepções sobre Jeca Tatu — personagem do sertão que se tornou símbolo do Brasil rural e aparece no conto “Urupês”, que integra o livro homônimo publicado em 1918 —, em artigos publicados na imprensa.“O Jeca deixou de ser um problema, um mestiço preguiçoso e indolente diante de uma natureza que tudo dava, transformando-se em um homem doente e abandonado pelo poder público”, diz Pires-Alves.
A repercussão dos relatos de viagem também contribuiu para o surgimento, em fevereiro de 1918, do Movimento Pró-Saneamento do Brasil. Outro desdobramento foi a criação de postos de profilaxia rural em diferentes estados do país. “O valor informativo e documental das imagens e dos diários de viagem fazem com que as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz tenham um alcance histórico inegável por terem contribuído para um conhecimento mais aprofundado sobre a sociedade brasileira”, destaca a socióloga Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz e autora do livro Um sertão chamado Brasil.
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