Agricultores de todo o mundo perdem bilhões de dólares anualmente com o ataque das mais diversas pragas às suas lavouras. Alguns estudos revelam que, no Brasil, cerca de 30% das principais plantações são dizimadas por insetos e outras pragas, como ácaros e fungos. Para debelar o problema, os agricultores têm à disposição um vasto arsenal de inseticidas químicos, bioinseticidas e, mais recentemente, as chamadas proteínas pesticidas. Quando inseridas no material genético das plantas – que, por isso, passam a ser organismos geneticamente modificados -, elas atuam como biopesticidas, matando determinados tipos de insetos, fungos e até vírus. As toxinas proteicas mais empregadas hoje são produzidas por bactérias da espécie Bacillus thuringiensis. Conhecidas como toxinas BT, elas são largamente utilizadas em culturas de milho, algodão e batata nos Estados Unidos e em outros países que permitem o uso de transgênicos. Apesar de eficientes no controle das pragas, as toxinas BT têm ação limitada, porque oferecem proteção apenas contra um número restrito de insetos, às vezes uma única espécie de besouro, mariposa, borboleta, mosca ou mosquito.
O avanço nas pesquisas com esses biopesticidas levou um grupo de pesquisadores do Laboratório de Proteínas Tóxicas (Laprotox) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a descobrir um novo tipo de proteína inseticida com ação muito mais ampla e segura do que a toxina BT. Trata-se de um grupo de proteínas, conhecidas como ureases e produzidas pelas próprias plantas, com atividade inseticida contra besouros do tipo carunchos, percevejos e pulgões, insetos imunes à toxina BT. Esses animais são pragas importantes na agricultura brasileira. A soja, por exemplo, é atacada pelo percevejo verde (Nezara viridula), o algodão pelo percevejo-manchador (Dysdercus peruvianus) e o feijão-de-corda pelo caruncho (Callusobruchos maculatus). “Os pulgões, além de se alimentar das plantas, são vetores de doenças”, afirma a biomédica Célia Carlini, coordenadora do Laprotox e pesquisadora responsável pela novidade. A toxina proteica também é eficiente no combate a pragas urbanas, como cupins e baratas. Para esse fim, o produto pode ser pulverizado nos ambientes desses insetos ou estar disponível em armadilhas.
Nas lavouras, a proteína precisa ser inserida numa planta que se tornará geneticamente modificada. Para isso, os pesquisadores desenvolveram um gene artificial que codifica apenas o pedaço da proteína que é tóxico para o inseto. Após ingerir a urease, enzimas do tipo catepsinas do próprio inseto quebram a proteína e um fragmento atravessa a membrana das células intestinais, atingindo tecidos ainda não identificados pelos pesquisadores e levando o animal à morte. “Nossa proteína apresenta uma grande vantagem relacionada ao aspecto da biossegurança quando comparada à toxina BT”, afirma Célia. “Ela está presente em alimentos que são consumidos diariamente pela população, como feijão e plantas da família das curcubitáceas, como melão, melancia, abóbora e pepino. Isso é uma sinalização de que ela não faz mal ao nosso organismo”. Assim, plantas como a soja modificada geneticamente, com a proteína inseticida, não causaria mal aos seres humanos.
Duas patentes
As pesquisas do grupo gaúcho resultaram em duas patentes, ambas associadas ao processo de produção do fragmento da proteína com ação tóxica. Esse fragmento é um peptídeo, caracterizado assim por ser um composto formado por uma cadeia de 81 aminoácidos. Os pesquisadores deram a ele o nome de jaburetox, palavra formada por jack bean, nome em inglês do feijão-de-porco – vegetal em que a proteína foi identificada pela primeira vez -, mais urease e toxina. Como o grupo sabia que o poder tóxico da proteína estava no fragmento formado durante a digestão do inseto, a decisão seguinte foi tentar produzir essa molécula em laboratório. O resultado foi surpreendente: estudos mostraram que o jaburetox agiria numa variedade bem maior de culturas agrícolas e contra muitos outros insetos, inclusive aqueles imunes à toxina BT. “Nossas duas patentes cobrem todos os processos de produção desse peptídeo, seja por meio da purificação das ureases e das enzimas do inseto, seja por meio da construção de um gene artificial, que ensina a célula a fabricar esse peptídeo. Esse gene artificial pode ser introduzido numa bactéria ou levedura, para produção do peptídeo em tubo de ensaio, ou numa planta, num processo de transgenia”, explica Célia.
A descoberta do peptídeo jaburetox, que poderá se transformar em um importante aliado no combate às pragas do campo, é o coroamento de mais de duas décadas de pesquisa da biomédica Célia Carlini, especialista em biologia molecular com ênfase em química de proteínas. “Nossas pesquisas tiveram início em 1981 com o estudo da proteína canatoxina (CNTX), encontrada no feijão-de-porco (Canavalia ensiformis). Esse tipo de feijão não é comestível, mas largamente utilizado na adubação verde. Altamente produtivo e com elevado valor protéico, ele é plantado em lavouras com a finalidade de incorporar nitrogênio ao solo”, explica a pesquisadora. De 1998 a 2005, Célia recebeu financiamento de R$ 295 mil oriundo de vários programas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).
Família conhecida
“Durante o mestrado, isolei a canatoxina e passei a estudar seu mecanismo de ação. Em 1997, durante meu pós-doutorado, no Centro de Ciência de Insetos da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, descobri que ela tinha atividade inseticida”. Em um estudo com oito diferentes insetos, ela mostrou-se eficaz no combate ao caruncho do feijão-de-corda e ao barbeiro Rhodnius prolixus. Foi apenas em 2001, no entanto, que a pesquisadora e sua equipe descobriram que a canatoxina pertencia a uma família de proteínas bastante conhecida nas plantas, chamadas ureases. “Foi uma descoberta importante, pois constatamos que existe uma oferta muito maior de genes, já que a urease é encontrada em vários vegetais. Ao mesmo tempo, ficamos mais confortáveis quanto à sua biossegurança, porque essas plantas são comestíveis, ao contrário do feijão-de-porco, fonte original da canatoxina.”
Os testes laboratoriais, segundo a pesquisadora, já revelaram que o peptídeo não é tóxico em ratos e camundongos. “As primeiras plantas transgênicas já se encontram em testes no laboratório e os resultados devem sair até o final do ano. Estamos testando tabaco transgênico e estudando a ação da toxina sobre lagartas Manduca sexta e pulgões da espécie Trips tabaci, que são pragas do tabaco”. Ao mesmo tempo, o grupo, que já publicou mais de 50 artigos em periódicos nacionais e internacionais, está em contato com pesquisadores da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia e da UFRGS especializados em transgenia de algodão e de soja, para a realização de experimentos com o peptídeo nessas culturas, e com pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, em Piracicaba (SP), para testar a descoberta em cana-de-açúcar. Caso o resultado dos testes demonstre que a proteína tem ação tóxica contra pragas que atacam essas lavouras, o próximo passo será encontrar um parceiro para iniciar a produção comercial do novo biopesticida.
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