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Formação

Portas de entrada para a universidade

Avanço de ações afirmativas cria diversidade nas formas de ingressar no ensino superior

estúdio rebimboca A difusão de ações afirmativas na seleção dos estudantes das universidades brasileiras começa a produzir efeitos que não se limitam à meta de ampliar o acesso de alunos vindos de escolas públicas ou à garantia de representatividade de negros, pardos e indígenas nos cursos de graduação. No caso das universidades estaduais paulistas, o ingresso no ensino superior, que antigamente dependia só do vestibular, passou a ser mediado por um cardápio de alternativas que procuram garantir a qualidade dos candidatos e incluem a aplicação de bônus em resultados do vestibular, a utilização das notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e eventualmente até atalhos em que a entrada não depende de uma prova.

O novo modelo de ingresso anunciado em novembro pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é o exemplo mais radical dessa tendência. A partir de 2019, passa a vigorar um sistema de cotas étnico-raciais que irá reservar 25% das vagas disponíveis na instituição para candidatos que se autodeclararem pretos ou pardos. Seu mecanismo é bem mais complexo do que o sistema de cotas que vigora nas 63 universidades federais, criado por uma lei de 2012. As vagas da Unicamp serão oferecidas em dois sistemas paralelos, sendo 80% pelo vestibular (com um quarto delas reservado para autodeclarados pretos e pardos) e as demais pelas notas de candidatos no Enem (15% do total de vagas para egressos de escolas públicas e 5% para pretos e pardos). Além disso, manteve-se uma outra política afirmativa criada há mais de uma década que concede bônus na pontuação nas duas fases do vestibular para candidatos oriundos de escolas públicas. “Com essas medidas, busca-se garantir que ao menos a metade dos calouros venha do sistema público e a parcela de pretos e pardos entre os alunos suba dos atuais 20% para 37%, que é a proporção desses grupos na população paulista”, diz José Alves de Freitas Neto, coordenador do vestibular da Unicamp.

Outras inovações foram aprovadas pelo Conselho Universitário e serão implementadas em 2019, como a criação de um exame específico para o ingresso de indígenas e a possibilidade, inédita no país, de acesso sem vestibular para medalhistas de olimpíadas científicas – em ambos os casos, o número de vagas abertas será definido por cada unidade da universidade. “Criamos possibilidades que ampliam as chances de acesso e mostram a força da universidade pública em propor ideias novas para a entrada dos estudantes”, diz o físico Marcelo Knobel, reitor da Unicamp. “Não estamos lidando só com políticas de inclusão, mas com aperfeiçoamento do ingresso, buscando os melhores alunos”, diz.

A Unicamp também avalia a possibilidade de expandir um programa de ação afirmativa criado na universidade em 2012, o ProFIS (sigla para Programa de Formação Interdisciplinar Superior). A iniciativa seleciona os melhores alunos do 3º ano de ensino médio público de Campinas, com base nas notas do Enem, e lhes oferece um curso de dois anos com conteúdo multidisciplinar. Ao final do curso, os alunos com boas notas têm a chance de ingressar na graduação da Unicamp sem vestibular. Há estudos para ampliar o número de cidades beneficiadas pelo programa e atingir um público maior do que o atual.

As universidades de São Paulo (USP) e Estadual Paulista (Unesp) também modificaram a sua forma de ingresso em anos recentes. A USP, que há mais de uma década concedia bônus na pontuação do vestibular para alunos de escolas públicas e pretos, pardos e indígenas, passou a oferecer em 2015 parte de suas vagas pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que seleciona os calouros de universidades federais a partir de suas notas no Enem. Das 11.147 vagas oferecidas pela USP em 2018, 2.745 serão disputadas via Sisu, mas em três listas separadas, sendo 423 por ampla concorrência, 1.312 para estudantes que fizeram o ensino médio em escolas públicas e 1.010 para alunos de escolas públicas autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Com o esquema, a USP aumentou a proporção de egressos do ensino público de 32,3% em 2014 para 36,9% em 2017.

