O clima de São Paulo mudou. Os dias de verão são cada vez mais quentes e os de inverno, mais secos. A temperatura média da maior cidade do Brasil está 1,3ºC (grau Celsius) mais alta do que há quatro décadas. E, ao contrário do que se poderia imaginar, os efeitos da urbanização, sobretudo a impermeabilização do solo e o excesso de veículos, não são os principais responsáveis pela mudança: respondem por cerca de 30% nas alterações, enquanto os 70% cabem às forças naturais, principalmente ao aquecimento do Oceano Atlântico nesse período. Além de explicar essas alterações, as pesquisas coordenadas por Pedro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG- USP), mostram algo pior: a Região Metropolitana de São Paulo – capital e 38 municípios vizinhos – é um centro exportador de poluentes.
Cercada ao sul pela serra do Mar, que separa a planície litorânea do planalto – e ao norte pela serra da Cantareira, de cerca de 1.200 metros de altitude, a região ocupa um quadrilátero de 200 por 150 km (quilômetros), onde vivem 17 milhões de pessoas. Seu ar poluído, principalmente no inverno, pode chegar a cidades situadas a até 100 km da capital, ainda que em concentrações menores do que nas imediações das avenidas ou plantas industriais onde é produzido. Silva Dias estima que, conforme a época do ano, de 20% a 30% da poluição de Campinas, Tatuí e Sorocaba, por exemplo, venha de São Paulo.
A poluição tornou-se, portanto, um problema não mais apenas local, mas regional. Má notícia para os próprios paulistanos que, nos finais de semana e férias, vão se refugiar na montanha em busca de ar puro, um dos atrativos de cidades serranas próximas. Modelagens feitas em computador atestam que o ar pode não ser tão puro assim, por causa da poluição trazida sorrateiramente pelos ventos que sopram da capital. Quem vive mais longe nem sempre escapa. Se embalado por ventos mais intensos, o ar poluído da metrópole pode alcançar Bauru, a quase 400 km.
Delineou-se outro problema para os vizinhos de São Paulo: há lugares onde a concentração de ozônio (O3) perto do solo chega a superar a da capital. Formado pelos poluentes emitidos pelos carros, esse ozônio é prejudicial, ao contrário do que existe numa camada atmosférica elevada, que protege o planeta de radiações danosas. Na alta atmosfera, essa forma de oxigênio filtra os raios ultravioleta do Sol, mas junto do solo pode irritar os olhos e causar rinite, tosse e outros problemas respiratórios. É tóxico também para as plantas. Em Barueri, Embu e Jundiaí, por exemplo, o teor desse ozônio poluente pode ser até 50% maior que na praça da Sé ou no vale do Anhangabaú – nesses pontos, em pleno centro, a média horária de ozônio, de 60 ppb (partes por bilhão), oscila conforme a época do ano e às vezes excede o limite de segurança, que é de 80 ppb.
Quando se pensa em soluções, surge um complicador. Quem deve assumir a responsabilidade pelos problemas de saúde causados pela poluição: o município que exporta poluentes ou o que os recebe? Nem os especialistas em Direito Ambiental da Europa ou dos Estados Unidos se entendem a respeito. Na capital, também há surpreendentes pontos de formação de ozônio, como a serra da Cantareira e o pico do Jaraguá. Embora considerados refúgios de ar puro, são regiões altas, e por isso barram a passagem do ar e podem ter as mesmas concentrações de ozônio que áreas densamente urbanizadas, segundo levantamentos do IAG e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen).
A situação preocupa porque hoje o ozônio é o poluente que mais ultrapassa o limite de segurança, sobretudo nos bairros paulistanos do Ibirapuera e da Mooca, bem como em Cubatão, na Baixada Santista. A formação de ozônio em locais distantes dos pontos de origem dos poluentes é um problema comum aos grandes centros. Silva Dias acredita que haja muito ozônio nos arredores de Brasília e Curitiba, por exemplo, já que o fenômeno costuma ocorrer em cidades com mais de 400 mil habitantes.
O trabalho conjunto de físicos, químicos, meteorologistas e matemáticos mostra por que hoje a Terra da Garoa não passa de uma lembrança. Esse apelido de São Paulo se refere a uma situação que persistiu até os anos 60, quando a chuvinha fina era assídua e se somava ao clima mais frio: no inverno, os paulistanos não dispensavam casacos grossos, luvas e cachecóis. Hoje praticamente não há garoa, enquanto são mais freqüentes as chuvas torrenciais, causadoras de inundações na estação quente.
