Produzir vacas e cabras que possuam no leite a proteína humana responsável pela coagulação do sangue, chamada de fator IX, vai representar um grande avanço para os portadores de hemofilia. Ao ser isolada do leite, essa proteína poderá se transformar em um produto mais barato e mais facilmente disponível para os doentes que hoje controlam a doença com medicamentos derivados do sangue de doadores sadios. A hemofilia é uma doença genética caracterizada por problemas na coagulação do sangue e sem o fator IX, os pacientes podem ter hemorragia em qualquer corte na pele, por exemplo. Os estudos para essa nova possibilidade de tratamento da hemofilia foram iniciados por meio de uma parceria entre pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Empregando recursos da biologia molecular, os pesquisadores dessas duas instituições estão trabalhando para desenvolver vacas e cabras geneticamente modificadas capazes de produzir o fator XI no leite.
O primeiro passo para criar essas “biofábricas” foi desenvolver na Unifesp uma linhagem de camundongos transgênicos que possuem em seu código genético o gene codificador dessa proteína humana. Amostras do leite dos roedores transgênicos contendo a proteína da coagulação estão sendo avaliadas por uma equipe do Hospital de Apoio de Brasília. “Nós estamos coletando o sangue de pacientes portadores de hemofilia para avaliar in vitro o efeito de coagulação e compará-lo aos produtos comercializados hoje”, afirma o pesquisador Elíbio Rech, coordenador do projeto na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Em seguida, vamos partir para a produção de um bovino transgênico. Como já dominamos essa tecnologia, nossa expectativa é conseguir produzir um animal com o gene humano do fator IX até 2007”, diz o cientista.
A criação dos camundongos geneticamente modificados, pontapé inicial da pesquisa, foi feita há cerca de um ano. Os trabalhos foram coordenados pelo químico João Bosco Pesquero, vice-diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais em Medicina e Biologia (Cedeme) da Unifesp, e contaram com as participações do professor Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello, diretor-geral do centro, da bióloga Heloisa Allegro Baptista, responsável pelo laboratório de animais transgênicos, e da biomédica Fabiana Louise Teixeira Motta. Os camundongos apresentam, além da semelhança de funcionamento com o organismo humano, uma série de vantagens sobre outros animais.
“O custo da manutenção do camundongo é dezenas de vezes mais baixo do que o de cabras e de vacas e o tempo de gestação e desenvolvimento do animal é muito mais rápido, o que nos permite saber se a experiência foi ou não bem-sucedida. Em três meses, o filhote já nasceu, desmamou e está pronto para procriar”, diz Pesquero. A constatação de que os filhotes são ou não transgênicos é feita um mês após o nascimento. Pequenos pedaços da orelha ou da cauda dos animais são submetidos à análise de DNA para avaliar se os genes exógenos estão ou não presentes em seus genomas.
Criado em 1996, em substituição ao Biotério Central, o Cedeme é o único laboratório nacional e um dos dois da América do Sul – o outro fica na Universidade de Buenos Aires, na Argentina – com capacidade para produzir localmente modelos de animais transgênicos para outros pesquisadores. Esses camundongos produzidos a partir da retirada de um gene qualquer (modelo nocaute) ou por meio do acréscimo de um gene exógeno (modelo de adição gênica) têm diversas aplicações científicas e biotecnológicas. “Na área médica, criamos modelos animais para estudar doenças humanas, como hemofilia, hipertensão, diabetes, mal de Alzheimer e câncer, e desenvolver drogas e terapias para combatê-las”, conta Pesquero. “As restrições éticas e de custo são muito menores para a realização de experimentos nesses animais”.
Os camundongos geneticamente modificados da Unifesp têm menos de 10 centímetros de comprimento e são ideais também para estudar a função dos genes humanos. “Com o recente seqüenciamento do genoma humano, pudemos verificar que não conhecemos a função da maioria dos genes presentes em nosso genoma. Dessa forma, os animais transgênicos são ferramentas importantes para se obter informações sobre a função desses genes”.
Além disso, a tendência atual da indústria farmacêutica mundial é fazer uma “humanização dos camundongos” para a utilização desses modelos no desenvolvimento de novas drogas contra várias doenças. Nesse processo um gene do roedor é retirado do genoma do animal pela técnica de nocaute e um gene humano é inserido pelo processo de adição gênica. Esse processo deve facilitar muito o desenvolvimento de novos medicamentos, barateando os custos e diminuindo o tempo para a nova droga chegar às farmácias. “Outra grande vantagem do nosso trabalho para o país é a independência tecnológica.
