Um impasse burocrático criou um obstáculo inusitado para cientistas e empresas que fazem pesquisas com material genético de organismos terrestres e marinhos – plantas, animais, algas e microrganismos – provenientes da biodiversidade brasileira. Há cinco meses eles estão impedidos de enviar amostras para estudos no exterior ou publicar resultados científicos desses materiais. Ocorre que a nova Lei da Biodiversidade (nº 13.123) entrou em vigor em novembro de 2015, mas sua regulamentação atrasou. Isso gerou um vazio jurídico, impedindo que órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) apreciem pedidos para envio de amostras de pesquisas em curso, como faziam anteriormente. Novas autorizações para iniciar pesquisas também estão suspensas.
“Interromperam, do dia para a noite, o nosso trabalho. É inadmissível que não se tenha pensado em regras para a transição de uma legislação para outra”, afirma Luís Fábio Silveira, curador de coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP). Em dezembro, ele recebeu um comunicado do Ibama negando solicitação para enviar amostras de tecidos de aves a um laboratório nos Estados Unidos, no qual seria feito o sequenciamento genético do material. O órgão justificou que está sem amparo legal para emitir licenças.
O problema aconteceu depois que o governo optou por fazer consultas informais sobre o decreto de regulamentação após a sanção da lei, em maio de 2015. As sugestões recolhidas foram consolidadas num texto apresentado em novembro, às vésperas da data em que a lei entrou em vigor. O decreto, porém, teve pontos contestados pelo Ministério Público e entidades da comunidade científica e dos ambientalistas e seu texto foi recolhido. Uma nova proposta foi aberta somente em abril para consulta pública até o dia 2 de maio. “Esse problema poderia ter sido evitado se o governo tivesse aberto a consulta pública formal no dia seguinte à sanção da lei e discutido todas as sugestões previamente, já que ela tinha 180 dias para entrar em vigor. Dessa forma, no dia seguinte à entrada em vigor da nova lei, a regulamentação já estaria publicada”, diz Bruno Sabbag, professor de direito ambiental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Não se pensou em manter a legislação anterior, porque havia muitos problemas na sua aplicação. Tinha pedido de autorização de empresas tramitando há anos por conta da burocracia excessiva.”
Quando houver regulamentação, instituições de pesquisa e empresas terão novas regras para realizar estudos com a biodiversidade brasileira. Já é possível destacar um conjunto de mudanças que deverá afetar o trabalho de pesquisadores e empresas que dependem do acesso ao patrimônio genético, como indústrias farmacêuticas e de cosméticos. Povos indígenas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais, como os quilombolas, também serão afetados pela lei. Isso porque eles podem ser detentores dos chamados conhecimentos tradicionais, isto é, de informações e práticas relacionadas ao uso de espécies nativas, como plantas com propriedades medicinais, e serão recompensados pelo seu uso.
A principal novidade da lei é que, para ter acesso ao material biológico de espécies, passa a ser necessário apenas um cadastro eletrônico do pesquisador ou da empresa, que deverá ser realizado nas etapas mais avançadas da pesquisa, isto é, antes da remessa de material ao exterior, do requerimento de direito de propriedade intelectual, da comercialização do produto ou da divulgação de resultados em meios científicos ou de comunicação. A legislação anterior, uma medida provisória de 2001, obrigava o pesquisador ou a empresa a fazer solicitação prévia a órgãos como o Ibama e o CNPq e, sem tal autorização, não era possível iniciar a pesquisa. “Ao desburocratizar o acesso à biodiversidade, a medida deverá agilizar o processo de desenvolvimento de novos produtos”, diz Elisa Romano, especialista em política e indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI), uma das instituições que representaram o setor empresarial durante a elaboração da lei.
A medida atende a um pleito antigo da comunidade científica e das empresas, que nos últimos tempos trabalharam sem seguir à risca a legislação. “Isso aconteceu devido às dificuldades impostas pela medida provisória de 2001 e pela insegurança jurídica que ela causava”, explica Elisa Romano. Em alguns casos, empresas tiveram de pagar multas vultosas. Em 2010, por exemplo, a empresa de cosméticos Natura foi autuada em R$ 21 milhões por uso da biodiversidade sem autorização. “O cadastro representa um avanço. Será possível iniciar uma pesquisa sem a necessidade de aguardar a permissão de algum órgão público”, avalia Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
O texto da regulamentação prevê a criação do Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético (SISGen), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), que será responsável, entre outras funções, por gerenciar o cadastro. “O objetivo é simplificar a pesquisa e facilitar a fiscalização dos cadastrados”, diz Rafael Marques, diretor do Departamento de Patrimônio Genético do MMA. Outra exigência é que, em certos casos, cientistas e empresas serão obrigados a pedir autorização diretamente a povos indígenas e comunidades tradicionais envolvidos antes de começar a fazer uma pesquisa com o patrimônio genético. Isso será feito apenas quando for possível identificar que uma espécie a ser estudada está associada a um conhecimento cuja origem pode ser atribuída a uma comunidade. A autorização poderá ser feita por escrito, assinada por um representante da comunidade, ou por meio de recursos audiovisuais, com um depoimento gravado em vídeo do representante dando anuência. Caberá ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao MMA, fiscalizar a autorização e a distribuição da compensação financeira.
