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Física

Golpe de vista

Equações simples explicam a localização de objetos que parecem surgir do nada

Eduardo CesarRisco de atropelamento: o cérebro demora a formar a imagem do carro que pode já estar muito próximoEduardo Cesar

Vítimas preferenciais dos xingamentos de torcedores de futebol, principalmente ao marcarem os impedimentos, quando o atacante fica cara a cara com o goleiro, os bandeirinhas ficariam agradecidos caso uma ilusão visual chamada flash-lag fosse mais conhecida. Esse fenômeno, que poderia ser traduzido como aquilo que é visto com atraso, manifesta-se em situações na qual um objeto em movimento é surpreendido em sua trajetória por um segundo elemento, que surge muito próximo e de modo repentino. A cena que se forma dá a impressão de existir uma distância, ainda que pequena, entre os dois. O que aparece de surpresa parece estar atrás do primeiro, mas na realidade os dois estão emparelhados, lado a lado.

Esse poderia ser um argumento a ser usado pelos bandeirinhas para justificar alguns de seus erros. Em campo, lutando para acompanhar os lances em geral muito rápidos, o auxiliar do juiz identifica a presença do último zagueiro adversário só depois de olhar fixamente para o deslocamento do atacante e de se preocupar com o momento do passe final. Fica com a impressão de que o atacante estaria avançado, à frente do defensor, e levanta a bandeira, marcando o impedimento. Mas a jogada deveria ter prosseguido, porque os dois jogadores estavam na mesma linha – não havia irregularidade no lance. “O bandeirinha pode ser facilmente traído pela ilusão visual”, assegura o neurofisiologista Marcus Vinícius Chrysóstomo Baldo, formado em física e em medicina, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP).

Baldo e Nestor Felipe Caticha Alfonso, do Instituto de Física da USP, partindo do que já se sabia sobre o funcionamento dos neurônios, criaram um modelo matemático que ajuda a explicar esse atraso na percepção de objetos. Os dois físicos aplicam às situações em que o flash-lag aparece uma abordagem matemática clássica, já usada para estudar a memória e o aprendizado, conhecida como redes neurais artificiais. De acordo com esse enfoque, as regiões do sistema nervoso responsáveis pela visão são divididas em camadas formadas por filas de neurônios que se comunicam simultaneamente com outros neurônios da camada seguinte, mas não apenas de uma maneira direta: cada célula nervosa pode interagir com as outras também de modo divergente e convergente, usando, portanto, rotas diagonais. Essa é a razão pela qual as informações levam mais tempo para fluir pela rede e, em conseqüência, demora a se formar a imagem do objeto que aparece de repente – eis o flash-lag. “Até agora, a maioria das explicações eram conceituais; não existiam modelos matemáticos com esse realismo biológico”, diz Caticha. “Temos agora um instrumento mais preciso e realista, que pode ser testado experimentalmente.”

O modelo que criaram incorpora explicações físicas e fisiológicas, colocando em linguagem numérica as conexões entre os neurônios, os estímulos elétricos que permitem essa comunicação e a própria estrutura de circuitos neuronais. Não há fórmulas enigmáticas, mas essencialmente apenas somas e multiplicações: o detalhe é que são dezenas ou mesmo centenas de equações resolvidas ao mesmo tempo por um programa de computador. Cada equação expressa duas variáveis matemáticas: a atividade elétrica de cada neurônio e a soma das influências que cada um deles recebe dos outros com quem se relaciona.

O conhecimento consolidado sobre o funcionamento da visão foi o ponto de partida. Enxergamos porque a luz, ao penetrar nos olhos, estimula células fotossensíveis, localizadas na retina, que recobre a parede posterior interna do globo ocular e é composta por um complexo conjunto de camadas neuronais. É na retina que luzes e sombras transformam-se em impulsos nervosos, seguindo agora para um segundo conjunto de circuitos neurais, o tálamo, uma espécie de filtro do sistema nervoso que direciona a informação para uma terceira estação de processamento, o córtex cerebral. E é ali que se dá o fascinante processo de construção da percepção visual, que nos permite reconhecer um jogador em movimento próximo ao gol, uma silenciosa e colorida serpente na floresta ou um rosto familiar em meio à multidão. O modelo dos físicos incorpora justamente essa arquitetura em camadas que caracteriza o sistema nervoso, embora, em seu estágio atual, não haja um compromisso em se identificarem as camadas do modelo como sendo as complexas camadas de células corticais ou mesmo as camadas neuronais já presentes na retina.

Como em um teatro
Baldo compara cada camada a uma platéia de um teatro onde os lugares são numerados de acordo com as fileiras, representadas por letras, e as colunas, identificadas por números. Dessa forma, um neurônio localizado na primeira camada, lugar A5, interage com parceiros que ocupam, por exemplo, os assentos B4, B5 e B6 na segunda camada, que podem, por sua vez, dialogar com os companheiros C3 a C7, na terceira camada. Além disso, os impulsos elétricos trocados entre eles – por meio de sinapses, também simuladas pelo computador – podem ser de ativação, quando o neurônio recebe uma ordem para fazer algo, ou de inibição, que corresponde a uma ordem para não fazer nada – como se fossem sinais positivos e negativos.

Se um neurônio recebe sinais provenientes de cinco outros neurônios, por exemplo, três desses sinais poderiam ser de ativação e dois de inibição. Se o resultado dos sinais for maior que um valor previamente estabelecido pelo programa, o neurônio receptor dispara um novo impulso, que será transmitido à camada seguinte. Se a soma for inferior a esse valor, conhecido como limiar, uma propriedade fisiológica real, o neurônio permanecerá inativo, sem passar a informação adiante. É essa comunicação baseada em convergências e divergências, somada ao tempo que leva para se completar, que explica o fenômeno conhecido como flash-lag.

