O uso do fogo e a pecuária, juntos, têm desempenhado papel importante, e muitas vezes essencial, para a manutenção da diversidade biológica do pampa, um dos mais ricos, complexos e heterogêneos ecossistemas brasileiros. Pode soar estranho, mas estudos sugerem que essas duas formas de interferência humana, quase sempre agressivas à biodiversidade local, se bem manejadas, podem contribuir para conservar a vegetação campestre do sul do país por conter a invasão de florestas de araucária e o adensamento de plantas lenhosas na região e por favorecer o rebrotamento da vegetação nativa, muitas vezes usada na alimentação do rebanho bovino. Essa concepção pouco habitual de conservação ambiental foi o destaque das palestras dos biólogos Márcio Borges Martins e Ilsi Iob Boldrini, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), durante o segundo encontro do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação, realizado em São Paulo no dia 21 de março. Promovido pela coordenação do Programa Biota-FAPESP em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, o evento contou também com a participação do biólogo Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
De acordo com os pesquisadores, nos últimos mil anos o clima úmido, característico de zonas subtropicais, tem favorecido a expansão das florestas em detrimento dos campos, os quais originalmente constituem a paisagem recente da região sulina. “Se considerarmos o clima atual, praticamente toda a região sul do Rio Grande do Sul seria naturalmente coberta por vegetações florestais”, ressaltou Martins. Segundo ele, isso só não ocorreu devido à presença de grandes herbívoros que viviam ali e, mais recentemente, à introdução da pecuária. “O gado tem desempenhado papel fundamental na conservação dos pampas”, disse. E também o fogo, por frear o rápido avanço das florestas. “As queimadas podem ter sido essenciais na manutenção da dinâmica natural da vegetação campestre”, afirmou o biólogo. Alguns estudiosos acreditam que sua utilização esteja relacionada à chegada das populações indígenas à região, que o usavam para caça e manejo da terra, juntamente com um clima mais sazonal.
Para Martins, além do fogo e da pastagem, outros fatores que condicionam a composição e as características fisionômicas da vegetação dos campos incluem o tipo de solo, as secas, as geadas, o pisoteio dos campos por animais e as roçadas periódicas. Logo, concluiu o pesquisador, tais perturbações precisam ser levadas em conta ao se propor formas sustentáveis de manejo dos campos da região, já que esses são fatores que impedem a expansão das florestas em áreas campestres. O biólogo destacou, porém, que a má gestão dessas perturbações pode levar à degradação desse ecossistema.
Atualmente o pampa é o segundo bioma mais devastado do país – o mais degradado é a mata atlântica. Seus campos se espalhavam por 176,5 mil quilômetros quadrados (km2), o que corresponde a 63% do território gaúcho e a 2,1% do território brasileiro. Hoje apenas 36% da vegetação original dos pampas se mantém preservada, destacou Ilsi Iob Boldrini.
Segundo a bióloga, por estar restrito ao sul do Rio Grande do Sul, o bioma tem recebido pouca atenção do poder público no que diz respeito à implementação de políticas de conservação ambiental. Em parte, isso se deve ao fato de a região ter sido reconhecida oficialmente no mapa dos biomas brasileiros apenas em 2004, sendo sua diversidade biológica subestimada até então.
“Mesmo abrangendo uma área relativamente pequena, o bioma pampa é bastante heterogêneo; detém uma diversidade fisionômica e de hábitats variada, com campos planos, áreas rupestres e areais, além das áreas baixas, formadas por solos hidromórficos, inundáveis em muitas épocas do ano, e ambientes florestais. Trata-se de um bioma complexo, formado por uma diversidade de fitofisionomias, dentre as quais o campo dominado por gramíneas é o mais representativo”, comentou.
Para a pesquisadora, impressiona também a quantidade de novas espécies identificadas na região nos últimos anos. Mais de 2 mil espécies de plantas foram catalogadas, 990 delas endêmicas dos pampas. “Costuma-se pensar que a vegetação campestre é homogênea, que campo é tudo igual. No entanto, a diversidade de espécies encontradas nesses locais chega a ser três vezes maior que a de áreas florestais”, afirmou Ilsi. As famílias vegetais mais ricas nos pampas são a Asteraceae, com 380 espécies, a Poaceae, com 373, a Leguminosae, com 190, e a Cyperaceae, com 118.
Muitas, porém, estão ameaçadas de extinção, devido à substituição da vegetação original por lavouras de inverno e verão (sobretudo de soja, trigo e arroz), às práticas de silvicultura e ao sobrepastoreio pela pecuária, situação em que a exposição excessiva ao gado impede a recuperação dos campos. “A vocação da região é a pecuária, não a agricultura. Mas quando os rebanhos são mal administrados, também há degradação da vegetação”, destacou.
