Eduardo Cesar
Um computador e um escâner comum, desses que muitas pessoas têm em casa, são as novas ferramentas para detectar a adulteração do leite, fraude que acontece com frequência no Brasil e em outros países. A ideia desse método surgiu no Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) motivada pelas frequentes notícias na imprensa sobre falsificações de leite em várias regiões do país. A equipe coordenada pelo professor Edenir Rodrigues Pereira Filho conseguiu com o novo método identificar e quantificar os principais adulterantes, em diferentes concentrações, como água, peróxido de hidrogênio (água oxigenada), soro, leite e urina sintéticos, ureia e soda cáustica. O estudo, que teve financiamento da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), começou em 2009 a partir do projeto de doutorado da então aluna de Pereira, Poliana Macedo dos Santos.
O uso de imagens digitais para análise de alimentos já está registrado na literatura científica. Pode ser usado no controle da qualidade de presunto, na contagem de lactobacilos em leite fermentado e também para determinar o tamanho de grãos de arroz. A partir desses exemplos, o grupo da UFSCar obteve amostras de leite, cedidas por uma empresa de laticínio da região de São Carlos, e fez as adulterações com as cinco principais substâncias normalmente usadas pelos fraudadores, em concentrações de 5% a 50%. Um deles, a água de torneira, é utilizada para aumentar o volume e, com isso, gerar ganho econômico para os falsificadores. O soro, por sua vez, um subproduto da fabricação de queijo, é adicionado ao leite para mascarar a adição de água e manter a concentração de proteína dentro do que determina a legislação nacional (2,9%).
O mesmo papel tem a urina sintética usada no experimento – uma mistura de sais, água e outras substâncias comumente encontradas na urina, como ureia e creatinina. O objetivo principal é encobrir o acréscimo de água. A quarta substância fraudadora é leite sintético, um adulterante formado por uma mistura de água, detergente, óleo e ureia, utilizado com a mesma função do soro. O último produto usado nas fraudes, o peróxido de hidrogênio, serve para inibir a proliferação de bactérias e, dessa forma, prolongar o tempo de conservação do produto.
Depois de adulteradas, as amostras foram colocadas em copos de vidro e receberam gotas de bromofenol, um corante azul, para possibilitar um melhor contraste das cores entre as porções falsificadas e normais de leite porque o tom azulado varia conforme a concentração do adulterante. “Os copos foram colocados sobre o vidro de um escâner de uma impressora para gerar uma imagem digital de cada um deles”, explica Pereira. Cada uma das misturas gerou uma imagem em formato Joint Photographic Experts Group (JPG). Foram obtidas, dessa forma, cerca de mil imagens, cada uma correspondendo a um tipo de adulteração.
infográfico: ana paula campos / ilustração: Pedro hamdanComparação de imagens
As imagens foram armazenadas em um computador. Quando se quer testar uma amostra, é preciso digitalizar o copo com um pouco de leite, gerando uma imagem. Por meio de um software especializado, ela é comparada com as mil previamente armazenadas. Assim, é possível identificar se a nova amostra é igual à testada e descobrir a fraude. Se o adulterante não corresponder a uma imagem armazenada, o programa não consegue identificá-lo. Mas conseguirá dizer que o leite não é puro.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção de leite no Brasil em 2012 foi de 32,3 bilhões de litros. Em relação a fraudes, não há dados precisos. “Geralmente a porcentagem é da ordem de 10%”, diz Pereira. “Somente temos informações do que é divulgado na mídia.” Em termos mundiais, no entanto, há mais dados. Poliana cita em sua tese um estudo realizado na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que revelou ser o leite um dos sete alimentos mais suscetíveis à adulteração, junto com azeite, mel, açafrão, café, sucos de maçã e laranja.
No Brasil, a fiscalização da qualidade do produto é feita por órgãos municipais, estaduais e federais. As empresas que possuem registro no Serviço de Inspeção Federal (SIF) são autorizadas a fazer o comércio interestadual ou internacional e são fiscalizadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento por meio de inspeções periódicas ou auditorias. Nessas inspeções são verificadas as linhas de produção, o atendimento das boas práticas de fabricação e procedimentos operacionais padronizados. Além disso, o programa de Combate à Fraude do Leite do ministério abrange, entre outras, análises de água oxigenada, amido, cloretos, neutralizantes de acidez, sacarose, álcool etílico e soro.
Em sua tese, Poliana diz que as análises da qualidade do leite no Brasil se baseiam na determinação de algumas propriedades físico-químicas do produto, como acidez, gordura, extrato seco, entre outras. Mas muitas vezes esses métodos são incapazes de detectar, de uma forma direta, se houve adulteração. Além disso, os testes são demorados, consomem muitos reagentes químicos e necessitam de equipamentos específicos e de custo elevado. Por isso, segundo os pesquisadores da UFSCar, o método desenvolvido apresenta como vantagem sobre outras técnicas de análise a rapidez, possibilitando a realização de testes em tempo real. “Além disso, o procedimento criado por nós tem grandes chances de ser portátil e utilizado no campo. As amostras suspeitas poderiam ser encaminhadas para laboratórios especializados para testes mais aprofundados”, diz Pereira. Para chegar ao mercado, o método ainda precisa de uma empresa interessada em desenvolvê-lo como produto e comercializá-lo.
Projeto
Aplicação de imagens digitais e técnicas espectroanalíticas combinadas com quimiometria para detecção e quantificação de adulteração em leite bovino (nº 2009/01345-6); Modalidade Bolsa de Doutorado; Bolsista/Coord. Poliana Macedo dos Santos /Edenir Rodrigues Pereira Filho; Investimento R$ 111.668,91 (FAPESP).
Artigos científicos
SANTOS, P.M. et al. Digital image analysis – an alternative tool for monitoring milk authenticity. Analytical Methods. v. 5, p. 3.669-74. ago. 2013.
SANTOS, P. M. et al. Scanner digital images combined with color parameters: a case study to detect adulterations in liquid cow’s milk. Food Analytical Methods. v. 5, p. 89-95. 2012.