O Brasil tem um índice de 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres, o quinto maior do mundo, segundo dados compilados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A maioria dos crimes é cometida dentro de casa, não raro por pessoas próximas às vítimas. O número de notificações de agressões também assusta. Somente em 2017, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde registrou 230.078 casos de agressão física doméstica contra mulheres, com frequência envolvendo pessoas com baixo índice de escolaridade e que apresentam uso abusivo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. Mais recentemente, outros estudos investigaram fatores socioeconômicos possivelmente relacionados aos casos de violência doméstica contra mulheres no país.
Em um deles, publicado no início de janeiro na revista PLOS One, uma equipe de pesquisadores brasileiros e canadenses analisou 3.559 relatórios médicos e policiais de episódios de violência doméstica registrados em Campina Grande entre 2012 e 2014. A cidade é a segunda mais populosa da Paraíba, com 410.332 mil habitantes, e constitui um dos principais polos econômico e industrial da região Nordeste. Os dados reunidos pelos pesquisadores resultaram de casos de mulheres que registraram queixa das agressões em boletins de ocorrência e foram submetidas a exames de corpo de delito. Os documentos continham dados como idade, estado civil, nível educacional, ocupação e endereço das vítimas e de seus agressores.
Com base na análise dessas informações, verificou-se que, entre os casos notificados, os episódios de violência física cometida por homens ocorriam com frequência dentro de casa, contra mulheres. De modo geral, de cada 10 vítimas de violência doméstica, oito eram mulheres. Quase todas entre 19 e 39 anos de idade. “Os agressores muitas vezes eram indivíduos com algum grau de parentesco com a vítima, sobretudo parceiros ou ex-parceiros”, esclarece o dentista Kevan Nóbrega Barbosa, do Departamento de Odontologia Social e Preventiva da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores do artigo.
A residência foi o principal local de ocorrência dos casos de violência contra mulheres
A equipe de pesquisadores também conseguiu identificar padrões geográficos e socioeconômicos possivelmente relacionados a esses casos de violência doméstica, diferentemente de estudos anteriores. Com base nos dados dos registros médicos e policiais, mapearam o endereço de 2.563 vítimas, constatando que a maioria vivia na zona leste de Campina Grande. A região é marcada pela alta densidade populacional, falta de saneamento básico e moradores com baixo nível socioeconômico. “Muitos habitantes vivem com menos de um salário mínimo por mês”, destaca Barbosa.
Os achados levaram a equipe a conjecturar que fatores socioeconômicos podem estar associados à incidência de casos de violência doméstica na região, em linha com o observado em outros trabalhos. Em um deles, publicado em abril de 2016, pesquisadores do Departamento de Odontologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) analisaram as características sociodemográficas das mulheres vítimas de violência doméstica oficialmente notificada também em Campina Grande. No estudo, coordenado pelo professor Sérgio D’Ávila Cavalcanti, foram examinados 1.704 registros médicos e policiais produzidos entre janeiro e dezembro de 2012. A maioria das vítimas era dona de casa, com idade entre 20 e 39 anos e baixo nível educacional e socioeconômico.
Mesmo perfil
Os resultados apresentados nos dois trabalhos estão de acordo com as estimativas oficiais. Entre os casos notificados, a maioria das mulheres vítimas de agressões física e feminicídio no Brasil apresenta o mesmo perfil. Os dados constam de levantamento feito pelo Ministério da Saúde, baseado em informações das Fichas de Notificação Individual de Violências Interpessoais e Autoprovocadas cadastradas no Sinan entre 2011 e 2016. O relatório completo deverá ser publicado este mês.
Os parceiros íntimos foram os agressores em 36,5% das notificações de violência contra mulheres de 20 a 29 anos
Os pesquisadores argumentam que, juntos, baixa escolaridade e condição socioeconômica precária podem contribuir para que as vítimas sejam dependentes financeiramente de seus parceiros – quase sempre, também seus agressores – e menos dispostas a denunciá-los. Alguns estudos já haviam observado que mulheres com empregos remunerados têm mais chances de ser financeiramente independentes e menos tolerantes a comportamentos agressivos, possivelmente porque também são mais informadas sobre seus direitos.
No entanto, a interpretação dos números apresentados nesses trabalhos deve levar em conta que eles se referem ao universo dos incidentes de violência doméstica oficialmente notificados. Estudo recente indica que a maioria dos incidentes dessa natureza não é oficialmente notificada, sendo o grau de subnotificação maior que a média entre as mulheres com nível de escolaridade superior, presumivelmente com nível socioeconômico também superior.
