Todos os meses, durante a menstruação, as mulheres eliminam a camada de células que reveste internamente o útero. É um fenômeno natural que faz parte do ciclo reprodutivo e se repete ao longo de toda vida fértil. Se um embrião não se implanta e a mulher não engravida, oscilações hormonais fazem o endométrio, a membrana que recobre o interior do útero, romper-se e ser eliminado pela vagina, com um pouco de sangue. Às vezes, no entanto, parte do material que deveria ser expulsa do corpo migra pelas trompas uterinas e chega à cavidade abdominal. Alojados onde não deveriam estar, esses fragmentos geram uma doença inflamatória crônica, dolorosa e com frequência incapacitante que afeta de 10% a 15% das mulheres e dos homens trans (que nascem com o sexo biológico feminino, mas se identificam com o gênero masculino). Essa enfermidade é a endometriose, cuja evolução começa a ser mais bem compreendida como resultado de um trabalho publicado em 6/11 na revista Science Translational Medicine.
No estudo, as equipes lideradas pelo farmacêutico Waldiceu Verri Junior, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), e o biólogo molecular Michael Rogers, da Escola Médica de Harvard, nos Estados Unidos, realizaram uma série de experimentos com amostras de endometriose humana, células do endométrio cultivadas em laboratório e camundongos portadores de uma enfermidade que simula a doença humana. Após anos de trabalho, concluíram que a endometriose se instala, progride e causa dor em consequência de uma interação complexa, que se retroalimenta, entre células do sistema nervoso e do sistema imunológico.
Ativados por compostos liberados pelas células do endométrio situadas fora do útero, neurônios responsáveis pela sensação de dor liberam comunicadores químicos que acionam os macrófagos, células de defesa capazes de englobar e digerir detritos e células mortas ou estranhas ao organismo – como as tumorais, as de parasitas ou as da endometriose, que se encontram fora de lugar. Em situações normais, os macrófagos migrariam até as células que estão onde não deveriam e as eliminariam, ajudando a solucionar o problema. Na endometriose, porém, a liberação dos comunicadores químicos pelos neurônios da dor instruem os macrófagos a perder essa capacidade de limpeza. Em vez de livrarem o corpo das células do endométrio situadas em lugar errado, os macrófagos acabam estimulando que se proliferem. O resultado parece ser um círculo vicioso no qual uma lesão maior continua a estimular os neurônios, que, por sua vez, mobilizam mais macrófagos debilitados.
“Nesse trabalho, verificamos que as células que deveriam combater o problema são justamente as que ajudam a perpetuá-lo”, explica o farmacêutico brasileiro Victor Fattori, primeiro autor do artigo e especialista em mecanismos moleculares da dor e da inflamação. O trabalho traz, no entanto, uma boa notícia. “Existem medicações já aprovadas para uso humano que, ao menos nos testes com animais, ajudaram a reduzir o tamanho das lesões e a dor na endometriose”, conta o pesquisador, que integra o grupo de Rogers e desenvolveu o modelo de endometriose em camundongos usado nas pesquisas de grupo.
Com o biólogo brasileiro Tiago Zaninelli, que atualmente faz estágio de pós-doutorado na Universidade Washington em Saint Louis, e a biomédica Fernanda Rasquel Oliveira, que faz estágio de pós-doutorado com Verri, Fattori realizou a maior parte dos experimentos descritos no artigo.
O primeiro passo foi confirmar se a composição das lesões de endometriose das mulheres era a mesma das geradas no modelo animal. Já se sabia que os fragmentos do endométrio que se instalam fora do útero são uma espécie de microcosmo do revestimento uterino, com funcionamento quase autônomo. Ali, há células de sustentação e produtoras de hormônios, que são nutridas por vasos sanguíneos e se comunicam com o restante do organismo por meio de nervos. Não havia certeza, porém, do tipo de neurônio responsável pela inervação.
