Reprodução de reportagem de Pesquisa FAPESP, edição 65.
Hospitais, postos de saúde e distribuidoras farmacêuticas deverão receber, no primeiro trimestre de 2002, os primeiros frascos de hormônio de crescimento humano produzido no Brasil. Atualmente, o produto é importado e acarreta o gasto de dezenas de milhões de dólares anuais ao país. Melhor, o hormônio produzido aqui terá um custo menor em cerca de 30% que o similar importado. Medicamento utilizado sobretudo para o tratamento de crianças com nanismo por deficiência hormonal, o hormônio de crescimento humano ou hGH, do inglêsHuman Growth Hormone, é o resultado das pesquisas da empresa Genosys Biotecnológica que recebe, desde 1997, financiamento do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP. Em outubro de 2000, a Genosys encontrou o parceiro adequado para a produção e comercialização do hGH, a empresa farmacêutica Braskap, também de capital nacional.
A deficiência de hormônio de crescimento atinge uma em cada 15 mil crianças e o único tratamento é a reposição hormonal. O diagnóstico da deficiência de produção de hGH deve ser feito de preferência entre os 3 e 5 anos de idade. O tratamento prossegue até que as cartilagens parem de crescer, o que acontece após os 16 anos. A criança usa 0,1 U.I. (unidade internacional) por kg de peso todo dia. Serão em torno de 12 anos de tratamento com um custo total de R$ 360 mil. A parceria da Genosys e da Braskap permitirá a redução desse valor para cerca de R$ 250 mil.
Num indivíduo normal, a liberação do hormônio na circulação sanguínea atinge seu pico durante o sono e no período da adolescência. Entre 20 e 25 anos, a produção do organismo começa a diminuir, ficando quase nula aos 60 anos. Esse hormônio de crescimento em si não tem atividade. Ele é liberado pela glândula pituitária (hipófise), localizada na base do cérebro. Pela corrente sanguínea chega ao fígado e nele induz à produção do IGF3 e do IGF1 (Insulin-like Growth Factor), substâncias que realmente promovem o crescimento.O uso do hormônio de crescimento no tratamento de crianças teve início em meados dos anos 60, quando era retirado de glândulas pituitárias de cadáveres.
Os Estados Unidos criaram até a Agência Nacional da Pituitária, para a coleta das glândulas. Na década de 70, surgiu a técnica do DNA recombinante que possibilitou a clonagem do gene codificador do hormônio em bactérias geneticamente modificadas. Ao mesmo tempo, descobriu-se que o uso do hormônio obtido de pituitárias de cadáveres estava associado ao mal de Creutzfeldt-Jacob. Essa doença corresponde à versão humana da doença da “vaca louca”, caracterizada por degeneração física e mental, o que levou à proibição mundial do uso do hormônio obtido diretamente da pituitária.
Produto acadêmico
A produção do hormônio pela Genosys baseia-se na técnica de DNA recombinante. A clonagem do gene codificador do hormônio foi realizada, em 1996, pelo professor Hamza Fahmi Ali El Dorry, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Naquele ano, ele fez um convite ao bioquímico Jaime Francisco Leyton, que havia sido seu doutorando e contava com pós-doutorado na Chicago Medical School, nos Estados Unidos. “Ele me convidou para empreendermos a produção do hormônio”, conta Leyton. “A Genosys foi criada diante do estímulo que o PIPE oferecia, pois queríamos continuar a desenvolver as pesquisas enquanto procurávamos parceiros e financiamento.”
Procuram-se parceiros
Com o projeto aprovado logo no primeiro edital do PIPE, a Genosys recebeu R$ 66 mil mais US$ 101 mil, para o desenvolvimento do produto final, incluindo aí a compra de equipamentos. A procura por parceiros comerciais não foi fácil. “Foi uma romaria. Consultamos diversas empresas, tivemos várias reuniões, mas as indústrias farmacêuticas ou não estavam dispostas a investir em pesquisa e desenvolvimento ou queriam uma enorme vantagem financeira na associação”, comenta Leyton. A Genosys chegou a consultar o BNDESPar – empresa do BNDES especializada na capitalização de empresas brasileiras pela aquisição de ações ou debêntures conversíveis – e o projeto foi aprovado no mérito, mas os recursos só seriam liberados se houvesse um parceiro para a comercialização do hormônio. “Chegamos a sentar com representantes de uma indústria farmacêutica e do BNDESPar, que alocaria os recursos, mas o acordo não saiu. Estávamos trazendo a tecnologia, obtendo capital e mesmo assim a indústria farmacêutica não fechou o negócio.”
