Na tela de uma televisão no meio de um laboratório apinhado de lasers microscópios e computadores, é possível ver uma hemácia, a célula vermelha do sangue, sendo esticada, e até um parasita vivo, o protozoário Leishmania amazonensis, que provoca a doença leishmaniose, se debatendo para escapar de uma armadilha invisível que o impede de continuar se movimentando em uma placa de cultura de microorganismos. O que faz esticar a hemácia e prender o microorganismo unicelular são feixes invisíveis de laser que trabalham como pinças ópticas. Um equipamento montado no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) usa essas pinças num trabalho que está em desenvolvimento desde o início da década de 1990. A mais recente inovação do Laboratório de Aplicações Biomédicas de Lasers do instituto foi unir a pinça óptica com um sistema de espectroscopia para análise de proteínas, lipídios, aminoácidos, cálcio e outras substâncias químicas existentes em células e em microorganismos. Tudo isso como se fosse um filme e com as análises sendo realizadas em tempo real nos organismos vivos capturados e se mexendo.
A diferença com os sistemas atuais de espectroscopia é comparável a uma fotografia que congela um determinado momento, enquanto o filme mostra o processo ao longo de um determinado tempo. “Nossa intenção foi juntar pinça óptica, lasers e espectroscopia para que vários tipos de análise sejam realizados de forma simultânea sem destruir o material analisado,” diz Carlos Lenz Cesar, coordenador do grupo que desenvolve as pinças ópticas. Ele descobriu a pinça óptica por meio do seu criador, o físico Arthur Ashkin, quando fazia pós-doutorado nos laboratórios Bell da empresa de telecomunicações AT&T, no período 1988 a 1990, nos Estados Unidos. Os trabalhos com armadilhas ópticas começaram no início dos anos 1970. No início, Ashkin usava o laser para movimentar e estudar partículas sólidas, primeiro com microesferas de látex e depois com átomos. Os primeiros estudos com material biológico em nível celular também foram feitos por Ashkin com a bactéria Escherichia coli e hemácias e publicados em 1987 na revista Nature.
O sistema de espectroscopia vem complementar com sua capacidade de microanálise as propriedades mecânicas de manipular microorganismos e células vivas da pinça óptica. Dessa forma, a força de adesão entre um parasita e a superfície de uma célula no exato momento da infecção pode ser observada tanto do ponto de vista mecânico quanto bioquímico. Outros exemplos de medidas mecânicas com pinças ópticas são a análise de forças de impulsão dos microorganismos, a viscosidade de fluidos e a elasticidade de membranas celulares.
O trabalho de junção da espectroscopia com a pinça óptica fez parte da tese de doutorado da física Adriana Fontes e foi aceito para publicação na revista Physical Review E. O trabalho também rendeu uma premiação de melhor pôster apresentado no Congresso Photonics West, nos Estados Unidos, que reuniu, em janeiro deste ano, 15 mil participantes das áreas de fotônica e biofotônica. Adriana, hoje pós-doutoranda no IFGW, trabalha há oito anos, desde a iniciação científica, com lasers no mesmo laboratório e está vinculada, como toda a equipe do professor Lenz, ao Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.
Na prática, os pesquisadores uniram um microscópio óptico convencional, que possui uma câmera de vídeo acoplada e é usado para observação de microorganismos, com um espectrômetro instalado ao lado desse instrumento clássico de laboratório. A pinça consiste de um feixe de laser focalizado pela objetiva em um ponto da imagem. Pela tela do monitor é possível observar partículas sendo aprisionadas no foco do laser e movidas com grande precisão, sem danos celulares. O feixe de laser é invísivel, operando no infravermelho, exatamente para evitar a absorção da luz e a produção de calor, que causaria danos térmicos. O laser usado como pinça no IFGW é à base de neodímio, um dos elementos conhecidos como terra raras, cuja luz é emitida no comprimento de onda de 1.064 nanômetros (nm). A absorção é necessária, por outro lado, quando se deseja destruir corpúsculos ou furar paredes celulares através de um bisturi óptico. Nesse caso, os pesquisadores utilizam outro laser à base de neodímio com luz emitida na metade do comprimento de onda infravermelho, 532 nm, que danifica a célula apenas na região desejada.
Ao se comportar como uma partícula, a luz transfere impulso sempre que o feixe luminoso é desviado ou absorvido, permitindo que um cone de raios de luz capture outra partícula. Esse comportamento da luz foi descoberto por Albert Einstein em 1905 no estudo sobre efeito fotoelétrico. Ele chamou essas partículas luminosas de fótons (do grego photos, luz) e mostrou que elas transportam energia, além de impulso. Foi com esse trabalho que Einstein ganhou o Prêmio Nobel em 1921, e não pela famosa teoria da relatividade.
As forças geradas por essa armadilha óptica são muito pequenas. Uma excelente pinça óptica é capaz de gerar forças com valores máximos em torno de 200 picoNewtons (pN), equivalente a 1 bilionésimo de 1 peso de 1 quilo.
Nessas dimensões, as pinças ópticas são capazes de capturar partículas com tamanhos de 40 e 50 nanômetros (1 nanômetro é 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) até 20 ou 30 micrômetros (1 micrômetro é igual a 1 milímetro dividido por mil). Para capturar um microorganismo vivo, com força motora própria tentando escapar da armadilha, uma pinça deve ser capaz de fornecer, no mínimo, forças de 50 pN. Um excelente teste da qualidade de uma pinça óptica é mostrar que ela é capaz de capturar um espermatozóide vivo. Embora essas forças ópticas sejam muito pequenas, elas são da mesma ordem de grandeza das forças que atuam nas células e microorganismos. Por isso, a pinça óptica é a ferramenta ideal para medir intensidades de forças, além de outras propriedades mecânicas, no universo microscópico.
No âmbito da espectroscopia, o trabalho foi realizado com várias técnicas, mas sempre com o mesmo objetivo de descobrir as “assinaturas” ou “impressões digitais” que cada substância ou molécula emite quando interage com a luz. Uma dessas assinaturas resulta das vibrações moleculares, cuja freqüência depende das massas e das forças entre os átomos de uma molécula. O resultado é um espectro no qual se observa a intensidade das ondas eletromagnéticas emitidas em cada freqüência. “Descobrimos a presença de uma determinada molécula através do pico de intensidade da sua freqüência de vibração,” diz Lenz.
Vibrações visíveis
Como materiais biológicos possuem muitas moléculas que, por sua vez, apresentam muitos picos, a identificação das substâncias é feita por meio de uma comparação com uma biblioteca de espectros. “Essas vibrações moleculares também aparecem como uma modulação em um feixe espalhado de luz vísivel e pode ser detectada por meio da chamada espectroscopia Raman.” Esse é um processo de espalhamento com um fóton incidente e um fóton espalhado, mas também é possível ocorrer processos com dois fótons incidentes e um fóton espalhado, chamados de espalhamentos ou espectroscopia hiper Rayleigh. Processos multifotônicos como esses só acontecem se todos os fótons envolvidos colidirem com a mesma partícula ao mesmo tempo. Por isso esses processos necessitam de lasers pulsados, nos quais os fótons são emitidos ao mesmo tempo em lugar da emissão constante de fótons dos lasers contínuos.
A luz espalhada pelos processos de espectroscopia é capturada na mesma objetiva da pinça óptica e enviada para o espectrômetro, onde será decomposta e analisada para se descobrir as vibrações moleculares. “Assim, sabemos quais as moléculas que estão naquela célula ou ser vivo,” diz Adriana. “É uma informação química.” Com esse sistema é possível coletar os espectros de um parasita, como o protozoário Leishmania, por exemplo, enquanto a pinça óptica o mantém capturado em uma mesma posição, mas vivo e se mexendo. Também seria possível acompanhar modificações bioquímicas que ocorram quando outra pinça o aproximar da célula que gosta de infectar.
Para espectroscopias de um fóton, como Raman, os pesquisadores utilizaram um laser contínuo de titânio-safira, cuja emissão pode ser selecionada na região do infravermelho entre 780 e 1.000 nm. Já para as espectroscopias multifótons, utilizaram um laser de titânio-safira com pulsos de duração tão curta quanto 100 femtossegundos (fs), tempo para a luz percorrer uma distância de apenas um terço do diâmetro de um fio de cabelo. Um femtossegundo é igual a 1 segundo dividido por 1 quatrilhão de vezes.
Outra assinatura de moléculas muito utilizada é a fluorescência, um processo no qual certas moléculas emitem uma luz típica quando iluminadas por fótons com maior energia do que os fótons emitidos. Entretanto, como são poucas as substâncias com fluorescência eficiente, é comum a introdução de corantes como marcadores. “O problema é que esses corantes tendem a ser tóxicos, ou citotóxicos, e a emitir luz por pouco tempo devido à fotodegradação,” diz Adriana. Uma solução para esses problemas é o chamado ponto quântico, ou quantum dot, que são nanocristais de semicondutores, chamados de sulfeto, seleneto e telureto de cádmio indicados nas aplicações biológicas. A maior vantagem do ponto quântico em relação aos corantes é sua grande fotoestabilidade, que permite aquisição de imagens por horas seguidas sobre iluminação intensa. Além disso, apresenta citotoxicidade muito baixa. Outra grande vantagem é que o tamanho do ponto quântico controla a cor da fluorescência emitida por ele. É possível obter fluorescência de pontos quânticos de telureto de cádmio, por exemplo, em azul, verde, amarelo e vermelho variando seu diâmetro entre 1 e 5 nanômetros.
O grupo da Unicamp produz pontos quânticos desde 1989, mas em vidros, visando ao desenvolvimento de dispositivos ultra-rápidos para comunicações ópticas. O trabalho com pontos quânticos em soluções começou na Unicamp em 1999, inicialmente para uma comparação com pontos quânticos produzidos em vidro, e, simultaneamente, no Departamento de Química da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Estudo amplo
Atualmente, os trabalhos científicos e acadêmicos levaram a uma colaboração mais ampla com a UFPE, envolvendo no IFGW os professores Lenz e Luiz Carlos Barbosa, além de Selma Giorgio, da Biologia, Sara Saad e Fernando Costa, do Hemocentro, todos da Unicamp. Na UFPE participam Ricardo Ferreira e Gilberto Sá, do Departamento de Química Fundamental, Beate Santos, da Farmácia, e Patrícia Farias, da Biofísica. Também colaboram, os professores Vivaldo Moura Neto e Jane Amaral, do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A colaboração com a UFRJ envolve estudos com neurônios e glias, que são células do cérebro, enquanto estudos com o protozoário Leishmania amazonensis são feitos em conjunto com o Instituto de Biologia da Unicamp. As aplicações das pinças ópticas na Unicamp se iniciaram na colaboração com o Centro de Hematologia, com a equipe da médica Sara Saad, para caracterizar as propriedades mecânicas das hemácias, relacionando-as com doenças como a anemia falciforme e tempo de estocagem em bancos de sangue (veja Pesquisa Fapesp nº 58).
A integração da pinça óptica com espectroscopias de um ou mais fótons e com o uso de pontos quânticos como marcadores unifica quase todas as técnicas mais modernas de biofotônica em um só sistema e abre vários novos campos de pesquisa. “É um mar de possibilidades,” diz Lenz. “São processos biológicos que podem ser observados com a manipulação em nível celular. Por exemplo, um pesquisador norte-americano ganhou um financiamento de quase US$ 1 milhão para auxiliar uma indústria de laticínios na determinação, com pinça óptica, das forças com que bactérias existentes no leite se ligam nas paredes de embalagens tipo longa-vida e quanto tempo lá permanecem. Com o sistema integrado, é possível observar, além das forças, quais as substâncias são liberadas no leite.” Tudo isso sem matar a bactéria ou destruir as substâncias que se deseja estudar.
O Projeto
Pinças ópticas e espectroscopia; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenador Hugo Fragnito – IFGW, Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePof) na Unicamp; Investimento R$ 1.000.000,00 por ano para todo o CePof (FAPESP)