Para a socióloga Giane Silvestre, pesquisadora em estágio de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), os resultados apresentados podem ser úteis para a formulação de políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher, mas precisam ser interpretados com cautela, para não estigmatizar ainda mais as populações mais pobres, que já vivem em situação de vulnerabilidade. Ela lembra que a violência doméstica é um problema amplamente disseminado em todas as classes sociais “porque envolve questões sociais e culturais que tendem a interpretar a mulher não como indivíduo, mas como uma propriedade”. Na avaliação da pesquisadora, o problema também tem a ver com o papel histórico relegado à mulher na sociedade.
Uma em cada três mulheres no mundo é ou foi vítima de violência doméstica, segundo dados divulgados pela OMS. A agência das Nações Unidas estima que, no Brasil, as notificações de mortes violentas envolvendo mulheres tenham aumentado cerca de 230% nas últimas três décadas. A situação é pior entre as negras, para quem essa taxa passou de 22,9%, em 2003, para 66,7%, em 2013, segundo dados do Mapa da Violência divulgados em 2015 pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) e a ONU Mulheres.
Em 37% das agressões contra mulheres adultas suspeita-se de uso de álcool pelo agressor
Segundo dados oficiais do Sisan do Ministério da Saúde, as notificações de violência doméstica também cresceram. Entre 2009 e 2014, triplicaram: de 6,4 para cada grupo de 100 mil habitantes, em 2009, para 18,1, em 2014. Os estados de Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná se destacam com as taxas mais altas: por ano, são 50 casos ou mais para cada 100 mil habitantes. Os resultados constam de estudo publicado em 2017 na revista Ciência & Saúde Coletiva.
A dentista Nádia Cristina Pinheiro Rodrigues, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e uma das autoras do estudo, diz que ele confirma o que se verificou em pesquisas anteriores acerca de episódios de violência contra mulheres: quase sempre envolvem uso abusivo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, e fácil acesso a armas de fogo.
Possíveis explicações
Os pesquisadores não sabem quais são as razões para o aumento das notificações de violência contra a mulher no Brasil nem se essas notificações representam a realidade dos casos no país. Uma possível explicação para o aumento das notificações é a comunicação compulsória. “Desde 2011 a notificação no Sinan é obrigatória em casos em que há suspeita ou confirmação de violência doméstica e sexual contra mulheres, independentemente da faixa etária”, esclarece a médica Maria de Fátima Marinho de Souza, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde. “É possível que isso tenha lançado luz em milhares de casos antes subnotificados”, diz a pesquisadora, que é coordenadora do estudo do Ministério da Saúde. Segundo ela, desde 2011 foram registradas 856.006 notificações de violência contra meninas e mulheres entre 10 e 59 anos no Brasil. Levando em conta os dados apenas para as vítimas nessa faixa etária, as notificações em 2017 apresentaram um aumento de mais de 200% quando comparadas às de 2011.
A maioria das jovens e das mulheres adultas mortas em decorrência de agressões possuía baixa escolaridade
Na avaliação de alguns estudiosos, esse crescimento também guardaria relação com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, sancionada em agosto de 2006 com o objetivo de prevenir, conter, punir e erradicar todo e qualquer tipo de violência contra a mulher. Segundo Nádia Rodrigues, a lei deu respaldo jurídico às mulheres, que passaram a se sentir mais seguras para denunciar seus agressores. Com isso, cada vez mais vítimas têm rompido o silêncio sobre abusos, contribuindo para que novos casos venham à tona.
Para a antropóloga Guita Grin Debert, do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos pontos positivos envolvendo a lei foi o fato de ela ter excluído a possibilidade de sessões de conciliação entre acusado e vítima. Em outras palavras, desde 2006 o réu é processado independentemente da vontade de quem ele agrediu. “A nova legislação também transformou os casos de violência doméstica em crime de lesão corporal e instituiu um sistema processual autônomo para crimes previstos no Código Penal quando praticados contra mulheres por motivação de gênero, no âmbito doméstico e familiar ou em contexto de relação íntima de afeto”, esclarece. Até então, esses casos eram classificados como crimes passionais, supostamente de menor potencial agressivo. Para Debert, que coordenou o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, entre 2007 e 2009, isso desqualificava a agressão, perpetuando o comportamento violento do agressor.
Outra explicação possível, sugere Rodrigues, da Fiocruz, envolveria as transformações em relação ao papel da mulher na sociedade. Estudos recentes verificaram que o comportamento familiar feminino, independentemente da classe social, mudou nos últimos 40 anos, com avanços significativos quanto à sua autonomia, o que envolve maior controle sobre o próprio corpo, capacidade de gerar renda e de administrar esses recursos. “Esses processos estão favorecendo um aumento do número de divórcios”, afirma Rodrigues. Hoje, no Brasil, quase metade dos casos de crimes de ódio contra mulheres é cometida por ex-parceiros, inconformados com a separação.