Um estudo feito pela Pró-Reitoria de Graduação da USP em 2016 comparou o desempenho dos alunos que ingressaram pelo vestibular e pelo Sisu em 22 cursos. Ao final do segundo semestre letivo, os estudantes que entraram por meio do vestibular tiveram médias maiores que as do Sisu em cursos como medicina, direito e ciências sociais; os do Sisu levaram vantagem em carreiras como engenharia de materiais, economia, física, química, entre outros. De todo modo, a diferença entre as médias dos dois grupos foi pequena.

léo ramos chaves Estudantes da Universidade Federal do ABC…léo ramos chaves

Em julho, a USP decidiu mudar novamente as regras e instituir um sistema que vai destinar a metade das vagas oferecidas para alunos de escolas públicas, com uma sub-reserva para autodeclarados negros, pardos e indígenas. A iniciativa será implantada de forma escalonada: no ingresso de 2018, 37% das vagas de cada curso e turno caberão a alunos de escolas públicas. Em 2019, a proporção será de 40% e em 2025 de 45%, chegando a 50% em 2021. “É a primeira vez que a USP adota uma política institucional de cotas sociais e raciais”, afirma o pró-reitor de Graduação Antônio Carlos Hernandes.

Isso não é novidade para a Unesp. Em 2013, a universidade criou de forma pioneira entre as estaduais paulistas um sistema de cotas semelhante ao das federais. Progressivamente, aumentou a reserva de vagas até chegar, no vestibular de 2018, a 50% para alunos de escolas públicas, sendo parte delas destinada a pretos e pardos, de modo que esse grupo atingisse 35% dos aprovados. “A Unesp sempre conseguiu atrair um contingente robusto de alunos de escolas públicas, mas para cumprir a meta de 50% foi necessário recorrer às cotas”, diz Gladis Massini-Cagliari, pró-reitora de Graduação da universidade.

A meta a que Gladis se refere, de reservar 50% para alunos de escolas públicas e 35% para pretos, pardos e indígenas, foi definida pelo Programa de Inclusão por Mérito no Ensino Superior Público de São Paulo (Pimesp), lançado no final de 2012 pelo governo paulista, e adotada, com formatos específicos, pelas três universidades estaduais. “O Pimesp incorporou uma demanda da sociedade por ampliar a presença de alunos de escolas públicas que representem a diversidade da população. Com isso, as universidades estaduais tiveram de mudar seus sistemas de ingresso”, explica Fernanda Estevan, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da USP, uma estudiosa das ações afirmativas.

Em sua tese de livre-docência, defendida em 2017, Fernanda analisou os efeitos do sistema de bônus no vestibular criado pela Unicamp em 2005, um esforço à época inovador para ampliar a inclusão social e racial na universidade sem recorrer a cotas. “O programa era interessante e teve resultados positivos”, concluiu. O sistema partia de um pressuposto, segundo Fernanda, pouco explorado no debate público. “Ele foi construído a partir de evidências estatísticas segundo as quais candidatos de escolas públicas cujas notas no vestibular não tinham diferença muito grande em relação às dos candidatos de escola privada podiam ter um desempenho muito satisfatório na universidade, às vezes até superior ao dos que vieram de colégios particulares. Conceder um bônus de 40 pontos ajudaria a trazer talentos da escola pública para a universidade.”

A pesquisadora constatou que o sistema ampliou em 30% a probabilidade de um aluno de escola pública entrar na Unicamp, além de aumentar a proporção de estudantes de baixa renda. Não foram observados nas políticas de bônus efeitos colaterais, como um eventual desestímulo a que os beneficiados se esforçassem para passar no vestibular. Segundo ela, há indícios de que o bônus teve influência positiva na escolha de carreiras, estimulando egressos de escolas públicas a se aventurarem nos cursos mais concorridos.

