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Química atmosférica

Gás da floresta amazônica acelera formação de nuvens

Árvores emitem isopreno que reage com outras moléculas e aumenta em 100 vezes a produção de núcleos de condensação

Ao descer para perto da superfície, as partículas de aerossóis formadas pela liberação do gás isopreno geram núcleos de condensação de nuvens

Leoaraujo7 / Getty Images

Um mecanismo de defesa que surgiu e desapareceu várias vezes ao longo da história evolutiva de diferentes linhagens de plantas, especialmente em árvores de ambientes quentes, exerce um papel crucial na Amazônia sobre um dos parâmetros mais importantes do clima terrestre: a quantidade de nuvens do céu. Como forma de lidar provavelmente com picos de estresse térmico, as folhas das árvores emitem um composto volátil, o gás isopreno (C₅H₈). Durante o dia, sob a luz solar, o isopreno se degrada rapidamente após ser liberado. Mas, sob determinadas condições noturnas, o composto permanece no ar por mais tempo, ganha altitude e se transforma em um ingrediente essencial da química atmosférica, uma espécie de difusor dos processos que resultam em nuvens. Essa é a conclusão principal de dois novos estudos, feitos por grupos internacionais com a participação de brasileiros, publicados simultaneamente em dezembro na revista Nature.

Molécula da família dos terpenos, que abrange os principais compostos voláteis emitidos pelas plantas, o isopreno liberado pelas folhas das árvores que escapa do seu fim precoce reage com outros gases e desencadeia uma série de reações na baixa e na alta troposfera, a camada mais superficial da atmosfera terrestre. Essas interações aumentam em dezenas de vezes a taxa de formação de partículas de aerossóis e, posteriormente, de núcleos de condensação, o embrião das nuvens. O mecanismo turbina não apenas a gênese de nuvens sobre a Amazônia, mas também sobre o oceano Atlântico e provavelmente outras partes do globo. Aproximadamente dois terços da superfície do planeta são permanentemente cobertos por nuvens, um ingrediente do clima que pode tanto esquentar como resfriar uma região, além de levar umidade por meio das chuvas.

Os artigos mostram em detalhes a sequência de interações físico-químicas entre o isopreno e outros compostos que levam à formação de enormes quantidades de partículas de aerossóis na alta troposfera da Amazônia, a altitudes entre 8 e 15 quilômetros (km). Essas partículas apresentam inicialmente alguns nanômetros (nm) de diâmetro e, com o tempo, vão se agregando a outros aerossóis e crescem de tamanho. Elas podem ser transportadas para diversas partes do globo em razão da circulação atmosférica e têm um papel importante na gênese dos núcleos de condensação das nuvens. Quando atingem a baixa troposfera, entre 1 e 2 km de altitude, os núcleos com pelo menos 50 nm de diâmetro funcionam como suportes do vapor d’água, que se condensa (vira líquido) e dá origem às nuvens. Sem os núcleos, não há nuvens, que podem ser de bom tempo ou de chuva.

A descoberta do jogo de interações iniciado pela emissão do isopreno, que se torna um gás a temperaturas superiores a 34 graus Celsius (ºC), explica um fenômeno observado há duas décadas nos céus da Amazônia. No início dos anos 2000, pesquisadores tomaram conhecimento da existência de concentrações de aerossóis na alta troposfera da grande floresta tropical que eram 160 vezes maiores do que as medidas perto da superfície. No entanto, não havia uma explicação consistente para o achado até a publicação dos novos trabalhos. “Agora, resolvemos esse mistério e mostramos que um composto orgânico liberado pela própria floresta, o isopreno, inicia o processo de formação desses aerossóis”, diz o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), coautor de um dos estudos, que receberam destaque de capa na Nature. “É muito importante entendermos o processo de formação das nuvens para aprimorarmos nossos modelos de previsão meteorológica e climática.”

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Um dos artigos se baseia em dados de processos químicos obtidos em sobrevoos sobre a Amazônia com o avião Halo, do Centro Aeroespacial Alemão (DLR), entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023. Essas atividades fizeram parte do projeto Chemistry of the Atmosphere: Field Experiment in Brazil (Cafe-Brazil), experimento de campo conduzido dois anos atrás. “Realizamos 136 horas de voo e percorremos 89 mil km sobre a Amazônia”, conta o meteorologista Luiz Augusto Machado, do IF-USP e colaborador do Instituto Max Planck de Química, da Alemanha, que supervisionou todos os voos e participou de alguns. O avião Halo decolava de Manaus ainda antes de o dia amanhecer para flagrar as interações físico-químicas do isopreno sem a influência da luz solar e podia permanecer no ar por 10 horas seguidas registrando parâmetros da atmosfera.

O segundo trabalho foi feito nas dependências da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern), na Suíça, na câmara Cloud (Cosmics Leaving Outdoor Droplets). Esse aparelho reproduz as condições e os processos que ocorrem na atmosfera. “O Cloud é um cilindro de aço inoxidável de 3 metros de altura, que é suprido de ar ultralimpo com as mesmas proporções de nitrogênio e oxigênio que temos na atmosfera”, conta a meteorologista brasileira Gabriela Unfer, que faz doutorado no Instituto Leibniz de Pesquisa Troposférica, em Leipzig, na Alemanha. Unfer é a única brasileira que assina os dois artigos sobre os aerossóis de alta altitude.