O estabelecimento de sistemas agrários diversos, e nem sempre sustentáveis, também tem acelerado a alteração da cobertura vegetal original. Em muitas propriedades, a quantidade de animais é, por vezes, muito maior que a capacidade de suporte da vegetação campestre. E na falta de pasto nativo muitos produtores acabam recorrendo ao plantio de espécies exóticas de gramíneas e leguminosas com aplicação de herbicidas, o que contamina o solo e a água subterrênea. Além da superexploração dos campos, a sua substituição por lavouras para a produção de grãos ou a obtenção de celulose está conduzindo à descaracterização da paisagem do bioma.
A aplicação de herbicidas sobre a vegetação original do pampa para introdução de espécies forrageiras, o manejo inadequado dos campos naturais e o uso indiscriminado do fogo também têm contribuído para a destruição desse bioma. E, apesar dos avanços recentes, a região dos campos sul-brasileiros permanece em grande parte insuficientemente conhecida. “Levantamentos florísticos e fitossociológicos ainda são necessários para se obter estimativas mais concretas da riqueza de espécies na região”, concluiu a bióloga.
Mudanças na paisagem
Pouco conhecida também é a fauna de vertebrados do bioma pampa, destacaram os biólogos Eduardo Eizirik e Márcio Borges Martins. Atualmente, a preocupação com a conservação da diversidade da fauna da região tem aumentado devido à forte expansão da monocultura e do cultivo de eucalipto para celulose (silvicultura). “Desde a última década tem havido um forte incentivo por parte do poder público à prática da silvicultura em regiões mais carentes do estado tendo em vista seu desenvolvimento econômico”, disse Martins.
Segundo ele, muitas empresas já compraram vastas extensões de terra para o cultivo de eucalipto destinado à produção de celulose antes mesmo da realização de um zoneamento para identificar em quais áreas se poderia plantar. “A substituição de uma paisagem campestre por uma floresta densa como a de eucaliptos pode gerar diversas complicações para a manutenção da biodiversidade dos campos”, afirma.
Uma delas é o bloqueio do fluxo genético entre espécies. De acordo com Eizirik, as políticas de conservação da diversidade biológica local devem almejar a manutenção dos processos evolutivos naturais. “Populações de uma mesma espécie distribuídas por regiões geográficas distintas podem se tornar geneticamente diferenciadas”, comentou. Segundo o pesquisador, isso pode se dar por diversos fatores, entre eles o isolamento por distância, a própria seleção natural e o surgimento de barreiras que impedem o fluxo gênico. Essas barreiras podem variar de rios e regiões desérticas a florestas densas, como as de eucalipto. “Ignorar tais questões pode levar ao desaparecimento de algumas espécies importantes para a manutenção da biodiversidade local”, explicou Eizirik. Para ele, esse é um problema preocupante, já que o pampa se estende por outros países da América Latina, como a Argentina e o Uruguai. “Por isso é fundamental a realização de estudos filogenéticos e filogeográficos como base para a formulação de políticas de conservação da fauna de vertebrados nos campos sulinos”, afirmou.
Da mesma forma, as redes de unidades de conservação atuais estão muito aquém do ideal. Hoje a região conta com 11 unidades de conservação de proteção integral, entre parques e reservas ambientais, os quais cobrem uma área de 1.130 km2. “Isso corresponde a apenas 0,64% da área dos pampas”, ressaltou Martins. Em 2006, a Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) já havia estabelecido nas Metas Nacionais da Biodiversidade para 2010 o objetivo de proteger 10% dos biomas terrestres em unidades de conservação, com exceção da Amazônia, para a qual o índice é de 30%. Para o biólogo, uma das razões pelas quais os pampas têm sido negligenciados pelas políticas de preservação é o pequeno impacto visual causado pela degradação dos campos. “Quando se perde parte de uma floresta há uma significativa mudança da paisagem. O mesmo não acontece quando se trata dos campos”, comentou.
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Conhecer para melhor usar
Para os pesquisadores, apesar de a interferência humana historicamente fazer parte da manutenção da biodiversidade dos campos sulinos, ainda se está longe de alcançar um nível de compreensão que permita manejá-los de forma sustentável, sem comprometer a dinâmica natural da biodiversidade do bioma e a produtividade econômica da região. É fundamental, ressaltaram, revisar os modelos de gerenciamento dessas unidades de conservação, que impedem o manejo pelo fogo e pelo gado. “Há uma série de estudos que indicam formas sustentáveis de manejo da biodiversidade local que garantem as características dos pampas e o desenvolvimento da pecuária”, afirmou Martins. E completou: “É importante considerar os potenciais da região para outras finalidades, como a produção de energia eólica”.
O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação se estenderá até o mês de novembro e irá tratar dos conceitos, dos desafios e das principais ameaças relacionadas aos seis biomas brasileiros: pampa, pantanal, cerrado, caatinga, mata atlântica e Amazônia, além dos ambientes marinhos e costeiros e da biodiversidade em ambientes antrópicos urbanos e rurais (ver programação aqui). O objetivo é apresentar o estado da arte do conhecimento científico gerado no âmbito do Biota-FAPESP ao longo de seus 13 anos, em linguagem acessível para públicos diversos, de modo a melhorar a qualidade da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio do país.
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