Para Fernanda, o programa teve efeitos limitados – o número de candidatos ao vestibular que vinham de escolas públicas atingiu um teto em torno de 35%  do total – por razões estranhas à sua concepção. “No vestibular de 2005, quando foi implantado, houve aumento do número de candidatos de escolas públicas, mas isso estancou no ano seguinte. Alguns fatores podem ajudar a entender o fenômeno, como a ampliação das vagas nas universidades federais e a oferta de bolsas no sistema privado do programa Universidade Para Todos, o Prouni, mas seria preciso estudar essas hipóteses com mais profundidade”, explica. Renato Pedrosa, professor do Instituto de Geociências da Unicamp que coordenou o vestibular da universidade de 2003 a 2011, aponta que há uma década a porcentagem de pessoas que se formam no ensino médio estancou na casa dos 66% em São Paulo – no Brasil, a média é de 55%. “Contávamos que o contingente fosse aumentar, elevando o número de candidatos de escolas públicas nos vestibulares e o de aprovados. Mas isso não aconteceu.”

léo ramos chaves …e turma de calouros de medicina da Unicamp em 2016, que, graças a bônus na pontuação do vestibular, teve quase 70% de alunos vindos da rede públicaléo ramos chaves

Há dois anos, a Unicamp fez um primeiro movimento para aumentar a inclusão, sem ainda, contudo, recorrer à reserva de vagas. O bônus na nota do vestibular subiu para até 120 pontos e, com isso, a proporção de calouros vindos de escolas públicas bateu em média 50% do total da universidade, tanto em 2016 quanto em 2017, conforme previsto no Pimesp. Mas a estratégia teve efeitos inesperados: em cursos muito concorridos, como medicina e arquitetura, em que a diferença entre as notas de muitos candidatos é pequena, o bônus tornou-se uma vantagem muito forte para os alunos de escolas públicas, muito superior àquela que se espera que um programa de ação afirmativa lhes proporcione. Já em cursos de pouca demanda, o sistema colocou na universidade alunos com desempenho muito baixo no vestibular, que tiveram dificuldades em permanecer na instituição. “O bônus exagerado distorceu os resultados do vestibular”, avalia Knobel. Segundo o reitor, o novo sistema híbrido de bônus, cotas e vestibular busca ser eficiente na inclusão social e racial, ao mesmo tempo atraindo graduandos com potencial elevado.

A experiência acumulada com cotas e outras ações afirmativas no país dissipou os temores de que haveria uma queda drástica no nível dos estudantes e na qualidade do ensino. “Quando a concorrência em um curso é grande no vestibular, acima de 50 candidatos por vaga, praticamente não há o perigo de os alunos cotistas serem despreparados. Como a quantidade de candidatos de alto desempenho sempre é muito elevada, também há nesse grupo muitos beneficiários de ações afirmativas que conseguem se manter no curso e se tornam bons profissionais”, afirma Renato Pedrosa. O risco das cotas, segundo ele, concentra-se nos cursos de baixa demanda, que podem receber alunos sem condição de permanecer neles. Para Pedrosa, a ideia de que o vestibular é a única forma adequada de seleção é incorreta. “O aluno com a maior nota no vestibular raramente tem o melhor desempenho ao longo do curso. É possível pensar em formas de seleção que tragam para a universidade estudantes com potencial, mesmo que tenham alguma deficiência ou não tenham se preparado bem para o vestibular.”

A socióloga Rosana Heringer acompanha os efeitos da adoção de cotas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é docente da Faculdade de Educação, e refuta a ideia de que o sistema teve impacto negativo na qualidade do ensino. “Dificuldades de acompanhar o curso e reprovações em disciplinas de ciências exatas podem ser um pouco mais expressivas entre os cotistas, mas são frequentes entre todos os estudantes”, afirma. “Os problemas sempre existiram em cursos com pouca concorrência no vestibular. No de pedagogia, muitos alunos têm dificuldade de acompanhar o ritmo de leituras e não desenvolveram adequadamente habilidades de escrita. Na licenciatura em física, são comuns problemas com as disciplinas de cálculo. Isso também aparece agora pontualmente em outros cursos, mas conhecemos as ferramentas para enfrentá-los.”

