Numa entrevista pingue-pongue concedida em maio para a edição de junho de 2012 de Pesquisa FAPESP, o professor Eduardo Moacyr Krieger, que em 1985 organizou a Unidade de Hipertensão do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), origem de um dos mais importantes grupos de pesquisa de hipertensão do país e com respeitada inserção internacional, voltou a lembrar que o sistema de regulação da pressão arterial está intimamente ligado aos genes. “Recebemos como carga genética os mecanismos controladores da pressão, eles fazem a síntese dos mecanismos pressores e depressores. Essa carga pode facilitar a produção de substâncias pressoras ou formar menos substâncias hipotensoras. Aí começa a história: temos de saída alguma predisposição para ser hipertenso ou não”, disse.
Essa predisposição, entretanto, não basta. Para o problema eclodir, há que se ter o concurso decisivo do meio ambiente, “que está o tempo todo suscitando regulação da pressão arterial”. E esse meio ambiente, Krieger detalhou, “é o sal, a inatividade, a obesidade, o estresse, todas essas coisas que de uma forma ou de outra mexem com o sistema de regulação”. Alguém com um sistema de regulação muito bom pode ser submetido a todas as pressões ambientais e seguir com a pressão normal. “Mas outro, com um sistema muito ruim, pode ficar sem comer um grama de sal, deitado numa rede, e vai ficar hipertenso.” É esse “o estado da arte atual” sobre a hipertensão essencial ou primária. Sabe-se dessa “combinação do terreno com o meio ambiente” e não se sabe “mexer no terreno” preventivamente, mas é o que se quer conseguir. Se os genes envolvidos na hipertensão forem identificados, se for possível saber a carga genética de cada um e com base nisso trabalhar com aconselhamento genético, talvez a hipertensão essencial que atinge 50% dos adultos acima de 60 anos se torne uma epidemia do passado.
Muitos anos antes, em 1999, outro Krieger, o professor José Eduardo, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Incor, integrante da equipe e filho do professor Eduardo Moacyr, dissera a Pesquisa FAPESP (edição 47, outubro): “Não temos a ilusão de explicar a hipertensão por um único defeito genético”. Coordenador de toda a parte de genética do projeto temático Bases fisiológicas da hipertensão: estudo integrado, apoiado pela FAPESP desde 1995, ele observou na época que, em nenhum problema biológico complexo ou, mais exatamente, em nenhuma das doenças complexas que normalmente correspondem a grandes linhas dos programas de saúde pública, caso de diabetes, câncer, asma, aterosclerose, epilepsia e esquizofrenia, encontra-se um único gene responsável pelo mal. “O que as explicam são defeitos em vários genes que, sob a influência de diferentes fatores ambientais, determinam as manifestações da doença”, disse.
Quase 13 anos de estudos sistemáticos e mais de 200 artigos científicos depois, publicados nas mais importantes revistas da área – relatando avanços na compreensão teórica da fisiologia e da genética de doenças cardiovasculares, apresentando dados novos para um perfil epidemiológico cardiovascular dos brasileiros ou explorando os resultados da produção de linhagens cada vez mais refinadas de ratos hipertensos –, ainda não livraram o grupo do Incor, nem qualquer outro do mundo, de uma questão central e implacável que se mantém como desafio no campo das doenças cardiovasculares: quais são os determinantes genéticos da hipertensão primária, essa doença que atinge 22% da população brasileira adulta e um total de 970 milhões de pessoas no mundo?
“Já reduzimos para quatro as cinco regiões cromossômicas em que buscávamos experimentalmente os genes candidatos a desempenhar um papel claro na emergência da hipertensão, após o desenvolvimento de 12 gerações de ratos hipertensos, ou seja, de modelos animais para investigação, em nosso laboratório”, diz José Eduardo Krieger, professor titular de medicina molecular na USP. E valendo-se de todo o sofisticado arsenal de ferramentas que a biologia molecular hoje coloca à disposição para essa procura por genes, cruzando-as com estudos de fenótipos cardíacos e de fenótipos vasculares que os dados diretos de pacientes do Incor e mais estudos epidemiológicos em diferentes grupos populacionais lhe fornecem, a equipe de Krieger continua buscando “o endereço”, como ele diz, ou endereços da origem da hipertensão.
Supõe-se hoje que a emergência da hipertensão primária resulta de vários defeitos pequenos em múltiplos genes ligados às vias de regulação homeostática do organismo (que mantém o equilíbrio da temperatura, pressão, nível de glicose no sangue etc.). Há, em paralelo, um consenso de que, em 90% dos casos, essa epidemia contemporânea resulta de uma estreita interação entre fatores ambientais e genéticos. Diferentemente, nos 10% restantes, em que se situam as formas mais resistentes da hipertensão e aquelas produzidas por doenças raras, encontram-se casos sem nenhuma relação com fatores ambientais e nos quais, tanto múltiplos genes quanto um só defeito, num único gene, podem determinar a condição patológica da pressão arterial.