Em meados de 2000, Genosys e Braskap iniciaram entendimentos, descobriram vários pontos em comum e o acordo foi assinado no final do ano. O contrato com a Braskap é basicamente um consórcio: “O objetivo é a produção e comercialização do hGH. A maior contribuição da Genosys é o know-how de produção, enquanto o aporte mais valioso da Braskap é a sua experiência de distribuição e de vendas”, explica Leyton. Hoje, depois de participar da 3ª -edição do Venture Forum (veja Pesquisa Fapesp n° 64), Leyton negocia a participação de investidores de capital de risco na empresa, garantindo, assim, uma melhor saúde financeira da Genosys e mais investimentos no desenvolvimento de novos produtos.
Testes finais
Antes de chegar ao mercado, o hormônio da Genosys ainda passará por testes clínicos. Até agora, todo o processo de produção foi desenvolvido e validado, mas o hormônio não foi ministrado a nenhum ser humano, apenas foi testado e aprovado em animais, com auxílio do Laboratório de Diagnósticos Toxicológicos (Ladtox) do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP,sob a coordenação do professor Luiz Carlos de Sá Rocha. Mesmo esses testes de toxicidade aguda e crônica utilizando 1,5 e 10 vezes a dose terapêutica em três espécies diferentes de animais terão de ser refeitos com o hormônio produzido nas instalações da Braskap, por exigência da legislação. Os testes em humanos serão rápidos, basta aplicar o hormônio e verificar sua resposta na circulação sanguínea. Outro fator que facilita a liberação do hormônio para o mercado brasileiro é sua similaridade com produtos fabricados no exterior.
A maior dificuldade da Genosys no desenvolvimento do hormônio foi o domínio do processo dedownstream (purificação), sobre o qual nenhuma empresa que o domine fornece pistas seguras. Até há alguns anos, a clonagem do gene era a fase mais complexa. Hoje, ela está mais disseminada.Os pesquisadores, a partir de uma pituitária, obtêm o gene que codifica a produção do hormônio e fazem nele modificações para atender às necessidades da bactériaEscherichia coli onde o hGH será produzido. Essa seqüência de DNA é inserida numa molécula de DNA bacteriano (plasmídeo). Uma vez colocado esse plasmídeo dentro de uma bactéria, ela passará a produzir o hormônio. A síntese é ativada pela presença, no meio de cultura, de um indutor químico.
Capacidade de produção
A etapa seguinte é promover a fermentação das bactérias em um fermentador com capacidade de 200 litros. “Temos hoje uma capacidade de produção, com folga, de 12 mil frascos-ampola de 4 U.I. por mês”, afirma Leyton. Uma criança acometida de nanismo utiliza cerca de 250 frascos-ampola por ano. Assim, a produção do consórcio Genosys/Braskap tem capacidade para atender até 576 crianças. “Mas há possibilidade de no futuro chegarmos até 40 mil frascos-ampola mês.”
Gordas e eficazes
As bactérias são excelentes produtoras de hormônio. Produzem tanto que precisam armazenar o produto nos chamados corpúsculos de inclusão, fáceis de serem vistos em microscópios. Com as bactérias gordinhas, inicia-se então o processo de downstream. A primeira ação é a “quebra” das bactérias para a liberação dos corpúsculos e sua lavagem. Depois, o hormônio contido nos corpúsculos é solubilizado e disposto na sua conformação original. Em seguida, é a vez dos processos cromatográficos de purificação, nos quais a solução aquosa que contém o hGH passa por uma série de processos como troca iônica, peneira molecular, entre outros, que retiram as impurezas do hormônio.
Nesse processo restam apenas de 20% a 28% do hGH produzido pelas bactérias, o resto se perde. Leyton explica que esse rendimento é economicamente viável, sendo preferível essa perda para que se obtenha um produto ultrapurificado.Nas fases seguintes, é adicionado um conservante e estabelecida a concentração de hormônio desejada. Finalmente, a solução será liofilizada (retirada da água a vácuo). Com esse processo, o hGH em pó ficará estável por até dois anos.O grau de pureza necessário à produção do hormônio de crescimento é infinitamente superior a outros produtos também obtidos por engenharia genética, como por exemplo, uma vacina, explica Leyton. “Quando se toma uma vacina e ocorre uma reação, uma pequena febre, as pessoas consideram isso normal.
Mas a vacina não deveria provocar nenhuma reação. O que acontece quando se faz a purificação da vacina é que os produtores, por questão puramente financeira, se satisfazem com um grau de pureza de 95% ou 96%.” Isso se deve ao fato de que a pessoa tomará uma dose e quandomuito uma dose de reforço tempos depois, e, se houver uma febrinha, ela passará. Mas no caso do hormônio, a criança vai tomar praticamente todo dia e não pode haver aquele grau de impureza tolerável na vacina. “O segredo da produção do hGH é a sua purificação.”
