Uma técnica para unir materiais rígidos e elásticos, inspirada no que a natureza faz para ligar músculos com ossos no corpo humano, foi desenvolvida por uma equipe de pesquisadores brasileiros, europeus e americanos, do grupo de Materiais Complexos, do Instituto Federal de Tecnologia (ETH), de Zurique, na Suíça. Os resultados gerados pela nova técnica são os chamados compósitos bioinspirados, com grande potencial para serem aplicados em implantes biomédicos e peças para as indústrias automotiva e aeroespacial. O método de união de materiais poliméricos e cerâmicos foi descrito em um artigo publicado em dezembro na revista Nature Communications.
O líder do grupo, o professor e engenheiro brasileiro André Studart, diz que o acoplamento entre materiais rígidos e flexíveis é muito comum em seres vivos. “No nosso corpo, por exemplo, partes altamente elásticas, como os tendões, são conectadas a outras extremamente rígidas, como os ossos”, lembra. “Ao contrário do que se observa em produtos artificiais, nosso corpo permite a aplicação de uma alta carga mecânica na junção entre esses dois materiais sem a ocorrência de falhas no local da ligação.” A aplicação dos princípios utilizados pela natureza para a produção de materiais artificiais de alto desempenho contou com a participação de outro brasileiro, o químico Rafael Libanori, além de dois pesquisadores suíços, uma francesa, um austríaco e um americano.
Transformar essas características naturais em tecnologia, criando um mecanismo artificial que torne possível a ligação entre materiais elásticos e rígidos, não é assim tão fácil como a natureza dá a entender. Ao contrário, unir dois produtos com propriedades mecânicas diferentes é atualmente um grande desafio em várias áreas da engenharia. Daí a importância do trabalho do grupo liderado por Studart. “Desenvolvemos um método de produção de materiais heterogêneos artificiais que podem ser usados para conectar estruturas rígidas e elásticas de maneira eficiente como na natureza”, conta ele.
O grupo verificou que a natureza resolveu o problema por meio de uma mudança gradual das propriedades mecânicas da estrutura de acoplamento, chamada de inserção tendão-osso. “Perto dos tendões, as inserções são relativamente elásticas e compostas principalmente por fibras de colágeno”, explica Libanori. “Mas, à medida que elas se aproximam dos ossos, a concentração de elementos minerais de reforço vai aumentando gradualmente, resultando em um compósito heterogêneo que é capaz de distribuir de maneira uniforme as tensões mecânicas ao longo de seu comprimento.” Trata-se de uma transição gradual de propriedades mecânicas tanto linear quanto perpendicular, o que minimiza o desenvolvimento de altas tensões mecânicas na junção.
Transição no dente
O colágeno apresenta propriedades mecânicas características de materiais elásticos, enquanto os elementos minerais de reforço, como a hidroxiapatita – formada de fosfato de cálcio, o principal constituinte dos ossos –, exibem propriedades características de materiais cerâmicos rígidos. Um outro exemplo de material biológico que apresenta uma transição gradual de propriedade mecânica é o dente. “A parte interna dos nossos dentes é formada pela dentina, mais elástica, enquanto a camada externa, o esmalte dentário, é muito mais rígida e dura”, explica Libanori. “Essa transição gradual de propriedades ocorre de maneira perpendicular, do interior do dente para o esmalte dentário.”
O método criado pelo grupo, chamado “reforço hierárquico de elastômeros de poliuretanas”, foi desenvolvido durante o doutorado de Libanori, orientado por Studart no ETH. “A palavra ‘hierárquico’ aqui é empregada porque a matriz polimérica é reforçada com componentes mais rígidos em diferentes escalas de tamanho: molecular, nanométrica e micrométrica”, explica Libanori. “Dessa maneira, podemos combinar camadas de materiais, exibindo diferentes graus de rigidez, por meio de um procedimento chamado soldagem por solvente.” No artigo da Nature Communications, os pesquisadores descrevem uma matriz de poliuretano – um polímero utilizado na confecção de espumas, solas de sapato, fibras têxteis e adesivos, por exemplo, reforçada com plaquetas cerâmicas em escala nanométrica (argila sintética chamada de laponita) e micrométrica (óxido de alumínio). As medidas nanométricas equivalem a tamanhos referentes a 1 milímetro dividido por 1 milhão e as micrométricas, 1 milímetro dividido por 1.000.
De acordo com Studart, esse método possibilita a criação de compósitos poliméricos até agora inimagináveis. “Criamos, por exemplo, um material em que a rigidez na superfície superior equivale à de nossos dentes e ossos, enquanto a elasticidade na superfície inferior se aproxima à de nossa pele”, revela o professor. Eles também demonstraram que dispositivos eletrônicos rígidos integrados em um substrato flexível, como no caso de LEDs, podem ser efetivamente protegidos contra falha mecânica, aumentando de forma significativa o tempo de vida do equipamento.
Dispositivos flexíveis obtidos por meio desse método podem ser deformados em até 4,5 vezes seu tamanho inicial sem comprometer a resposta dos componentes rígidos eletrônicos. Segundo Libanori, o projeto ainda está em fase de pesquisa acadêmica e o grupo está procurando empresas interessadas em licenciar a tecnologia. “No momento, estamos discutindo as possibilidades de colaboração com uma grande empresa de artigos eletrônicos”, diz.
O professor Edson Roberto Leite, do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), acompanha de perto há alguns anos o trabalho de Libanori e Studart. “O Rafael Libanori foi meu aluno de iniciação científica e mestrado e eu o indiquei para o Studart”, conta. “O trabalho desenvolvido por eles é muito importante, porque criam métodos de processamento de compósitos que possibilitam copiar as formas hierárquicas em que a natureza organiza os materiais. Esse é o grande avanço do grupo. Mais que estudar como a natureza trabalha, eles estão reproduzindo como ela constrói os materiais, de forma artificial, sem usar bioquímica ou genética.” De acordo com Leite, no Brasil as pesquisas nessa área ainda estão começando. “Existem alguns grupos trabalhando em fotossíntese artificial, como o nosso aqui na UFSCar, e poucos em compósitos bioinspirados”, diz. “Já no mundo é um tema em expansão, com grandes grupos trabalhando em pesquisas de ponta.”
Artigo científico
LIBANORI, R. et al. Stretchable heterogeneous composites with extreme mechanical gradients. Nature Communications. v.3, artigo 1.65. 11 dez. 2012 (on-line).