É surpreendente e um pouco frustrante, diz Krieger, que a busca incessante desde os anos 1990 pelos componentes genéticos da hipertensão tenha levado a achados mais definitivos justamente nessas situações de doenças raras e não relativamente às manifestações mais gerais e comuns do problema. “Há estudos nesses casos de um só defeito descrito em todos os detalhes”. Por exemplo, Richard Lifton,do Departamento de Genética da Universidade Yale, e colegas descreveram nos últimos 15 anos uma série de alterações genéticas que desencadeiam a hipertensão dependente da retenção indesejável de sal e água no organismo.
No terreno dos casos alheios à hipertensão primária estão também aqueles que têm causa renal muito bem determinada. “Quando a razão da hipertensão é a estenose renal, por exemplo, ela é curável. Corrige-se o defeito simplesmente com um stent, semelhante àquele que se aplica em casos de estreitamento da artéria coronária”. Mas o fato, segundo Krieger, é que a condição sine qua non para que a hipertensão seja controlável é o rim estar preservado. Seguidor em termos teóricos do famoso fisiologista norte-americano Arthur Guyton (1919-2003), Krieger defende que o sistema nervoso e o estresse, por exemplo, só terão um papel permanente na manutenção da hipertensão se o sistema renal estiver alterado. “O rim preservado possibilita ganho infinito na batalha pelo controle da pressão”, diz. Essa visão nem sempre foi tranquila e consensual entre os componentes do grupo do Incor e, pragmaticamente, o chefe do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular diz que “visões teóricas conflitantes são muito saudáveis, até porque ampliam as possibilidades de avançar”.
Por mais que não se tenha posto a mão, digamos assim, nos genes que desde regiões celulares remotas supostamente ajudam a empurrar a coluna de mercúrio dos tensiômetros para além dos 90 milímetros, no movimento de diástole, e acima dos 140 milímetros, na sístole, o inventário do trabalho científico do grupo dos Kriegers mostra avanços contínuos e consistentes desde que se instalou no Incor. Isso engloba os muitos trabalhos teóricos e experimentais em torno dos mecanismos de controle da pressão arterial e, mais adiante, também em genética da hipertensão, mas inclui ainda a investigação da remodelagem por que passam as veias usadas para substituir artérias bloqueadas por placas de gordura, caso do implante de ponte de safena, e a linha de pesquisa com células-tronco para recuperação do músculo cardíaco.
Utilizar veias, vasos especializados no transporte de sangue sob condições de baixo fluxo e pressão, no lugar de artérias, que transportam sangue sob pressões até 20 vezes mais elevadas, limita a cerca de uma década a durabilidade de parte das pontes de safena. Ocorre o entupimento, ainda que parcial, do implante de segmentos dessa veia retirada da perna usado para restabelecer o suprimento de sangue do coração. Em uma série de experimentos com ratos e vasos sanguíneos humanos, o grupo de Krieger observou que a pressão do sangue sobre as paredes do vaso altera a programação das células de veias submetidas às condições de funcionamento das artérias. Como resultado, as paredes das veias se tornam excessivamente espessas alguns anos depois da cirurgia de revascularização do coração. Essa investigação já resultou na identificação de várias proteínas envolvidas no espessamento dos implantes, duas delas caracterizadas completamente pela equipe do Incor: a proteína produzida pelo gene p21, que inibe a reprodução celular e em geral está menos ativa nessas condições; e a produzida pelo gene CRP3, em geral ativo apenas nas artérias, mas que também é produzida pelas veias usadas na função de artérias, conforme relatou Krieger à Pesquisa FAPESP em junho de 2009 (edição 160).
O professor Eduardo Moacyr assumiu a chefia da Unidade de Hipertensão do Incor depois de 28 anos de uma respeitada carreira de professor e pesquisador na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Ali sua principal linha de pesquisa fora estudar em modelos de hipertensão experimental (ratos, pioneiramente) os mecanismos de regulação da pressão arterial, principalmente os mecanismos neurogênicos. Assim, ao chegar ao Incor, ele trazia uma expertise considerável para iniciar a formação de um grupo multidisciplinar de pesquisa que se tornaria um dos mais respeitados do mundo em seu campo. Em 1995, liderando uma equipe de 11 pesquisadores, entre biólogos moleculares, fisiologistas e médicos clínicos, ele submeteu à FAPESP o temático Bases fisiológicas da hipertensão, que se articulava a um esforço internacional pelo estabelecimento das bases genéticas da pressão arterial. Em alguns estudos específicos, a pesquisa brasileira contava com a colaboração de pesquisadores do Medical College de Wisconsin e das universidades Harvard e da Carolina do Norte.
