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Entrevista

Ivo Karmann: Uma vida explorando cavernas

Com humor e um forte senso de grupo, pesquisador conta do início e da evolução das investigações científicas nesses ambientes definidos pela ausência de rochas, tornando-o um geólogo do vazio

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Em janeiro de 1975, Ivo Karmann era um adolescente magricela que estudava no colégio Visconde de Porto Seguro, na capital paulista, quando se integrou à equipe de apoio da Operação Tatus, um experimento que pretendia avaliar os efeitos no organismo da ausência de luz solar, em um ambiente subterrâneo. Uma de suas tarefas era transportar os resíduos produzidos pelos 11 voluntários que se dispuseram a passar 15 dias em uma caverna no Vale do Ribeira, no sudeste do estado.

O jovem estudante começou nessa época a participar de expedições para explorar cavernas e não parou mais. Cursou geologia no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), do qual se tornou professor, andou muito por São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Santa Catarina e um pouco no Amazonas. Fez mapas de cavernas ainda desconhecidas (o primeiro quando estava na graduação), sofreu o desdém de colegas que desvalorizavam esse tipo de formação geológica e criou uma disciplina pioneira. Também incentivou o início da pesquisa em climas do passado com base em registros de minerais de cavernas e participou da descoberta de bactérias capazes de corroer rochas carbonáticas em grandes profundidades.

Com o tempo, esse paulistano descendente de alemães que chegaram a Santa Catarina no final de 1700 tornou-se uma das autoridades na pesquisa científica sobre cavernas no Brasil. Casado com uma geóloga, tem um filho arquiteto e completa 68 anos em março. Em entrevista a Pesquisa FAPESP, relatou parte de sua experiência.

Especialidade
Geologia de cavernas
Instituição
Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP)
Formação
Graduação em geologia (1982), mestrado (1987) e doutorado (1994) em geociências pela USP

Quando você entrou numa caverna pela primeira vez?
Eu era adolescente quando vi em um jornal uma reportagem sobre uns franceses que estavam explorando cavernas no Vale do Ribeira. Nessa turma estavam Guy Collet [1929-2004], Pierre Martin [1932-1986], o iugoslavo Peter Slavec e o grupo da Sociedade Brasileira de Espeleologia, a SBE. Esses europeus praticamente fundaram a SBE. Fui à sede, no centro de São Paulo, e disse que queria ir com eles. Me perguntaram: “Mas você já entrou em cavernas?”. Respondi: “Não, nunca, só vi fotos em revista”. Minha família assinava a National Geographic e saía muita coisa sobre cavernas. Na época, a Mammoth Cave, localizada nos Estados Unidos e uma das maiores do mundo, estava sendo explorada. Eu tinha uns 15, 16 anos e eles permitiram que eu fosse, o Guy Collet praticamente me adotou. A primeira viagem foi para Itaoca, no Vale do Ribeira, com foco mais em arqueologia. Era e ainda é um sítio arqueológico superimportante, com sinais de ocupação humana de 10 mil anos comprovados. Achamos vários sepultamentos. Minha primeira caverna mesmo foi a gruta do Sumidouro, em Ribeirão Grande, São Paulo. Outra expedição com o pessoal da SBE foi para Iporanga, também no Vale do Ribeira, um dos municípios com mais cavernas no Brasil: são mais de 300. Nessas viagens conheci um pessoal do grupo de espeleologia do Centro Excursionista Universitário, o CEU, que existe até hoje. Faziam parte o Geraldo Gusso [1953-1993], mais conhecido pelo apelido, Peninha, e o Mauro Stavale, esses sim realmente caverneiros. Com eles, a primeira caverna foi a Gurutuva, também no sul de São Paulo, maravilhosa, com cachoeiras de até 10 metros de altura. Foi quando percebi o que é realmente a exploração, porque com o Collet era mais suave.