Baldo e Caticha acreditam que o modelo aplicado ao flash-lag poderá auxiliar na compreensão de outras ilusões visuais, como o efeito Fröhlich, quando um objeto em movimento aparece por detrás de outro, estático, e impede a formação dos detalhes do início da trajetória. Imagine uma onça surgindo detrás de uma árvore: muito provavelmente não será possível identificar sua boca e focinho, que despontam primeiro detrás da árvore, e a imagem da onça será construída a partir da metade direita ou esquerda do rosto dela. A melhor compreensão sobre as diferentes ilusões visuais representa também a possibilidade de conhecer com mais detalhes o funcionamento geral da própria visão. Baldo não descarta a hipótese de qualquer imagem formada, mesmo as chamadas normais, que em tese não sofreriam interferências, poder ser considerada uma ilusão, pois jamais será a exata representação da realidade. “Creio que todos nós enxergamos a mesma pessoa ou o mesmo cenário com diferenças de detalhes, nem sempre sutis”, diz ele. “A visão é sempre uma leitura interpretativa do mundo e não há precisão absoluta.”

Imagens com atraso
O flash-lag começou a chamar a atenção em 1958, com um artigo do físico Donald MacKay, da Universidade de Keele, Inglaterra, publicado na Nature. Nesse trabalho, MacKay descrevia um fenômeno que permaneceria muitos anos sem explicação: quando ele chacoalhava uma lâmpada e a iluminava com uma outra fonte de luz estroboscópica – que acende e apaga em intervalos regulares, em flashes seguidos -, tinha a impressão de ver o filamento à frente, como se estivesse fora da lâmpada. Só em 1994 o psicólogo indiano Romi Nijhawan, atualmente na Universidade de Sussex, também na Inglaterra, ofereceu a primeira explicação sobre o fenômeno, ao afirmar que todos os objetos são vistos com atraso.

Assim, um carro que vem pela avenida pode já estar um metro adiante quando o cérebro consegue processar a imagem. Segundo Nijhawan, a evolução do cérebro humano teria desenvolvido um mecanismo de eliminar automaticamente a defasagem de espaço e o atraso na percepção da imagem, mas somente quando a trajetória já é conhecida. Se houver uma surpresa o cérebro não será capaz de fazer esses ajustes – e o flash-lag se manifestará. Por isso é que o risco de atropelamento é maior quando somos surpreendidos por um automóvel que parece ter surgido repentinamente na esquina.

Em 1995, Baldo e o físico norte-americano Stanley Klein, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, publicaram também na Nature outro estudo sobre o flash-lag, mostrando que esse tipo de ilusão visual poderia decorrer de desvios da atenção. A idéia era simples: como a atenção é dedicada ao objeto em movimento, leva-se um tempo maior para perceber e determinar a posição de qualquer novo elemento que apareça no cenário como um flash e chame a atenção para si.

Neurônios em ponto morto
Argumentos bastante semelhantes foram utilizados três anos mais tarde, em 1998, por dois grupos independentes de pesquisadores: um chefiado pelo professor de optometria norte-americano Harold Bedell, hoje na Universidade de Houston, Estados Unidos; o outro coordenado por dois psicólogos, David Whitney, atualmente na Universidade de Western Ontário, no Canadá, e Ikuya Murakami, do NTT Communication Science Laboratories, no Japão. As duas equipes trabalhavam com a perspectiva de tempos diferentes de percepção dos objetos – ou latências. Afirmavam que o cérebro, já acostumado com a cena previamente identificada, precisava passar por uma espécie de aquecimento para retomar sua atividade neural e registrar um novo objeto. É como se os neurônios já estivessem em posição de descanso, em ponto morto, e, graças ao estímulo repentino, se vissem obrigados a passar novamente pela primeira, segunda e terceira marchas até recuperar a velocidade normal. O modelo dos dois físicos unifica essas teorias, mostrando que as propostas antes discrepantes ou mesmo contraditórias são, na verdade, facetas de um mesmo fenômeno olhado por diferentes ângulos.

Agora, um aviso. Antes de apresentarem o modelo matemático que criaram e será publicado em breve na revista Vision Research, Baldo e Caticha costumam convidar para um teste quem os visita pela primeira vez. Pedem que o visitante se sente diante de um computador ligado e apagam a luz da sala, cheia de arquivos e de papéis espalhados sobre a mesa. Basta um clique no mouse e uma pequena barra aparece na tela, movendo-se sempre na horizontal, em linha reta. Quando atinge um ponto fixo, predeterminado e assinalado, um flash luminoso – uma segunda barra – pisca na tela. A tarefa é dizer aonde esse segundo ponto havia aparecido. Na maior parte das vezes, a resposta deste repórter foi: “Antes da outra”. Os pesquisadores sorriem satisfeitos, diante de mais uma vítima do efeito flash-lag: na verdade, as duas barras estavam sempre alinhadas. As explicações que os dois físicos oferecem em seguida esclarecem por que muitas vezes somos traídos pela visão e permitem encarar com mais solidariedade as dificuldades enfrentadas pelos bandeirinhas num campo de futebol, sob o olhar de milhares de torcedores.

O Projeto
Dinâmica temporal da percepção visual e sua modulação sensorial, atencional e comportamental
Modalidade
Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa
Coordenador
Marcus Vinícius Chrysóstomo Baldo
Investimento
R$76.597,50 (FAPESP)

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