Comparando amostras de lesão doadas por oito mulheres com endometriose com lesões dos roedores, Fattori e colaboradores constataram que ambas são inervadas por neurônios sensoriais (responsáveis por conduzir a sensação de dor para o cérebro) de um tipo específico: os neurônios produtores de CGRP, um peptídeo (fragmento de proteína) que funciona como comunicador químico entre células.
Nos testes com camundongos e com células cultivadas em laboratório, os pesquisadores constataram que dois compostos liberados pela lesão – o fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e o fator de crescimento placentário (PlGF) – despertavam esses neurônios, que passavam a sintetizar CGRP ao mesmo tempo que enviavam a informação de dor para o cérebro. Essa ação foi confirmada quando Fattori e colaboradores geraram camundongos geneticamente alterados para não liberar o CGRP: esses animais apresentavam lesões menores e menos sinais de dor do que os do grupo de controle, que produziam o peptídeo.
Em outros experimentos, os pesquisadores verificaram que o peptídeo CGRP recrutava macrófagos para o local da lesão. O CGRP, porém, alterava o funcionamento desses macrófagos que, em vez de remover detritos celulares ou as próprias células da endometriose, passavam a ajudá-las a se multiplicar. Experimentos in vitro mostraram que macrófagos cultivados com o peptídeo perdiam a capacidade de eliminar células mortas e seus restos (eferocitose). Ao mesmo tempo, células do endométrio cultivadas com esses macrófagos se reproduziam mais. Os macrófagos recuperaram a habilidade de realizar eferocitose depois de serem tratados com um medicamento utilizado para enxaqueca que inibe a ação do CGRP. O tratamento também impediu que estimulassem a multiplicação das células da endometriose.
“O trabalho mostra que o CGRP tem um papel dual importante na endometriose. Ele estimula tanto a dor quanto o crescimento das lesões”, comenta o farmacologista Thiago Mattar Cunha, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, que não participou da pesquisa. Especialista em dores crônicas, Cunha lembra que, por muito tempo, se achou que apenas o sistema imunológico regulava o sistema nervoso. “Hoje se sabe que os neurônios, células do sistema nervoso, podem liberar fatores que mudam as características das células imunes”, conta.
Um estudo publicado em 2023 na Nature Genetics por pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, havia indicado que as pessoas com endometriose compartilhavam algumas características genéticas com quem sofria de enxaqueca, um problema em que o peptídeo CGRP também desempenha um papel importante. Fattori decidiu, então, testar se medicamentos que bloqueavam a ação do CGRP podiam reduzir a gravidade da endometriose.
Ele selecionou para os experimentos dois anticorpos monoclonais que neutralizam o CGRP – o fremanezumabe e o galcanezumabe – e dois compostos bloqueadores do receptor ao qual o CGRP se liga na superfície das células de defesa – o rimegepant e o ubrogepant, vendidos, respectivamente, com o nome comercial Nurtec e Ubrelvy. Os quatro medicamentos são utilizados no tratamento da enxaqueca e foram testados individualmente nos camundongos com um problema que simula a endometriose humana.
Roedores tratados com essas medicações apresentaram lesões até 50% menores do que os que receberam uma solução inerte (placebo), embora não tenham sido observadas diferenças no número de lesões. Os animais do primeiro grupo também mostravam menos sinais de dor – lambiam menos o abdômen, comprimiam menos vezes o ventre contra o chão e apresentavam menos contorções – do que os do grupo de controle. “Todos esses medicamentos já foram aprovados nos Estados Unidos para tratar enxaqueca em seres humanos, o que torna mais fácil testá-los também contra a endometriose”, lembra Fattori.
“Esse mecanismo proposto de controle da dor e de redução das lesões é interessante e importante por ser diferente dos que são alvo dos tratamentos disponíveis hoje”, afirma a ginecologista Cristina Benetti Pinto, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estuda as terapias para endometriose e seu impacto na qualidade de vida dos pacientes. “A endometriose é uma doença crônica que precisa ser mais estudada e que necessita de alternativas terapêuticas”, relata.