Os pesquisadores analisaram as condições meteorológicas – variação de temperatura e umidade, distribuição de chuvas, freqüência de nevoeiros e ventos – que determinam o transporte dos poluentes e concluíram: as forças naturais são decisivas para e transformação da São Paulo da Garoa numa cidade de chuvas torrenciais. “Há uma forte correlação entre as mudanças do clima da capital e as ocorridas no Atlântico Sul, cuja temperatura média anual aumentou 1,4ºC em 40 anos”, explica Silva Dias.
Influências marinhas
Embora não se possa garantir que o aquecimento do oceano seja a causa direta do aquecimento da capital, a hipótese é plausível. Medições feitas desde 1933 na estação meteorológica do IAG na Água Funda, junto ao Jardim Zoológico, apontam para uma mudança drástica no regime pluviométrico: aumento das chuvas intensas no verão e diminuição das chuvas leves no inverno. Disso resultou uma mudança no teor de umidade do ar. O ar mais seco que passou a predominar no inverno dificulta a dispersão dos poluentes gerados pelos 6 milhões de automóveis, 400 mil caminhões e ônibus e cerca de 30 mil instalações industriais da Região Metropolitana.
Apoiados ainda em medições de 1999 e 2000, que se somaram a informações colhidas rotineiramente pela Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), os pesquisadores passaram a entender melhor não só as mudanças climáticas, mas também as origens e os movimentos das massas de ar que se desfazem, estacionam ou mudam de rota ao encontrar as serras e os corredores de prédios. São os ventos originados mais freqüentemente no mar que carregam a poluição produzida na cidade, principalmente por veículos, em volumes nada desprezíveis: 1,6 milhão de toneladas de monóxido de carbono, 380 mil toneladas de hidrocarbonetos e 64 mil toneladas de aerossóis (material particulado) por ano. Além de mostrar que esses poluentes afetam a qualidade de vida na capital e nos municípios vizinhos, o estudo é provavelmente o primeiro a medir a origem e o destino do ar respirado em São Paulo.
A Região Metropolitana produz a maior parte de seus poluentes: de 70 a 80%. O resto vem do interior ou de outros Estados: entre fins de outubro e começo de novembro, cerca de 10% da poluição da metrópole é resíduo de queimadas, principalmente de cana, feitas a até 300 km de distância, nas regiões de Piracicaba ou Ribeirão Preto. Mesmo as cinzas de queimadas no sul da Amazônia podem chegar à maior cidade do Brasil, dependendo da direção e da intensidade dos ventos – a movimentação diária dos ventos pode ser acompanhada na página www.master.iag.usp.br, construída com os resultados da pesquisa.
A análise do movimento e da qualidade do ar baseou-se numa metrópole ampliada em raio de 100 km – inclui parte da Baixada Santista (Santos e Cubatão), do Vale do Paraíba (até São José dos Campos) e de áreas mais planas, como Sorocaba e Campinas. Foi essa visão abrangente que permitiu conhecer os pontos e os processos de formação de ozônio. Já se sabia que há menos ozônio no centro ou em Congonhas, porque os próprios poluentes dessas áreas – sobretudo óxidos de nitrogênio – o consomem. É pela falta desses poluentes que pode haver mais ozônio no parque do Ibirapuera do que na vizinha avenida 23 de Maio.
Levados pelas massas de ar, os poluentes emitidos pelos carros – formadores do ozônio – saem da capital e participam de reações promovidas pela luz solar, que demoram de duas a três horas para se completar – tempo suficiente para que cheguem a municípios vizinhos ou estacionem nas encostas das serras. A situação se agrava em novembro, quando há muitos dias ensolarados e sem nuvens. O detalhamento do processo foi um trabalho duro. A vice-coordenadora Maria de Fátima Andrade, do IAG, estudou a formação e interação de poluentes. Com os valores do inventário de emissões, estudou a formação de ozônio a partir de óxidos de nitrogênio, hidrocarbonetos e radicais livres (fragmentos de moléculas formadas a partir de oxigênio). O programa de previsão de formação de ozônio que ela usou tem cerca de 200 reações com 90 poluentes.