Tais ferramentas seguem duas vertentes: as que buscam dar condições econômicas para que os estudantes permaneçam, principalmente por meio de bolsas, e as que têm como foco as dificuldades acadêmicas, na forma de apoio pedagógico e psicológico. No Brasil, a preocupação tem se concentrado na primeira vertente. Rosana Heringer coordena um projeto para comparar a situação do Brasil e dos Estados Unidos em relação ao ingresso e à permanência de estudantes pretos e pardos no ensino superior. “Em relação ao acesso ao ensino superior, os sistemas dos dois países são muito distintos. A proporção de jovens de 18 a 24 anos nas universidades norte-americanas é três vezes maior do que a daqui. Lá o ensino é maciçamente pago, embora existam esquemas de escalonamento de pagamento de acordo com o rendimento da família, financiamento estudantil e bolsas oferecidas por entidades filantrópicas. Entretanto, o endividamento dos estudantes com o financiamento estudantil tornou-se um problema crônico e gravíssimo naquele país”, observa.

Em relação a políticas de permanência, as diferenças também são grandes. “Nos Estados Unidos, as universidades são muito preocupadas em promover o sucesso acadêmico dos estudantes e se responsabilizam por oferecer vários tipos de apoio. Nisso, nós ainda estamos engatinhando”, afirma. Entre os mecanismos disponíveis nas universidades norte-americanas, há monitorias, a presença de tutores, plantões de atendimento aos estudantes, entre outros exemplos.

Eduardo Anizelli / Folhapress Prova da Fuvest em 2016: parte das vagas da USP foi disputada no vestibular e outra parte pelo sistema do SisuEduardo Anizelli / Folhapress

Uma crítica comum às políticas afirmativas é a de não terem impacto nas causas do acesso restrito de pobres e negros à universidade pública, que são a má qualidade da educação básica e a desigualdade social do país. “Sou a favor de políticas inclusivas, mas não considero cota uma solução adequada”, afirmou a antropóloga Eunice Ribeiro Durhan, professora emérita da USP, em um debate promovido sobre cotas pela Rádio USP em julho. “É tentar resolver o problema da enorme desigualdade social no Brasil através de uma medida paliativa. Os negros não entram nas universidades não por que há preconceito contra eles, mas porque são pobres. Renda é o fator mais importante na caracterização do desempenho educacional das pessoas. Quando se criam as cotas, no fundo evita-se enfrentar esse problema.” Eunice foi uma das responsáveis por um documento sobre ações afirmativas lançado em 2013 pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) e coordenado pelo físico José Goldemberg, atual presidente da FAPESP. O documento sustenta que é necessária uma reestruturação do ensino básico e fundamental, para garantir a preparação adequada dos estudantes, e propõe medidas de curto prazo, como a criação de cursos preparatórios para o ingresso nas universidades voltados para alunos carentes, acompanhados por um sistema de concessão de bolsas de estudo.

José Eduardo Krieger, professor da Faculdade de Medicina da USP que presidia a Aciesp quando o estudo foi publicado, afirma que há incompatibilidade entre o conceito das cotas e a natureza das universidades que atuam na fronteira do conhecimento. “Em vários países, discute-se a sustentabilidade das universidades de pesquisa. Elas têm um papel vital na formação de líderes e na geração do conhecimento, mas custam muito caro. Especialmente na Europa, há um debate sobre a necessidade de concentrar recursos em um número restrito de instituições para que elas consigam cumprir seu papel”, diz Krieger. Uma universidade de excelência, ele pontua, depende de sua capacidade de atrair os melhores alunos independentemente da cor da pele. “As cotas, além de não resolverem o problema dramático da qualidade do ensino fundamental e médio, podem enfraquecer as universidades de pesquisa. Temos poucas delas no Brasil, como as três universidades estaduais paulistas e cerca de uma dezena de federais. É necessário atacar a desigualdade sem desarticular o esforço de décadas para garantir a qualidade dessas instituições”, diz Krieger, que também crítica o escasso engajamento das universidades em buscar os melhores alunos. “Não dá para depender apenas do vestibular. Defendo há muito tempo que a USP atraia medalhistas de olimpíadas científicas sem vestibular, como fazem universidades norte-americanas e europeias.”