Para que o sistema Cloud possa simular as condições da atmosfera de uma região do globo, é preciso que a câmara seja abastecida com informações meteorológicas e químicas relativas a esse ponto do planeta. “Os dados de campo obtidos nos voos do programa Cafe-Brazil serviram de base para que as corretas configurações de temperatura, umidade e concentração de gases pudessem ser simuladas no Cloud. Foi assim que reproduzimos em laboratório a formação de aerossóis de alta altitude desencadeada pelas emissões de isopreno das plantas”, explica Unfer.

O aspecto mais surpreendente dos estudos é que os aerossóis formados entre 8 e 15 km de altitude devem sua existência a processos que se iniciam no meio das árvores da Amazônia. “Se a floresta tropical continuar a ser desmatada, isso terá um impacto no processo de produção de aerossóis na alta troposfera e, por conseguinte, na formação de nuvens mais perto da superfície”, comenta o meteorologista Micael Amore Cecchini, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, outro autor de um dos papers que participou da campanha Cafe-Brazil.

Dirk Dienhart / Instituto Max Planck de QuímicaAvião Halo sobrevoa a Amazônia para realizar medições da química da atmosferaDirk Dienhart / Instituto Max Planck de Química

A chave de todo o processo é o isopreno, composto volátil orgânico incolor, com um levíssimo aroma que pode remeter a borracha ou petróleo. A liberação dessa molécula gasosa, expelida como uma espécie de transpiração da vegetação, é um mecanismo evolutivo que auxilia as plantas, em especial as dos trópicos, a se proteger dos efeitos negativos dos picos de calor. Perto da superfície, na baixa atmosfera, o isopreno dura minutos ou poucas horas. Durante o dia, sob a luz solar, ele reage com o ozônio e outros compostos e desaparece rapidamente quase por completo da atmosfera.

Mas as moléculas de isopreno que não foram destruídas e as emitidas depois do pôr do sol pelas árvores da Amazônia escapam desse fim precoce e são transportadas à alta atmosfera pela ação de tempestades noturnas. Por volta dos 15 km de altitude, onde a temperatura é inferior a -30 ºC, o isopreno não se degrada como ocorre perto da superfície e interage com outros compostos. A produção noturna de raios durante as tempestades faz com que o isopreno se ligue a moléculas de óxidos de nitrogênio e forme rapidamente uma enorme quantidade de partículas de aerossol de alguns nanômetros. “Na alta atmosfera, o isopreno acelera em 100 vezes a velocidade de formação de aerossóis”, comenta Machado. A velocidade de deslocamento dos aerossóis na alta troposfera chega a 150 km por hora. Por isso, é razoável supor que eles migrem para regiões muito distantes da Amazônia, onde perderiam altitude e se aglutinariam até formar núcleos de condensação de nuvens entre um e dois km acima da superfície.

É provável que esse mesmo mecanismo de formação de aerossóis em altitudes elevadas também ocorra em outras partes do globo, especialmente sobre as florestas tropicais do Congo, na África, e no Sudeste Asiático. O isopreno é o principal composto volátil emitido pelas plantas. Cerca de 600 milhões de toneladas são liberadas para a atmosfera anualmente. “Esse tipo de formação de partículas de aerossol na alta troposfera deve ocorrer não apenas na Amazônia, mas em todas as florestas tropicais, visto que todas emitem muito isopreno”, diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o meteorologista Joachim Curtius, da Universidade de Frankfurt, principal autor do estudo com os dados do experimento Cafe-Brazil. “A floresta amazônica sozinha é responsável por mais de um quarto das emissões totais de isopreno.”

O passo seguinte dos estudos é tentar entender em mais detalhes de que maneira ocorre o crescimento e o transporte dos aerossóis na alta troposfera da Amazônia e como se dá sua descida para as proximidades da superfície terrestre. “Não sabemos quantas dessas partículas são perdidas por colisões com outras partículas e em outras interações e quantas ‘sobrevivem’ e se tornam núcleos de condensação nas baixas altitudes dos trópicos, onde as nuvens se formam”, comenta Curtius. Nesse processo, o isopreno é apenas a ponta do iceberg, ou melhor, da nuvem.

Projetos
1.
Interações entre gases traços, aerossóis e nuvens na Amazônia: da emissão de bioaerossóis aos impactos em larga escala (nº 23/04358-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Paulo Artaxo; Investimento R$ 4.109.920,65
2. Correlacionando o nível de organização de campos de nuvens convectivas aos ciclos hidrológico e de aerossóis na Amazônia (CLOUDORG) (nº 22/13257-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Jovens Pesquisadores; Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Acordo Instituto Serrapilheira; Pesquisador responsável Micael Amore Cecchini (USP); Investimento R$ 1.471.125,05
3. Interações entre aerossóis e eventos de tempo na Amazônia (nº 21/03547-7); Modalidade Bolsa de Mestrado; Pesquisador responsável Luiz Augusto Toledo Machado (USP); Beneficiário Gabriela Unfer; Investimento R$ 73.911,67

Artigos científicos
CURTIUS, J. et al. Isoprene nitrates drive new particle formation in Amazon’s upper troposphere. Nature. 4 dez. 2024
SHEN, J. et al. New particle formation from isoprene under upper-tropospheric conditions. Nature. 4 dez. 2024

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