Tampa de panela
Ficou clara a importância da brisa marinha – corrente de ar de baixa intensidade que nasce no oceano, como resultado da diferença de temperatura entre o mar e o continente. É essa brisa, ao circular a 500 metros da superfície, que ameniza a temperatura da capital e intensifica a dispersão de poluentes, sobretudo quando associada aos ventos de Sudeste, correntes mais intensas, também originadas no mar. O efeito refrescante desses ventos marinhos, descobriram os pesquisadores, pode chegar até São Carlos ou Pirassununga, a 230 km da capital. “São Paulo tem sorte de estar perto do mar”, diz o coordenador. “O clima seria pior, do ponto de vista do impacto sobre a saúde pública, sem a brisa.” Dias quentes e abafados são dias em que a brisa marinha não atinge a cidade.
A equipe fez também um perfil tridimensional das massas dearna Região Metropolitana: é a camada-limite planetária, região baixa da atmosfera onde os poluentes reagem entre si. Descrita num artigo publicado em abril de 2001 em Atmospheric Environment, essa região ocupa de 50 a 100 km ao redor do centro de São Paulo. Sua altura depende da força dos ventos que abriga, mas durante o dia chega a 1.500 metros do solo. À noite, o limite cai para 400 metros ou menos e, como o volume ocupado pelo ar urbano diminui, a concentração de poluentes aumenta.
O ar piora com um fenômeno típico do inverno paulistano: inversão térmica. Na chegada de uma frente fria, a temperatura sobe com a altura, ao contrário do habitual: normalmente a temperatura cai 1ºC a cada 100 metros de altitude. Em 1999 e 2000 houve observações por meio do Sodar – Sounding Detection and Ranging ou sondador acústico, aparelho que emite sinais sonoros como um radar de submarino e traça o perfil da variação térmica a até 1.500 metros do solo. Apurou-se que, sob forte inversão térmica, a camada-limite pode cair para 200 metros. Ela funciona como uma tampa de panela e, quanto mais baixa, mais concentração de poluentes. “Para os moradores da cidade, é a pior situação”, diz Fátima.
O Sodar evidenciou também dois fenômenos que afetam a qualidade do ar. Um deles é o dos “jatos noturnos”, ventos verticais intensos que resultam de mecanismos atmosféricos de maior escala, como as frentes frias – massas de ar vindas do sul do continente. Os jatos quebram a estabilidade da camada-limite noturna e podem trazer para baixo poluentes como o ozônio, aumentando sua concentração perto da superfície. Além disso, a mistura do ar provocada pelos jatos também pode contribuir para a diminuição da concentração de poluentes produzidos na superfície, como a poeira.
A situação pode melhorar com o segundo fenômeno, o das ondas de gravidade. Mais intensas à noite, assemelham-se às ondas de água que batem numa barreira: ao subir a Cantareira, o ar origina oscilações, análogas às ondas de água, o que contribui para reduzir a poluição. “Esta foi a primeira vez que se estudou o perfil tridimensional da poluição na Região Metropolitana”, comenta Paulo Artaxo, pesquisador do Instituto de Física da USP que participou do trabalho. Para chegar onde chegaram, os especialistas soltaram balões parecidos com os de festas de aniversário, que sinalizam a direção e a intensidade dos ventos. Valeram-se também de um avião Bandeirante do Instituto Nacional de Pesquisas Espacial (Inpe). Em quatro vôos, nos invernos de 1999 e 2000, coletaram amostras de ar das cidades de São Paulo, Sorocaba, São José dos Campos, Campinas e Cubatão, voando a 200 metros do solo, abaixo do tráfego aéreo.
Variação brusca
Os pesquisadores analisaram a concentração dos gases poluentes ozônio, óxidos de nitrogênio, monóxido de carbono e dióxido de enxofre. A concentração de material particulado foi analisada por uma técnica que analisa os raios X gerados por uma amostra num acelerador de partículas. Foram analisados tanto o material fino, de menos de 2 micra (1 mícron é a milésima parte do milímetro), que entra na corrente sanguínea e atinge os alvéolos pulmonares, quanto o grosso, acima de 2 micra, que causa rinite, tosse e resfriado. Primeira conclusão: a concentração de poluentes pode variar bruscamente num local. Em medição do dia 13 de agosto de 1999 no aeroporto Campo de Marte, havia 9.000 partículas por centímetro cúbico (cm3) a 1.000 metros de altitude.