Para o sociólogo José de Souza Martins, os sistemas adotados pela USP e Unicamp distanciam-se dos critérios reguladores das escolas superiores de alto nível. “Universidades verdadeiras devem se empenhar em recrutar as melhores vocações, os melhores cérebros, não importa raça, cor, origem, gênero, convicção religiosa. Essas universidades não existem para fazer caridade, para fazer justiça aos supostamente injustiçados. Elas existem para recrutar e formar os melhores profissionais”, afirma Martins, que é professor emérito da USP. “Se a sociedade no seu conjunto fosse séria, teria políticas educacionais para bem preparar as novas gerações para as novas funções profissionais da sociedade moderna antes que chegassem à universidade. O Brasil não está fazendo isso. Empurra seus débitos sociais para as universidades de excelência. Elas não estão preparadas para resolver esse problema.”

Um levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo com base no desempenho de 252 mil estudantes brasileiros de graduação no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) entre 2014 e 2016, mostrou que em 33 dos 64 cursos de graduação a performance dos cotistas foi equivalente ou superior à dos não cotistas. Já em outros 31 cursos, a média foi pelo menos 5% inferior. Nesse grupo, há uma concentração de cursos de ciências exatas. Esse ponto vulnerável das ações afirmativas, que é a formação precária em matemática entre egressos de escolas públicas, inspirou a pesquisa de doutorado em educação matemática de Guilherme Henrique Gomes da Silva concluída em 2016 na Unesp em Rio Claro. Atualmente professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais, Guilherme resolveu estudar o papel da educação matemática nas políticas de ações afirmativas ao notar que havia uma carência na literatura sobre o tema. “Quando ingressei na Unifal em 2012, observei que havia um discurso na comunidade universitária, muitas vezes preconceituoso, de que a reprovação, que já era muito alta nas disciplinas de matemática dos cursos de exatas, aumentaria com a entrada de cotistas na rede federal.”

Guilherme entrevistou docentes e estudantes cotistas das federais de São Carlos (UFSCar) e do ABC (UFABC) e identificou estratégias no campo da educação matemática que mais ajudavam os alunos a permanecer. “Vários alunos relataram que a criação de vínculo com um professor foi fundamental para que conseguissem superar as dificuldades do primeiro ano e prosseguissem no curso”, diz Guilherme. Um dos entrevistados relatou seu desconforto ao perguntar a um professor de cálculo o significado de um gráfico – ouviu em resposta que aquele conteúdo se aprendia no ensino fundamental. “Esse aluno nunca mais fez nenhuma pergunta na sala de aula”, diz. “Cotistas são alvos frequentes de microagressões, que desdenham de sua capacidade de permanecer na universidade.” Não por acaso, diz Guilherme, a existência de algum esquema de apoio psicológico foi apontada como importante pelos alunos. Também tiveram efeitos positivos a concessão de bolsas de iniciação científica, que ajudam o aluno economicamente e dão um sentido mais prático ao aprendizado, e a formação de grupos de estudo de alunos cotistas, que se apoiam mutuamente.