Em 1999, reportagem de Pesquisa FAPESP (edição 47, outubro) informava que se havia chegado a “alguns resultados muito concretos”. O primeiro, publicado em 1995 em artigo na Genome Research, fora “a identificação de cinco regiões cromossômicas em animais de experimentação (ratos), que explicavam em grande parte o aumento da pressão arterial nessas cobaias”. Parecia haver nessas regiões genes diretamente envolvidos com a hipertensão e eles seriam buscados por meio de múltiplas abordagens. Nos ratos, duas das regiões se encontravam no cromossomo 2 e as demais nos cromossomos 4, 8 (que estudos posteriores descartaram) e 16. Havia então uma forte disposição para buscar as regiões cromossômicas humanas correspondentes.
Chegou-se às cinco e, adiante, às quatro regiões cromossômicas num trabalho contínuo de cruzamentos e caracterização fenotípica das cobaias, além da caracterização dos marcadores moleculares usados na busca dos genes. Conforme a reportagem de 1999, “o cruzamento entre hipertensos e normotensos (com pressão arterial normal) visou à obtenção de netos, isto é, de uma segunda geração de animais cuja carga genética apresentasse uma distribuição aleatória dos genes de cada um dos dois tipos”. Ao todo, o grupo obteve 12 gerações de ratos e múltiplas sublinhagens de animais congênicos. E nas experiências com essa geração procurou-se determinar com precisão, via marcadores moleculares, quais regiões cromossômicas os netos hipertensos haviam herdado de seus avós hipertensos.
A busca por genes vinculados à hipertensão não é uma aventura meio determinista como pode parecer. Encontrá-los aumenta as chances de uma descrição precisa dos vários sistemas de controle da pressão arterial, a exemplo do renina-angiotensina, descrito ainda em 1949, e amplia as possibilidades de compreensão dos fundamentos das diferenças no comportamento dos sistemas de controle em pessoas igualmente hipertensas. Por fim, permitiria estabelecer prevenção e terapias mais adequadas a cada paciente.
Apesar de o trabalho do grupo do Incor fechar o cerco aos genes candidatos a explicar a hipertensão, o universo a ser descartado ainda é grande, pois cada uma das quatro regiões que identificaram abriga cerca de 500 genes. Desde que chegou a essas regiões, Krieger já conseguiu restringir o número de genes de interesse de quase 2 mil para cerca de 80. E continua um trabalho ativo com ferramentas exploratórias variadas (chip de DNA, transcriptoma, micro RNA e outras) para selecionar genes candidatos nos ratos, aliadas aos estudos de genótipos e fenótipos possibilitados pela observação e exames dos pacientes do Incor e do material dos grandes estudos epidemiológicos como o estudo transversal da população de Baipendi, em Minas Gerais, realizado com 1.700 pessoas (14% da população adulta) de 100 famílias. “Se chegarmos a um ou dois genes candidatos em cada um dos quatro modelos animais e, trabalhando com técnicas de genômica comparativa, testaremos no genoma humano se existe a alteração dos mesmos genes ou ao menos das vias bioquímicas com a qual esses genes estão implicados”, diz Krieger, “vamos dar um grande passo”.
Os projetos
1. Estudo integrado da hipertensão arterial: caracterização molecular e funcional do sistema cardiovascular (nº 2001/00009-0) (2001-2006); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Eduardo Moacyr Krieger-Incor/FMUSP; Investimento R$ 6.110.874,19
2. Da bancada à clínica: desenvolvimento de biomarcadores como preditores da resposta à terapêutica e lesão de órgãos-alvo na hipertensão arterial sistêmica (nº 2007/58942-0) (2009-2012); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Eduardo Moacyr Krieger-Incor/FMUSP; Investimento R$ 3.306.336,56
3. Mapeamento genético de fatores de risco cardiovascular na população brasileira – projeto corações de Baependi (nº 2007/58150-7) (2008-2012); Modalidade Auxílio regular a projeto de pesquisa; Coordenador José Eduardo Krieger-Incor/FMUSP; Investimento R$ 1.832.181,66
Artigos científicos
STORCK, N. J. et al. A biometrical genome search in rats reveals the multigenic basis of blood pressure variation. Genome Research. 1995.
CAMPOS, L.C. et al. Induction of CRP3/MLP expression during vein arterialization is dependent on stretch rather than shear stress. Cardiovascular Research. 2009.
De nosso arquivo
Cerco à matadora silenciosa – Ed. nº 47 – out. de 1999
Alarme molecular – Ed. nº 69 – out. de 2001
Coração reconectado – Ed. nº 160 – jun. de 2009
Efeito inesperado – Ed. nº 171 – mar. de 2010