A 1.500 metros, o teor de material particulado caía para 2.000 por cm³. A diferença também varia muito com a distribuição geográfica: “Das áreas litorâneas para ocentro da cidade, a concentração de material particulado subiu 20 vezes”, diz Artaxo. E as fontes desses poluentes variam no ano. Num estudo feito no inverno, a distribuição de material particulado fino foi esta: veículos, 28%; poeira do solo, 25%; sulfatos de fontes industriais, 23%; e queima de óleos industriais, 18%. Já no verão, a participação dos carros cai para 24% e se destacam a poeira do solo (30%) e a queima de óleo residual (21%).
Ficou claro que a emissão de poluentes se casa com as condições meteorológicas para determinar a qualidade do ar. O problema é que uma lógica ainda misteriosa rege essa combinação. “Se reduzíssemos a emissão de poluentes pela metade, pode ser que a poluição não caísse pela metade”, diz Artaxo. “Em algumas condições meteorológicas, poderia cair muito pouco.” Estudos mais refinados do Instituto de Física indicaram que o material particulado afeta o comportamento das camadas mais baixas da atmosfera. Já se descobriu que a poeira, sobretudo a mais fina, absorve e reflete luz, além de aquecer o ar ao redor – o ar poluído a 1 km do solo é mais quente que o ar puro na mesma altitude. As partículas também diminuem a visibilidade e dificultam a dispersão de poluentes – e oferecem o pôr-do-sol avermelhado típico da capital.
Já se conhece a composição dessa poeira da cidade: há partículas de pelo menos 13 elementos, como enxofre, cloro, titânio, ferro, níquel, zinco, bromo e chumbo. No particulado fino, predomina o enxofre e no grosso elementos vindos do solo, como silício, cálcio e ferro. Nessa sopa aérea também circulam esporos de fungos e bactérias. Só não se sabe de onde vem mais material particulado, se dos carros ou das indústrias. Por isso, Fátima e a equipe do Instituto de Química da USP coordenada por Lílian Carvalho viveram dois dias desconfortáveis fazendo medições e coletas em dois túneis da cidade: o Jânio Quadros, por onde só passam veículos leves, e o Maria Maluf, que também recebe caminhões.
São laboratórios onde se misturam poluentes que ainda não reagiram entre si – entre outras razões, porque ali não há radiação solar. Nos próximos meses, à medida que o grupo concluir as análises, conhecerá melhor a contribuição dos veículos. O aprofundamento da pesquisa evidencia mais as soluções. Estudos semelhantes em Santiago do Chile permitiram reduzir pela metade a concentração de poluentes, cuja dispersão é barrada pela cordilheira. Segundo Artaxo, foi simples: depois de se descobrir que a poeira era o maior poluente, concluiu-se ser mais viável investir em caminhões que varrem as ruas toda noite do que controlar a emissão de poluentes por indústrias e veículos. “Poluição do ar tem solução”, diz Artaxo. “Basta criar um plano de controle bem embasado cientificamente, com metas claras e multas para quem não cumpri-las.”
Soluções à mão
Para ele, não se trata de criar, mas de implantar medidas já anunciadas: mais investimento no transporte urbano coletivo, controle anual de emissões veiculares e substituição dos ônibus a diesel por equivalentes a gás. “Se essas medidas houvessem sido aplicadas há dez anos, a poluição hoje seria de 30 a 50% menor.” Há mudanças em andamento. Já funciona no pico do Jaraguá uma estação móvel da Cetesb que mede o teor de material particulado, dióxido de enxofre, monóxido de carbono e ozônio a 300 metros do solo. Há outras 23 estações fixas e duas móveis na Região Metropolitana e seis fora: Cubatão (duas), Campinas, Paulínia, Sorocaba e São José dos Campos.
Atentos ao futuro, pesquisadores da USP buscam o estudo da poluição por imagens de satélites com resolução de 1 a 5 km. O satélite Terra, lançado no ano passado pela Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, mostra ser possível detectar ao menos o teor de partículas na faixa da luz visível e de monóxido de carbono no infravermelho. Em dez anos, quando a Região Metropolitana fundir-se com Campinas e São José dos Campos, como se prevê, talvez seja difícil administrar centenas de sensores para saber como está o ar do dia. De imediato, o estudo ensina a ter uma idéia da qualidade do ar só com uma olhada no céu. Se há nuvens, é bom sinal, pois elas funcionam como aspiradores: sugam o ar poluído das camadas baixas da atmosfera e o expelem para o alto.
O projeto
Meteorologia e Poluição Atmosférica em São Paulo (96/01403-4); Modalidade: Projeto temático; Coordenador: Pedro Leite da Silva Dias – Instituto Astronômico e Geofísico – USP; Investimento: R$ 1.411.210,01