Também chamam a atenção no estudo coordenado por Souza os dados preliminares de 2017, indicando que, naquele ano, especificamente as notificações de violência contra mulheres adultas com idade entre 20 e 59 anos aumentaram cerca de 30% em relação a 2016. “Estamos testemunhando a naturalização da violência contra as mulheres no Brasil”, diz a médica que, com sua equipe, analisa os dados referentes a 2018 com o objetivo de verificar se a tendência de crescimento se confirma.
Coibir e intimidar
A violência contra a mulher é amplamente reconhecida como grave problema de saúde pública, com impactos na condição física e mental das vítimas. Em geral, aquelas que sofreram violência doméstica estão mais propícias a desenvolver distúrbios psiquiátricos como ansiedade, depressão ou pensamentos suicidas. Segundo o estudo do Ministério da Saúde, brasileiras que registraram episódios de violência nos serviços de saúde públicos têm 151,5 vezes mais risco de morrer por suicídio decorrente de um quadro de depressão em comparação com a população feminina geral.
“É preciso investir em abordagens que ajudem a prevenir e punir de modo mais incisivo os casos de violência doméstica no Brasil”, destaca Nádia Rodrigues. Isso passa pelo treinamento dos profissionais da saúde, que nem sempre conseguem identificar casos de agressões contra mulheres. Iniciativa nessa direção é a Ronda Maria da Penha, em que policiais militares realizam operações em áreas próximas às casas de vítimas com medidas protetivas decretadas pela Justiça.
Criado em março de 2015, o projeto funciona na Bahia, no Rio Grande do Sul e no Amazonas. “Por meio de parcerias com o Judiciário, os policiais identificam as mulheres que sofreram violência doméstica e tiveram medidas protetivas decretadas e entram em contato para saber se gostariam que a polícia fizesse uma ronda periódica em seu bairro”, explica Giane Silvestre, do NEV-USP. A medida está ajudando a intimidar agressores que continuam a ameaçar suas vítimas.
Maioria das brasileiras vítimas de violência opta por não denunciar seus agressores, segundo levantamento
Mais da metade das mulheres vítimas de abusos e agressões não denuncia seus algozes, possivelmente porque são desencorajadas ou mal atendidas nas delegacias e serviços públicos de saúde. A conclusão consta da segunda edição do relatório Visível e invisível: A vitimização de mulheres no Brasil, divulgado em fevereiro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Datafolha.
O estudo é resultado de 1.092 entrevistas com mulheres a partir de 16 anos de idade de 103 municípios de todas as regiões do país. A amostra é nacionalmente representativa e indica que aproximadamente 16 milhões de mulheres, de todas as classes sociais, sofreram algum tipo de violência no Brasil, em 2018 — o número equivale a 1.830 casos registrados a cada hora.
Quase metade das mulheres continua sendo vítima de violência dentro de casa. Das que decidiram seguir em frente e denunciar seus agressores, apenas 22,2% procuraram um órgão oficial, como a Delegacia de Defesa da Mulher. As outras 29,6% preferiram recorrer à ajuda da família, de amigos ou da igreja.
O maior percentual de vítimas é de mulheres que se autoidentificaram como pretas – 28,4% delas afirmaram ter sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Em seguida vêm as que se declararam pardas, 27,5%. Segundo os autores, o dado ressalta a situação de vulnerabilidade em que se encontram esses dois grupos de mulheres, o que envolve espaços e oportunidades precários de trabalhos e baixos índices de escolaridade e socioeconômico.
Ainda de acordo com o levantamento, as mulheres com grau de escolarização mais alto tendem a procurar menos ajuda. Entre as vítimas com ensino superior, 58,6% não fizeram nada em relação ao episódio, apesar dos avanços recentes em relação à criação de mecanismos institucionais de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Segundo os coordenadores do trabalho, os dados apresentados evidenciam os desafios e sinalizam a necessidade de adoção de estratégias orientadas à prevenção da violência contra as mulheres – que tem no feminicídio seu ápice, mas compreende uma gama muito vasta de ações, como ameaça, tortura psicológica, agressões verbais e violências física e sexual.
Artigos científicos
BARBOSA, K. G. N. et al. Epidemiological and spatial characteristics of interpersonal physical violence in a Brazilian city: A comparative study of violent injury hotspots in familial versus non-familial settings, 2012-2014. PLOS One. v. 14, n. 1, p. 1-19. jan. 2019.
DEBERT, G. G. & PERRONE, T. S.. Questões de poder e as expectativas das vítimas: dilemas da judicialização da violência de gênero. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 150, n. 26. p. 423-47. dez. 2018.
RODRIGUES, N. C. P. et al. O aumento da violência doméstica no Brasil, 2009-2014. Ciência & Saúde Coletiva. v. 22, n.9, p. 2873-80. 2017.