Uma das principais pragas que atacam a cultura da cana-de-açúcar é a broca-da-cana (Diatraea saccharalis), um inseto que penetra no interior da planta e cava galerias internas, causando grandes prejuízos aos produtores. Para controlar esse inimigo de forma efetiva, pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), da cidade de Piracicaba, conseguiram, por meio de modificação genética, chegar a uma cana que libera proteínas com atividade inseticida apenas quando atacada pela broca-da-cana.
O caminho para produzir uma planta com essas características começou com um detalhado estudo e uma caracterização de genes da cana-de-açúcar para saber quais eram ativados exclusivamente por insetos. Cumprida essa etapa, era preciso então descobrir a seqüência de DNA que ativava esses genes, os chamados promotores, que permitem a expressão do gene no momento em que há necessidade. “Um gene sem promotor é um gene inativo, um pseudogene”, diz o professor Márcio de Castro Silva Filho, do Laboratório de Biologia Molecular de Plantas, do Departamento de Genética da Esalq, coordenador da pesquisa.
Para expressar novos genes na cultura da cana, com potencial sobre a broca, os pesquisadores recorreram ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que possui vários promotores patenteados. Em 1998, época do início da pesquisa, não existiam promotores de cana disponíveis no Brasil. Os pesquisadores brasileiros assinaram um termo em que se comprometiam a usar a seqüência de promotores apenas para pesquisa em laboratório. “Quando recebemos o material, começamos a fazer construções gênicas, ou seja, colocamos os promotores atrás dos genes responsáveis por aumentar as defesas da planta contra a broca”, diz Silva Filho. Dessa forma, os pesquisadores conseguiram gerar plantas consideradas transgênicas que expressavam as proteínas de defesa. E com isso conseguiram provar que as plantas associadas aos promotores realmente possuíam uma resistência maior contra o ataque da broca, principal responsável, junto com outras pragas dos canaviais, por prejuízos de cerca de US$ 500 milhões por ano aos produtores brasileiros. Essa cana é considerada transgênica, embora os promotores sejam da própria espécie, porque foram isolados do genoma da planta e introduzidos nela posteriormente.
O ciclo da broca no canavial começa com as mariposas, que colocam pequenos ovos na parte de baixo das folhas. Quando os ovos eclodem saem minúsculas larvas, de cerca de 1 a 2 milímetros, que caminham em direção à região próxima ao colmo (caule) da planta, onde penetram e se alimentam da polpa carnuda e doce. Dentro da cana, as larvas vão mudando de fase, até atingir cerca de 3 a 4 centímetros, quando saem da planta, transformam-se novamente em mariposas e dão início a um novo ciclo de vida do inseto. As galerias feitas por esses insetos mastigadores ocupam praticamente todo o interior da planta, provocando diminuição da massa vegetal e falhas na germinação, entre outros danos.
Os furos abertos pelas brocas também são porta de entrada para fungos que causam a podridão vermelha, doença responsável pela diminuição na produção de sacarose. Quando a matéria-prima se destina à produção de álcool, o problema é ainda mais grave, pois os microorganismos invasores contaminam o caldo e concorrem com as leveduras na fermentação.
Para combater a broca-da-cana as grandes usinas sucroalcooleiras produzem em seus laboratórios pequenas vespas (Cotesia flavipes), liberadas no campo para parasitar as lagartas. Os pequenos produtores não têm como fazer o controle biológico porque não há produção suficiente de vespas em escala comercial, sem contar que elas têm de ser liberadas na plantação nas condições ideais de temperatura e quantidade para surtir efeito. E a partir do momento em que a broca penetra na cana as perdas são inevitáveis, porque nessa fase não dá mais para recorrer ao controle biológico nem ao químico, devido ao alto custo dos inseticidas e à baixa eficiência dos produtos, incapazes de atingir as lagartas no interior da planta.
Promotores específicos
Após confirmar que as plantas com os promotores tinham a resistência aumentada contra a praga, os pesquisadores se viram diante de um novo desafio. Eles precisavam descobrir novas seqüências de DNA ainda não patenteadas que fizessem os genes expressarem a defesa contra ataques de insetos. E, além disso, queriam promotores específicos, distintos daqueles descobertos pelos norte-americanos e cedidos para a pesquisa, chamados de promotores constitutivos, que se expressam o tempo todo ao longo do ciclo de vida da cana. “É esse tipo de promotor que vem sendo utilizado pelas empresas de biotecnologia nas plantas transgênicas com resistência a insetos”, diz Silva Filho.
A pesquisa realizada na Esalq tinha, desde o início, o objetivo de identificar na cana promotores de genes que eram ativados apenas quando a planta fosse atacada pela lagarta. Depois de três anos de estudo, os pesquisadores conseguiram descobrir o promotor que controla a expressão de defesa do gene, batizado de sugarina. Na seqüência foi feito um trabalho de clonagem do promotor e depositado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) um pedido de patente com o apoio da FAPESP, por meio do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi).