A longo prazo, ele também resultará em economia para pesquisadores que precisam importar os modelos animais por valores altíssimos. Nossos camundongos custam cerca de US$ 5 mil o par, enquanto se forem importados o preço pode chegar a ser dez vezes mais alto”, diz Pesquero. Para ele, há um bom mercado para esses animais no país. “Existem cerca de 50 a 100 grupos de cientistas brasileiros fazendo pesquisas com animais transgênicos e muitos não sabem que temos esse know-how. Além disso, nossos modelos poderão ser vendidos para cientistas de outros países”.
O primeiro transgênico criado pelo grupo foi o camundongo Vítor, nascido no dia 24 de dezembro de 2001 (veja Pesquisa FAPESP nº 75). O roedor foi produzido com a duplicação do receptor B2 das cininas, uma substância associada a processos inflamatórios e hipertensivos. Embora não tenha sido o primeiro camundongo geneticamente modificado desenvolvido no Brasil, o laboratório da Unifesp é o único do país que hoje está estruturado para fornecer animais transgênicos pela técnica de microinjeção pronuclear, a mais usada por cientistas no mundo. “A grande vantagem desse método em relação aos outros é a eficiência na produção. O índice de animais positivos, que contêm o gene inserido em seu genoma, é bem superior ao de outros métodos”, diz Pesquero.
Por essa técnica, o óvulo fecundado é coletado momentos depois da cópula. Antes que os núcleos celulares do espermatozóide e do óvulo, chamados pronúcleos, se fundam, é injetado num deles uma solução com cópias do DNA exógeno, que podem ser de indivíduos de mesma espécie ou de outras (por exemplo, genes humanos). O passo seguinte é transferir o embrião para o útero de uma fêmea procriadora hospedeira, a chamada “mãe de aluguel”, onde o filhote será gestado.
Outra vantagem dessa técnica é que ela permite obter animais que expressem o gene exógeno em todas as suas células, inclusive nas germinativas (óvulo ou espermatozóide), garantindo a prole transgênica. “Embora mais eficaz, a técnica de microinjeção pronuclear é também mais cara e exige equipamentos especiais, como microscópios de luz invertida e micromanipuladores, além de pessoal altamente qualificado”, explica Pesquero. Depois do nascimento de Vítor, a equipe da Unifesp já conseguiu produzir com sucesso outros dois roedores com alterações genéticas, além daquele com o gene da proteína do fator IX.
Um desses animais, um camundongo (Mus musculus), recebeu a adição de um gene de rato (Rattus norvegicus), produtor da enzima tonina, que, acredita-se, está relacionada a processos hipertensivos. Esse animal foi gerado para o pesquisador Jorge Luiz Pesquero, irmão de João Bosco e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Mogi das Cruzes (UMC). “Em experiências in vitro, a tonina participa do processo de liberação da angiotensina II, uma substância que produz vasoconstrição (redução do calibre dos vasos sangüíneos). Para saber com segurança se ela está realmente envolvida na gênese e na manutenção da hipertensão arterial, uma alternativa é estudar animais transgênicos que tenham essa enzima produzida numa escala amplificada”, afirma o cientista.
Hipertensão e memória
“Depois de dois anos de trabalho, obtivemos informações muito interessantes. Nossos dados apontam para uma direção ligeiramente diferente da que esperávamos. Os animais com os genes exógenos de tonina são levemente hipertensos, mas não por causa da liberação de angiotensina II. Agora nosso desafio é descobrir que substâncias estão envolvidas nesse processo hipertensivo”, afirma Jorge Pesquero. Os resultados da pesquisa são importantes porque poderão auxiliar no tratamento de milhões de portadores de hipertensão existentes no planeta.
O outro camundongo transgênico nascido na Unifesp recebeu uma seqüência de DNA para produzir uma grande quantidade de uma proteína que pode estar envolvida na regulação de aspectos do comportamento alimentar e da memória. Esse estudo está sendo realizado pela pesquisadora Beatriz Castilho, da mesma instituição. “Nossas pesquisas estão ainda bem no início. Recebemos o primeiro animal transgênico do Cedeme há quatro meses”, diz a pesquisadora.
Desde a criação do primeiro camundongo transgênico, há quatro anos, os cientistas do Cedeme conseguiram aperfeiçoar seu método de trabalho. Prova disso é que para a criação do primeiro foi necessário inocular 500 embriões. Hoje o índice de acerto é muito maior, da ordem de 1%. Assim para cada animal produzido são inoculados cem embriões, em média. O domínio da técnica também tem agilizado a produção dos modelos animais. Além da produção desses roedores, o Cedeme também trabalha com criopreservação, técnica que consiste no armazenamento de espermatozóides ou embriões dos transgênicos para preservar suas linhagens (ou descendentes). “Essa é uma área importante porque é muito mais barato manter esse banco de germoplasma do que conservar os animais vivos em cativeiro”.
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