Vistos a distância por olhos desavisados, os corpos celestes parecem plácidos. Mas alguns deles estão repletos de vulcões, e só quem já presenciou a força de uma erupção sabe o que é sentir o chão tremer e ouvir explosões ensurdecedoras. Em certos vulcões é possível subir ao topo, cheirar o enxofre que emana da lava ardente e vê-la mover-se devagar dentro da cratera antes de se derramar pela encosta. Mais emocionante do que isso, só uma viagem espacial. A opinião é da astrônoma Rosaly Lopes, pesquisadora do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa, a agência espacial norte-americana. Ela conseguiu reunir as duas coisas: estudou vulcões terrestres e usa esse conhecimento para explorar – a distância – formações semelhantes em outros planetas. Entrou para o livro Guinness dos recordes por ser a maior descobridora de vulcões (encontrou 71 em Io, uma das luas de Júpiter) e agora ajuda a descrever vulcões que cospem gelo em Titã, de longe a maior das luas de Saturno, quase metade do tamanho da Terra.
Os vulcões de Titã estão sendo revelados pela missão Cassini, desde 2004 em órbita em torno de Saturno. A construção, o planejamento e o controle da missão estão a cargo do Laboratório de Propulsão a Jato, onde trabalham 5 mil pessoas – a maior parte engenheiros. A divisão de ciência, da qual Rosaly faz parte, tem cerca de 500 pesquisadores. “A cada um ou dois meses a nave Cassini passa perto de Titã”, conta Rosaly. Parte da função da astrônoma brasileira é planejar essas passagens e trabalhar com engenheiros que manobram a nave, fazendo pequenas alterações na órbita da Cassini para ajustar o ângulo de observação e determinando qual dos 12 instrumentos recolherá dados sobre a lua de Saturno.
Imagens dos primeiros quatro anos da missão dão indícios claros de atividade vulcânica recente em Titã, conforme dois artigos publicados este ano na Geophysical Research Letters. A base principal para as interpretações é o que se sabe sobre como funcionam os vulcões terrestres. Informações como a forma do vulcão, se ele é explosivo ou não, como o magma vem à superfície e como é a erupção ajudam a entender as imagens de novos vulcões encontrados em outras partes do Sistema Solar. Mas os vulcões de Titã têm uma diferença marcante, um fenômeno conhecido como criovulcanismo. O que jorra das fraturas na superfície de gelo não é rocha derretida, mas sim água congelada, provavelmente misturada com amônia ou metano e com a consistência de um purê. “Água pura não conseguiria passar pela camada de gelo, já que gelo boia na água”, explica Rosaly. A mistura diminuiria a densidade do líquido, que assim chegaria à superfície.
Por enquanto os pesquisadores ainda não viram vulcões ativos na lua de Saturno. O que enxergaram, com auxílio de um espectrômetro, foi uma mudança de brilho que tem a aparência de fluxo vulcânico. Parece sutil, mas para Rosaly são indícios fortes que corroboram as imagens de radar que a Cassini obteve na primeira passagem por Titã, em outubro de 2004. Em 2007 a pesquisadora já descreveu essas imagens como feições criovulcânicas na revista Icarus. Titã tem dunas moldadas por vento e um ciclo de metano semelhante ao ciclo da água na Terra. A superfície geologicamente complexa é constantemente escavada por chuvas, lagos e rios de metano líquido, mostrando uma interação complexa entre atmosfera e superfície.
Explorações anteriores espaço afora mostraram que em Io – a terceira maior entre as 63 luas de Júpiter, um pouco maior do que a nossa Lua – a geologia é bem diferente. A partir de imagens obtidas entre 1996 e 2001 pelo espectrômetro da nave Galileu, Rosaly e sua equipe descreveram a atividade vulcânica dessa lua em diversos artigos publicados, entre outras publicações científicas, em 2000 na Science e em 2004 na Icarus, mas ainda há dúvidas quanto à composição química das lavas por lá. A Galileu e outros telescópios em Terra indicam que a temperatura do material que sai dos vulcões de Io podem chegar a mais de 1.300 graus Celsius, mais quente que os basaltos derretidos na Terra. “Se estiver correto, seriam vulcões de um tipo que já houve na Terra bilhões de anos atrás”, interpreta a astrônoma. Mas essa medida foi obtida em só um ponto, e por isso ainda não é considerada confiável por muitos pesquisadores. O desafio não é pequeno: a lava esfria depressa e a temperatura é medida esporadicamente e a grandes distâncias por aparelhos de calibragem complexa. Essa calibragem precisa ser revista para validar as observações controversas.
Mesmo assim a missão Galileu permitiu explorar bastante os arredores de Júpiter. Usando imagens em infravermelho para medir o calor da lava dos vulcões de Io entre 1996 e 2001, Rosaly descobriu lá os 71 vulcões que a tornaram recordista mundial. “Em alguns vulcões de Io, o fluxo de lava derrete o dióxido de enxofre congelado na superfície”, descreve. O fluido em seguida escava o chão até encontrar dióxido de enxofre mais profundo, criando uma nuvem vertical de fumaça e partículas conhecida como pluma vulcânica. “A lava avança e a pluma avança junto, coisa que nunca se viu na Terra”, conta. Por causa dessa intensa atividade vulcânica que reveste Io com rocha derretida, a superfície é relativamente jovem – o que fica evidente pela ausência de crateras produzidas por impactos de asteroides e meteoros.
Comparar vulcões terrestres e extraterrestres é um recurso importante para entender os planetas. Muito mais do que uma aventura em que pesquisadores enfrentam as mais potentes forças da natureza, os estudiosos de vulcões espiam para dentro de válvulas por onde escapa o calor retido no miolo de um planeta ou satélite, por isso a atividade vulcânica traz informações importantes sobre a sua evolução. As manchas escuras da Lua, por exemplo, são verdadeiros oceanos de lava que se formaram há mais de 3 bilhões de anos. Agora a Lua esfriou a ponto de já não ter vulcanismo ativo. Astrônomos encontraram vulcões também em Enceladus (outra lua de Saturno) e suspeitam que eles existam em Vênus. Por causa dos paralelos entre o vulcanismo de planetas diferentes, Io tem ajudado a entender as propriedades dos vulcões terrestres e a reconstruir a história deste planeta.
Das espetaculares erupções vulcânicas à exploração de outros planetas, o que move Rosaly é a aventura e a descoberta. Vem daí o prêmio que ela recebeu este ano da organização Wings WorldQuest, que “celebra e apoia extraordinárias mulheres exploradoras e promove a exploração científica, a educação e a conservação para inspirar gerações futuras”, princípio que condiz com a trajetória da brasileira. Muito míope, ela ainda criança percebeu que não poderia ser astronauta. Mas em vez de abandonar o sonho, preferiu ajustá-lo. Saiu do Brasil aos 18 anos para estudar astronomia na Inglaterra, porque aqui não via oportunidades de explorar outros planetas. “Hoje o quadro mudou bastante, mas a pesquisa em astrofísica ainda é muito mais avançada no Brasil do que a astronomia planetária”, conta.
No doutorado, na Universidade de Londres, ela comparou os vulcões da Terra e de Marte e se encantou pelo espetáculo das erupções. Esse trabalho deu origem ao livro Turismo de aventura em vulcões, publicado no Brasil no ano passado pela Oficina de Textos. Nele Rosaly dá uma aula sobre vulcões, informa e incita o aventureiro a viajar para ver um vulcão em atividade.
No Brasil, ela colabora com o projeto educacional de Marcos Luna, do Núcleo Tecnológico do Agreste, em Bezerros, no sertão pernambucano. No ano passado ele inaugurou uma base de lançamento de foguetes experimentais batizada com o nome da brasileira da Nasa, que participou do evento, falou sobre seu trabalho e continua a dar palestras por teleconferência. Ali, alunos do ensino médio aprendem noções de engenharia, propulsão e geologia. O centro está fechado desde o início deste ano, porque está sendo transferido para Salgueiro, numa área mais isolada. Rosaly espera aumentar ainda mais o entusiasmo desses jovens, mostrando que é possível sair de uma escola pública brasileira e chegar à Nasa, como ela fez.
Artigos científicos
WALL, S. D. et al. Cassini RADAR images at Hotei Arcus and western Xanadu, Titan: evidence for geologically recent cryovolcanic activity. Geophysical Research Letters. v. 36, L04203. 2009.
NELSON, R.M. et al. Photometric changes on Saturn’s Titan: evidence for active cryovolcanism. Geophysical Research Letters. v. 36, L04202. 2009.
LOPES-GAUTIER, R. et al. A close-up look at Io from Galileo’s near-infrared mapping spectrometer. Science. v. 288, p. 1.201-1.204. mai. 2009.