Hoje os tratamentos consistem no controle da dor, com o uso de analgésicos e anti-inflamatórios, e no controle do tamanho das lesões por meio de compostos que reduzem a ação do estrogênio. Produzido pelos ovários, esse hormônio estimula o crescimento e o amadurecimento do endométrio ao longo do ciclo reprodutivo, preparando o útero para a gestação, ao mesmo tempo que faz as lesões crescerem – os resultados apresentados agora sugerem que o estrogênio e o CGRP possam agir em conjunto, favorecendo a progressão das lesões. Em parte dos casos, como quando a endometriose se instala na superfície de alguns órgãos, pode ser necessária cirurgia para remover as lesões, o que nem sempre garante que não reapareçam.
Descrita pela primeira vez em periódicos médicos em 1860 pelo patologista austríaco Carl von Rokitansky (1804-1878), a endometriose parece receber menos atenção do que deveria. Uma análise publicada em 2022 na revista Frontiers in Global Women’s Health, pesquisadoras da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, relataram que, naquele ano, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, o maior centro de pesquisas biomédicas do mundo, alocaram em pesquisas sobre endometriose US$ 16 milhões, o equivalente a 0,04% de um orçamento de US$ 41,7 bilhões. Parece pouco diante de uma doença que afeta pelo menos um em cada 10 mulheres e homens trans, com impacto na família e no trabalho – no Brasil, calcula-se que entre 5 e 8 milhões de mulheres em idade fértil tenham endometriose. Apenas nos Estados Unidos, segundo algumas estimativas, algo entre US$ 78 bilhões e US$119 bilhões são gastos anualmente com atendimento, tratamento e perda de produtividade relacionados à endometriose.
“O trabalho publicado na Science Translational Medicine avança na compreensão da endometriose e aponta para uma direção terapêutica promissora”, avalia o ginecologista Mauricio Abrão, da USP, referência internacional no estudo da enfermidade. “Mas são necessários estudos adicionais para validar a eficácia e segurança dessa abordagem em humanos”, afirma o pesquisador, que não participou do estudo atual, mas investiga as causas, a evolução e os tratamentos da enfermidade.
Em um trabalho publicado em 2023 na revista Reproductive Sciences, Abrão e sua equipe avaliaram o impacto da dor na qualidade de vida de 1.129 pessoas que foram depois submetidas a cirurgias para tratar a endometriose. A forma mais frequente de dor relatada foram cólicas intensas (dismenorreia) no período menstrual, experimentada por 93,6% das participantes. A dor reduziu a qualidade de vida de todas e de forma mais significativa naquelas que apresentaram pontuação mais alta, superior a 7, em uma escala de intensidade que vai de 0 a 10.
Uma das limitações do estudo que descreve o papel do CGRP na endometriose é que os testes foram realizados com um modelo da doença em camundongos. “Apesar de informativos, eles podem não reproduzir todos os aspectos da endometriose em humanos, em especial da endometriose profunda, principal causa de dor”, lembra o pesquisador da USP. Além disso, ainda não se sabe quanto tempo duram os efeitos do bloqueio da via do CGRP, algo importante em uma doença crônica como essa.
Artigos científicos
FATTORI, V. et al. Nociceptor-to-macrophage communication through CGRP/RAMP1 signaling drives endometriosisassociated pain and lesion growth in mice. Science Translational Medicine. 6 nov. 2024.
RAHMIOGLU, N. et al. The genetic basis of endometriosis and comorbidity with other pain and inflammatory conditions. Nature Genetics. 13 mar. 2023.
ELLIS, K. et al. Endometriosis is undervalued: A call to action. Frontiers in Global Women’s Health. 9 mai. 2022.
ANDRES, M. P. et al. Visual analogue scale cut-off point of seven represents poor quality of life in patients with endometriosis. Reproductive Sciences. 6 dez. 2023.