Compensação econômica
A lei traz também novas diretrizes referentes à repartição de benefícios. Como regra geral, a empresa deverá depositar 1% da receita líquida do produto no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. O dinheiro será distribuído pela União a povos indígenas e comunidades tradicionais. Mas, caso a espécie estudada estiver comprovadamente associada a um conhecimento tradicional, a empresa terá de negociar uma compensação diretamente com o grupo que detém esse conhecimento. Além disso, terá de repassar 0,5% da receita líquida do produto ao fundo. Estão isentos de compensação econômica fornecedores de produtos intermediários, como insumos e matérias-primas, microempresas, microempreendedores individuais e pesquisadores. Elisa Romano, da CNI, explica que a lei permite que a compensação seja feita sem envolver dinheiro. “A empresa pode fazer um acordo com a comunidade tradicional e transferir a ela alguma tecnologia. São possíveis ainda outras formas de cooperação entre as partes envolvidas, como capacitações e projetos de conservação da biodiversidade”, diz.
Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, destaca o fato de a lei exigir que apenas empresas, e não os pesquisadores, façam a repartição de benefícios. “A pesquisa básica será beneficiada, por exemplo, em estudos da estrutura molecular de plantas. A ciência não acessa a biodiversidade apenas para fins econômicos”, explica.
Outras questões ainda dependem da regulamentação da lei para serem definidas. A proposta apresentada inicialmente pela Casa Civil, feita pelo MMA após consultas públicas, preocupa diversas entidades. A SBPC, por exemplo, queixa-se do ponto que obriga o pesquisador a fazer um cadastramento prévio, junto ao governo brasileiro, se quiser utilizar bancos de dados públicos de sequências de DNA e de proteína do exterior, como o GenBank. “Em nenhum outro país exige-se que o pesquisador faça um cadastro para utilizar informações de bancos internacionais públicos”, diz Beatriz Bulhões, especialista em política científica e representante da SBPC no Congresso Nacional.
A SBPC também é contrária à criação do SISGen, que está previsto na regulamentação, mas não era citado na lei. E defende que o novo cadastro seja centralizado no CNPq. “Já existe hoje uma plataforma do CNPq na qual são registradas as pesquisas com biodiversidade. Bastaria apenas ampliá-la, em vez de se criar um sistema do zero. Isso vai gerar custos desnecessários à administração pública”, observa Helena Nader.
Rastreamento
Organizações não governamentais, como o Instituto Socioambiental (ISA), também têm restrições à proposta. O argumento é de que a nova legislação e o decreto que a regulamentaria excluem questões de interesse de povos indígenas e comunidades tradicionais. Pela lei, se uma empresa encontrar uma aplicação inovadora de uma planta medicinal que não tenha relação com o uso feito pela comunidade tradicional, não precisaria dar compensação alguma. O ISA defende uma compensação mais abrangente. “Nesses casos, as comunidades tiveram um papel no manejo da espécie, sem o que ela não estaria disponível para exploração”, diz Nurit Bensusan, coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA.
O ISA também propõe que se invista em iniciativas para rastrear com eficiência a origem do conhecimento tradicional para produzir compensações mais justas. O problema é que esse conhecimento, com frequência, difundiu-se por várias comunidades. “No caso de povos mais antigos, costuma ser difícil rastrear a origem exata do conhecimento”, diz Maria das Graças Lins Brandão, coordenadora do Centro Especializado em Plantas Aromáticas, Medicinais e Tóxicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela cita o exemplo de uma árvore típica do Cerrado, o barbatimão, cuja casca é rica em uma substância utilizada para tratar feridas e doenças da pele. “A bibliografia antiga mostra que esse conhecimento era compartilhado por várias populações que viviam no Cerrado. Não há registros suficientes para determinar a origem exata de quem começou a explorar o barbatimão”, explica.
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