Fornecimento gratuito
O principal comprador de hormônio será o sistema público de saúde que fornece gratuitamente o medicamento às crianças e também aos adultos porque, mesmo depois da adolescência, o paciente usa o hormônio em doses decrescentes pelo resto da vida. O Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP atende 320 pessoas com necessidade de hGH, a maioria delas crianças. Segundo Berenice de Mendonça, chefe da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento do hospital, o atendimento às crianças com nanismo por deficiência de hormônio no Estado de São Paulo pode ser considerado bom. O hGH utilizado nos vários hospitais do Estado que tratam desse problema é fornecido pela Secretaria de Saúde e pelo Ministério da Saúde. Somados aos 320 atendidos no Instituto Central, há mais 100 crianças que recebem o hGH no Instituto da Criança, também vinculado ao hospital.
Crescer e diversificar
A Braskap, para fazer a distribuição do medicamento, contará com sua experiência de 20 anos no mercado. Localizada em Sorocaba, a empresa tem como atividade principal a fabricação de cápsulas gelatinosas para medicamentos (1 bilhão delas por ano) para várias indústrias farmacêuticas. Existem 15 fabricantes dessas cápsulas no mundo, sendo três deles no Brasil: duas empresas estrangeiras e a Braskap, de capital totalmente nacional. Em 1995, a empresa também iniciou sua divisão farmacêutica, contando até agora com dez medicamentos em produção.
Segundo o presidente da empresa, Augusto Mattos, os investimentos da Braskap na parceria serão direcionados para a construção de área específica para a produção do hormônio, equipamentos, estudos clínicos e formação de uma equipe de promoção e vendas. “Estimamos os investimentos iniciais em US$ 2 milhões. A previsão é que nos primeiros anos o hormônio responderá por 5% da capacidade produtiva da empresa.”
Para Mattos, o pioneirismo das duas empresas é razão de otimismo. “O Brasil dispõe de excelente comunidade de pesquisadores, que, com o apoio do empresariado, trará para o país grande desenvolvimento nas mais diversas áreas.” O contrato assinado entre a Braskap e a Genosys já prevê o desenvolvimento de novos produtos.
Usos aprovados e abusos negados
O hormônio de crescimento humano produzido em laboratório tem até agora, segundo a prestigiada entidade norte-americana Food and Drug Administration (FDA), os seguintes usos: nanismo por deficiência do hormônio e síndrome de Turner, uma anomalia cromossômica que afeta meninas e, entre outras conseqüências, provoca baixa estatura em 95% das portadoras e esterilidade. Também é indicado no tratamento de pacientes com Aids em estágio avançado, quando a pessoa começa a perder musculatura. Outros usos, inclusive no Brasil, acontecem no caso de transplantados renais e adultos com deficiência do hormônio.
Nos Estados Unidos, existe atualmente uma corrente médica que está requerendo a aprovação, por parte do FDA, do uso geriátrico do hGH. Também existem pesquisas em andamento no Brasil sobre o uso geriátrico, no tratamento de pessoas com queimaduras graves e na redução da gordura abdominal.
No caso do uso geriátrico, os estudos dos últimos anos indicam benefícios no combate à osteoporose, na redução da massa muscular e na diminuição da gordura localizada. Os resultados ainda não são conclusivos. Segundo José Antonio Miguel Marcondes, presidente da Sociedade Paulista de Endocrinologia e Metabolia, há quatro anos foi publicado um artigo no New England Journal of Medicine sobre o uso geriátrico do hGH. “Os benefícios para os idosos parecem ser incontestes, entretanto, a pesquisa publicada ainda foi restrita em termos de amostra”, diz Marcondes. Em relação à prática de pessoas saudáveis e freqüentadores de academia de ginástica que querem utilizar o hGH para aquisição de massa muscular ou aparentar jovialidade, o assunto muda de tom. “Esse tipo de utilização é no mínimo inconveniente, por falta de estudos detalhados e diante dos riscos, que vão do diabetes ao câncer.”
Existem outros sérios riscos para as pessoas que se utilizam do hGH sem acompanhamento médico adequado e que não têm deficiência do hormônio: crescimento dos pés, mãos, queixo e crista orbital (sob as sobrancelhas) e de extremidades cartilaginosas (orelhas, nariz), crescimento de tumores já existentes, cirrose, dores nas juntas, inchaço e hipertensão por retenção de líquido, além do aparecimento de doenças cardíacas.
Classificado como anabolizante pelo Comitê Olímpico Internacional, o hGH está sujeito a controle especial (venda com receita médica em duas vias a ser retida pela farmácia) por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, de acordo com resolução emitida em 15 de fevereiro de 2001.
O projeto
Produção do hormônio de crescimento humano pela tecnologia do DNA recombinante (nº 97/07394-0); Modalidade Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador Jaime Francisco Leyton – Genosys; Investimento R$ 232.134,21