Há mais de duas décadas, físicos de altas energias se debatem com uma dúvida de fundo a respeito de uma importante propriedade quântica dos múons – partículas instáveis, 207 vezes mais pesadas que os elétrons, encontradas em boa parte dos raios cósmicos que caem sobre a Terra. Trabalhos teóricos e experimentos feitos em aceleradores de partículas, como o Fermilab nos Estados Unidos e o LHC na Europa, não chegam a um acordo sobre qual seria o valor exato do seu momento magnético.
Esse parâmetro descreve como os múons oscilam (giram em torno de seu próprio eixo) e se comportam como uma pequena barra de ímã sob a influência de um campo magnético. Grosso modo, os experimentos medem um excesso de magnetismo (uma anomalia) nos múons que não é previsto ou explicado pela teoria.
A dificuldade em dar conta dessa disparidade, se ela realmente for real, e não decorrente de erros metodológicos, pode levar a revisões no chamado Modelo Padrão. Essa é a grande teoria da física que, há mais de meio século, explica as interações entre as partículas e as forças conhecidas, com exceção da gravidade.
Artigo publicado em dezembro de 2023 na revista Physical Review Letters (PRL), de autoria de um grupo internacional com participação de um físico brasileiro, aponta a origem da discrepância existente entre duas abordagens teóricas que estimam, de maneira distinta, a intensidade do magnetismo do múon.
“Nosso trabalho não resolve o problema da anomalia magnética do múon, mas identifica o ingrediente que gera as maiores divergências entre os estudos baseados em simulação computacional e aqueles ancorados em dados experimentais”, comenta Diogo Boito, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), um dos autores do artigo. Esse ingrediente é denominado polarização hadrônica do vácuo, um tipo de interação entre múons e partículas classificadas como virtuais.
No artigo, Boito e colegas da Europa e da América do Norte usaram uma abordagem que lhes permitiu isolar o papel desse tipo de interação para o surgimento do excesso de magnetismo do múon e viram que esse ingrediente tem grande peso na origem da discrepância.
“No passado, trabalhos teóricos chegaram a valores diferentes para a contribuição da polarização hadrônica do vácuo no surgimento da anomalia magnética do múon”, comenta o físico Farinaldo Queiroz, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que não participou do artigo na PRL. “De acordo com o resultado do recente artigo, a divergência entre os dados experimentais e os previstos pela teoria ganha maior significância estatística ou pode ser vista como algo irrelevante.” Ou seja, o valor dessa contribuição, segundo o novo estudo, é que determinaria se os cálculos dos teóricos estão realmente em desacordo com as medidas realizadas nos aceleradores.
A anomalia magnética do múon é calculada pela fórmula g -2. O valor do fator g, que representa o momento magnético do múon, é um número extremamente próximo, mas ligeiramente superior a 2. Quão próxima é a razão da divergência entre teoria e observação.
Múon g-2
Em agosto de 2023, o principal experimento que trabalha com essa questão, o Múon g-2, conduzido no Fermilab, divulgou as medições mais acuradas a respeito desse parâmetro. O novo valor, também publicado na PRL, dobrou a precisão da medida anterior com uma margem de erro de 0,20 parte por milhão (ppm).
Restaria, portanto, aos teóricos o encargo de mostrar que seus cálculos não estão errados. É aí que entra a questão do papel da tal polarização hadrônica do vácuo. Trata-se de um tipo intrincado de interação entre os múons e partículas virtuais de hádrons. De presença ainda mais fugaz que os 2,2 milionésimos de segundo que constituem a meia vida dos múons, as partículas virtuais são um fenômeno puramente quântico. Elas podem ser emitidas por outras partículas ou surgir e desaparecer quase instantaneamente em pleno vácuo.
“Partículas virtuais não são detectadas diretamente”, diz Boito. Mas sua existência é inferida por promoverem alterações em propriedades físicas de outras partículas, em sua massa, em sua força elétrica ou, como no caso dos múons, em seu magnetismo. Os hádrons são uma classe de partículas subatômicas compostas por partículas ainda menores que se mantêm coesos em razão da ação da força nuclear forte. Prótons e nêutrons são os hádrons mais conhecidos, mas há mais de uma centena deles. Não se sabe que partículas virtuais podem surgir e sumir no mundo quântico e fazer o múon oscilar em demasia.
Segundo Queiroz, o novo estudo deixa uma porta aberta para que o Modelo Padrão seja um dia reformado e possa incluir novas partículas que ajudem a dar conta de fenômenos não muito bem explicados pela teoria, como o momento anômalo do múon ou a natureza da matéria escura. “Quando os físicos não conseguem resolver um problema da natureza, propõem a existência de uma nova partícula”, diz o pesquisador da UFRN, meio sério, meio em tom de brincadeira. “Foi assim, por exemplo, com o bóson de Higgs e deu certo. Mais tarde essa partícula [que dá massa às demais] foi realmente descoberta.” O excesso de magnetismo do múon, no entanto, tem sido uma questão que, há décadas, desafia a física.
Projeto
Testes do Modelo Padrão: QCD de precisão e g-2 do múon (nº 21/06756-6) Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Diogo Boito (USP); Investimento R$ 622.024,29.
Artigos científicos
BENTON, G. et al. Data-Driven determination of the light-quark connected component of the intermediate-window contribution to the muon g-2. Physical Review Letters. v. 131, n. 25. 22 dez. 2023.
AGUILLARD, D. P. et al. Measurement of the positive muon anomalous magnetic moment to 0.20 ppm. Physical Review Letters. v. 131, n. 16. 20 out. 2023.