Um dos principais desafios das políticas de ação afirmativa é garantir que os alunos possam se manter financeiramente durante a graduação. Na UFABC, que adota um sistema de cotas desde 2006, metade dos calouros vem de escolas públicas e um terço é composto por autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Entre o contingente dos egressos do ensino público, há uma sub-reserva de 50% de vagas para candidatos com renda per capita familiar de até 1,5 salário mínimo. “Temos um universo de cerca de 2,5 mil alunos de baixa renda e apenas 500 bolsas para atendê-los”, diz Fernando Mattos, pró-reitor de Extensão e Ações Afirmativas da UFABC. A Unesp pleiteia ao governo paulista o ressarcimento de R$ 16,6 milhões que gastou nesse ano com programas de permanência estudantil com mais de mil bolsas de auxílio aluguel e 2.791 de auxílio econômico. “Estamos ampliando o acesso de alunos de escolas públicas, mas não temos recursos suficientes para financiar os novos custos”, explica Mário Sérgio Vasconcelos, coordenador de permanência estudantil da Unesp.

As ações afirmativas foram implantadas em um momento de expansão das vagas nas universidades no país. O relatório “Faces da desigualdade no Brasil”, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), identificou que o acesso ao ensino superior (incluindo graduação, mestrado e doutorado) aumentou em toda sociedade brasileira. Feito com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2002 a 2015, o estudo mostrou que o contingente de jovens negros nas universidades públicas ou particulares subiu de 400 mil em 2002 para 1,6 milhão em 2015.

Uma crítica recorrente às políticas afirmativas é que, embora sejam propostas como soluções temporárias, acabam se tornando perenes porque subsiste a desigualdade que as torna necessárias. Renato Pedrosa, da Unicamp, lembra a proibição de cotas raciais nos Estados Unidos por decisão da Suprema Corte em 1978: “Universidades que utilizavam esse tipo de política retornaram a uma situação de exclusão parecida com a que viviam antes da experiência”. As instituições norte-americanas, contudo, têm liberdade para selecionar estudantes seguindo diferentes critérios, como o da diversidade do corpo discente ou uma certa participação de alunos de escolas públicas de seu entorno, principalmente quando a universidade é pública.

A socióloga Arabela Campos Oliven, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), está desenvolvendo uma pesquisa que compara políticas de inclusão de afrodescendentes implantadas na UFRGS e na Universidade de Illinois Urbana-Champaign. Em 1968, no auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, essa instituição norte-americana lançou um projeto para atrair 500 estudantes negros, o equivalente a cerca de 5% do total dos alunos, e na época obteve êxito. A iniciativa existe até hoje, mas já não consegue recrutar tantos alunos. “Passado meio século, existe atualmente uma presença qualificada de lideranças negras na administração da universidade, inclusive o reitor, e houve um aumento no número de professores negros, mas o total de estudantes afro-americanos diminuiu. Enquanto em 1968 ingressaram 565, em 2014 foram apenas 356”, diz Arabela.

Os limites da autodeclaração

Definir quem é negro ou pardo e pode se beneficiar de ações afirmativas raciais ainda envolve controvérsias. Recentemente, o caso de um estudante branco e loiro que conseguiu uma vaga no curso de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) autodeclarando-se negro reacendeu esse debate. Denunciado, o rapaz renunciou à vaga. “Casos isolados de fraude não podem servir para cancelar uma política”, destaca João Feres Júnior, professor de ciência política da Uerj, a primeira do país a instituir uma política de cotas raciais, em 2002. O pesquisador, que coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Uerj, defende medidas como a exigência da presença do aluno no ato da matrícula ou a criação de comissões de avaliação para evitar fraudes no processo de autodeclaração. Professor da Universidade Cândido Mendes, o economista Álvaro Alberto Ferreira Mendes Junior estuda o assunto em seu doutorado em economia pela UFMG e avalia que o sistema de cotas racial tem dois problemas principais decorrentes do critério subjetivo da aplicação. “Caso o critério seja autodeclaração, abre-se a porta para a entrada de um contingente alto de pessoas brancas. Caso o critério seja de avaliação por um comitê, entramos em um terreno perigoso onde pessoas serão encarregadas de julgar a cor da pele do indivíduo. E isso não garante uma classificação justa, pois, dependendo do avaliador, o entrevistado pode ser classificado como branco ou negro”, analisa.

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