“O promotor da sugarina tem um grande potencial biotecnológico, porque acreditamos que ele funcione de maneira semelhante a outras plantas parentes da cana, como milho e arroz”, diz Silva Filho. Se a planta não for atacada pelo inseto, ela é igual a uma planta convencional, que não passou por nenhuma modificação genética, de uma forma diferente das variedades de milho e algodão transgênicos resistentes a insetos, liberados para comercialização na Argentina, na China e nos Estados Unidos, que utilizam basicamente genes isolados de uma bactéria de solo chamada Bacillus thuringiensis (BT). Essas plantas produzem uma toxina, derivada de um gene bacteriano, durante todo o ciclo da planta, mesmo se não estiver sendo atacada.
A diferença da cana da Esalq com outras plantas transgênicas foi comprovada em vários experimentos que avaliaram as situações em que o gene de defesa se expressava. Um deles consistia em fazer um ferimento na planta, como um rasgo na folha, por exemplo. “Normalmente, boa parte dos genes de defesa que são ativados por insetos também entra em ação quando ocorre um ferimento”, diz Silva Filho. No caso da cana modificada com o promotor da sugarina, a planta responde apenas ao inseto. Os pesquisadores ainda não sabem com certeza como a planta consegue saber que a lesão é causada por um inseto e não por um ferimento. Eles ainda estão tentando caracterizar quais as moléculas envolvidas nessa resposta específica. Uma das hipóteses é que as substâncias presentes na saliva do inseto possam ativar a expressão dos genes.
Para entender essa relação tão próxima entre planta e inseto herbívoro os pesquisadores iniciaram em 1998 uma extensa pesquisa, finalizada em 2002 e também financiada pela FAPESP, na modalidade Projeto Temático. “Começamos a fazer uma abordagem dos dois lados”, diz Silva Filho. De um lado, a pesquisa buscava entender os mecanismos de defesa que a planta usa contra o inseto para evitar que ele a utilize como alimento ou hospedeiro. E são muitos mecanismos, já que ela não pode sair do lugar para se defender. Por outro lado, os insetos também têm suas estratégias para enganar a defesa das plantas. As estratégias utilizadas por cada um dos oponentes são fundamentais para avançar nos métodos de obtenção de maior produtividade no campo. Afinal, tanto os insetos como as plantas estão em um processo de evolução conjunta que data de centenas de milhares de anos.
Resposta tardia
A partir desse Projeto Temático, uma nova linha de pesquisa foi iniciada no laboratório da Esalq envolvendo a interação entre planta e inseto. E resultou no isolamento e caracterização do promotor da sugarina, trabalho que foi tese de doutorado de Patrícia Pompermayer, orientada por Silva Filho e uma das co-autoras da patente. Encerrada essa etapa, a pesquisa agora está na fase de detalhamento do mecanismo de atuação do promotor da cana, estudo que está sendo conduzido por Anne Hackbart de Medeiros, também sob orientação de Silva Filho e outra co-autora da patente. “Vimos nessa fase que o pico de ativação do gene é de cerca de 24 horas após o ataque da broca”, diz Silva Filho. Algumas plantas respondem imediatamente, outras mais tardiamente, como é o caso da sugarina. Essa aparente demora na ativação do mecanismo de defesa está sendo estudada pelo grupo.
Ao mesmo tempo em que os pesquisadores finalizam os estudos da sugarina, eles se preparam para solicitar à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão governamental que controla o plantio de transgênicos no país, autorização para levar os experimentos com as mudas que já estão preparadas na casa de vegetação para o campo, em uma área dentro da Esalq. Nessas condições, será possível saber se o promotor ativa a expressão de defesa da planta também quando ocorre o ataque da cigarrinha-da-raiz (Mahanarva fimbriolata), um inseto sugador que teve seus índices de infestação aumentados em razão da colheita mecânica — no final do processo a máquina deixa no campo uma camada de palha, ideal para a proliferação dessa praga.
Os projetos
1. Caracterização bioquímica, entomológica e molecular da interação entre inibidores de proteinases digestivas e insetos da ordem Lepidóptera (nº 97/04934-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Marcio de Castro Silva Filho – USP; Investimento R$ 198.265,10 e US$ 139.201,90 (FAPESP)
2. Interação planta-inseto: um processo co-evolutivo envolvendo maquinarias adaptativas distintas (nº 02/11462-0); Modalidade Linha Regular de Auxílio à Pesquisa; Coordenador Marcio de Castro Silva Filho – USP; Investimento R$ 108.250,00 e US$ 6.000,00 (FAPESP)
3. Patenteamento de um promotor de cana-de-açúcar induzido por insetos herbívoros (nº 04/09979-0); Modalidade Programa de Aapoio à Propriedade Intelectual (Papi); Coordenador Marcio de Castro Silva Filho – USP; Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP)