Por razões não muito claras, a doença de Alzheimer, a forma mais comum de demência, é duas vezes mais frequente nas mulheres do que nos homens. Uma possível explicação para a diferença foi apresentada em janeiro em um artigo na revista Molecular Psychiatry. No trabalho, um grupo internacional de pesquisadores, com vários brasileiros, analisou o desempenho cognitivo e compostos encontrados no sangue e no líquido que banha o cérebro e a medula espinhal de 125 homens e mulheres do Brasil e dos Estados Unidos. Os resultados sugerem que um provável fator por trás das taxas desiguais do problema sejam duas moléculas: a carnitina e uma de suas formas modificadas, a L-acetil-carnitina (LAC), que estão em níveis mais baixos no sangue de quem tem demência do que no das pessoas saudáveis.
Resultado da combinação de dois aminoácidos (componentes básicos das proteínas), a carnitina é obtida pela ingestão de carnes, peixes e laticínios e produzida em menor quantidade pelo corpo. A maior parte fica estocada nos músculos e uma pequena proporção que circula no sangue – a carnitina livre –
serve como reserva para os tecidos.
Nas células, parte da carnitina é transformada em LAC e executa várias funções importantes. Uma é transportar para as mitocôndrias, a usina de energia das células, um tipo específico de gordura – os ácidos graxos de cadeia longa, como o ômega-3, encontrado em peixes, e o ômega-9, contido no azeite de oliva – que é convertido em combustível celular. A LAC também regula a atividade de genes que codificam proteínas associadas à formação de conexões (sinapses) entre os neurônios, em especial no hipocampo, região cerebral ligada à formação da memória e comprometida no Alzheimer, e entra na composição da acetilcolina, um mensageiro químico (neurotransmissor) fundamental para a memória e o aprendizado. Ela auxilia ainda as mitocôndrias a se livrarem de compostos tóxicos.
A medição dos níveis de LAC e de carnitina no sangue dos participantes mostrou que tanto a primeira quanto a segunda caem com o avanço do declínio cognitivo. A concentração média de LAC em homens e mulheres foi de 9,5 micromoles por litro de sangue (µmol/L) nas pessoas sem perda cognitiva, de 8,4 µmol/L naquelas com declínio cognitivo leve e 7,9 µmol/L nas diagnosticadas com Alzheimer.
Já a carnitina, que é reciclada na mitocôndria e retorna ao sangue após a transformação da gordura em energia, comportou-se diferente. Nas mulheres, o nível médio caiu de 39,3 µmol/L nas saudáveis, para 36 µmol/L naquelas com declínio cognitivo leve e 31,3 µmol/L nas com Alzheimer. Os homens já tinham níveis de carnitina mais baixos, e não houve variação entre a concentração medida nos saudáveis e naqueles com perda cognitiva. Segundo os autores, esse achado sugere que as mulheres com risco de desenvolver demência apresentam um estágio mais avançado de disfunção mitocondrial do que os homens na mesma situação.
Alterações hormonais após a menopausa podem desregular o metabolismo e afetar o cérebro
Os resultados encontrados para os 75 brasileiros foram semelhantes aos observados entre os 50 norte-americanos participantes do estudo, coordenado pela neurocientista Carla Nasca, da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, e pelos neurocientistas brasileiros Mychael Lourenço, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Fernanda De Felice, da UFRJ, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) e da Queen’s University, no Canadá.
“Essas alterações na carnitina livre e na LAC podem refletir mudanças no metabolismo das mitocôndrias em todo o organismo”, conta De Felice, que anos atrás foi convencida pelo neurocientista Bruce McEwen (1938-2020), então da Universidade Rockefeller, a investigar o papel dessas moléculas no Alzheimer – ele estudava seu efeito na depressão.
Na época, experimentos com roedores e macacos tinham mostrado que alterações no funcionamento das mitocôndrias poderiam estar associados aos danos observados na doença de Alzheimer. Paralelamente, trabalhos anteriores da equipe de Nasca indicaram que o aumento dos níveis de LAC melhorava o desempenho de camundongos em testes cognitivos por ativar genes que favoreciam a formação de novas sinapses. Roedores com níveis diminuídos de LAC no cérebro e no sangue se saíam pior nesses testes. “O papel da LAC de realizar alterações epigenéticas [que mudam a expressão dos genes, mas não alteram o DNA] é de especial interesse para a saúde das sinapses”, conta Lourenço.
“Essas evidências devem direcionar os estudos para investigar as alterações metabólicas em mulheres, como as que ocorrem depois da menopausa”, afirma o biomédico Ricardo Lima-Filho, coautor do estudo da Molecular Psychiatry. As mulheres dos dois grupos tinham 55 anos ou mais, e todas, exceto uma, já haviam passado pela menopausa. “Ainda estudamos pouco se certas patologias afetam as mulheres de modo diferente dos homens. Há diversas hipóteses sobre como as mudanças metabólicas podem ser um dos fatores por trás dessas diferenças no caso do Alzheimer”, completa o pesquisador, que faz pós-doutorado sob a supervisão de Lourenço na UFRJ.
O grupo suspeita que as alterações hormonais após a menopausa desregulem o metabolismo de gordura e a disponibilidade de carnitina e LAC, com possível impacto no cérebro. “Queremos explorar o mecanismo por trás disso em experimentos com animais”, conta Lourenço.
Para o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), compreender melhor o impacto metabólico na doença pode abrir caminhos para novas estratégias de prevenção e tratamento. “Esses compostos atuam de várias formas, com efeitos mais ou menos específicos no Alzheimer. Por isso, o mais viável não é pensar em cápsulas de LAC, mas incentivar uma alimentação que forneça esses nutrientes naturalmente”, explica.
A reportagem acima foi publicada com o título “O Alzheimer e as mulheres” na edição impressa nº 349 de fevereiro de 2025.
Artigo científico
BIGIO, B. et al. Sex differences in mitochondrial free-carnitine levels in subjects at-risk and with Alzheimer’s disease in two independent study cohorts. Molecular Psychiatry. 7 jan. 2025.