Quando decidiu cursar geologia?
Naquela época, nos anos 1970, as cavernas Ouro Grosso, Água Suja e outras do Petar [Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira] estavam sendo descobertas. Iam também estudantes de geologia, e despertei para essa área. Entrei no curso e continuei nas expedições do CEU. Em uma delas, ficamos praticamente um mês acampados no norte de Brasília, na região de Posse e São Domingos, estudando o sistema São Mateus-Imbira, com 20 quilômetros [km] de galerias. Fizemos o primeiro mapa da caverna, saíram várias reportagens. Não tínhamos dinheiro, mas recebíamos muita doação. A Volkswagen e a GM nos emprestavam carros, que praticamente destruíamos naquelas estradas cheias de pedras e buracos.

Conseguiu estudar cavernas durante o curso?
Não havia ainda curso sobre geologia de cavernas. No início foi difícil achar alguém que topasse fazer alguma pesquisa científica com o tema carste [tipo de relevo] e cavernas. Quem nos incentivou bastante foi Aziz Ab’Saber [1924–2012], da geografia. Passávamos horas conversando na sala dele. Ainda lembro do que ele recomendava: “Quer entender uma caverna? Então, saia dela, olhe o que existe ao redor, entenda o sistema”. Essa abordagem foi muito importante, hoje se fala em sistema cárstico, que inclui a condução de água e materiais, porque uma parte do que entra sai, mas a outra fica retida. O pessoal da geologia era mais tradicional. Diziam: “Esse aí mexe com caverna, vai pra geografia, não é geólogo”. Mas sempre fui meio independente e cabeça-dura. Fiz um plano de pesquisa para pedir uma bolsa de iniciação científica na FAPESP e apresentei ao Thomas Fairchild, professor da geologia, que sempre foi muito aberto para novas ideias. Ele leu e disse: “Olha, nunca entrei em uma caverna, mas achei a proposta muito interessante e vou te orientar”. O projeto era uma novidade, uma iniciação científica em grupo. Um orientador e seis alunos, todos com bolsa.

Por que seis?
Porque trabalho em caverna não se faz sozinho. Você precisa de no mínimo três para fazer o mapa. Um era o chamado ponta de trena, outro fica na base e o terceiro na caderneta, fazendo o croqui. Um é da geologia, outro mexe mais com relevo. Temos também de entender o exterior da caverna, fazer fotointerpretação. E assim fizemos uma pesquisa geológica sobre a caverna dos Ecos, em Corumbá de Goiás, a 60 km a oeste de Brasília. Os calcários não chegam à superfície, não afloram, e há um grande lago subterrâneo. Fizemos um mapa geológico mostrando essas coisas, que eram novidades. Nessa época não havia ainda nenhum outro grupo de pesquisa, só de espeleologia, de exploradores. A Sociedade Excursionista Espeleológica de Ouro Preto, uma das mais antigas, atuava mais em Minas Gerais, um paraíso dos calcários e de cavernas. Havia lá um professor que estava começando um trabalho mais científico, o Victor Dequech [1916-2011], da Universidade Federal de Ouro Preto.

Vimos como se formam as cavernas, com dissolução e corrosão em profundidade, abrindo vazios na rocha solúvel

O que vocês queriam ver na caverna dos Ecos?
Já tínhamos explorado cavernas enormes de calcários no norte de Brasília, na região de Posse e São Domingos. Estava começando o trabalho na caverna dos Ecos. É enorme, não em quilometragem, mas em dimensão, em volume, e não se desenvolve somente em calcários. Vimos que havia algo diferente. Para entrar, tem um desnível de uns 60 metros e no fundo, já junto do lago, descobrimos rocha não carbonática (micaxistos e quartzitos) sobreposta à carbonática. Vimos então como se formam as cavernas, com uma ação de dissolução e corrosão em grande profundidade, abrindo vazios na rocha solúvel e assim se conectando com a superfície. Na época, poucas ocorrências do tipo estavam descritas. Anos depois, publicamos essa descoberta na Journal of Cave and Karst Studies e virou uma referência do carste interestratal, onde há sobreposição de rochas insolúveis com um carste subterrâneo, que, por processos de abatimento e erosão, conecta a porosidade à superfície e abre um acesso.

Podemos usar caverna como sinônimo de carste?
Não. O carste é mais um tipo de relevo com predomínio de rochas solúveis. A superfície é modelada por dissolução química, gerando as cavidades. Ou seja, o carste é onde surgem as cavernas. O sistema cárstico inclui as estruturas de circulação da água subterrânea, com entradas, nascentes, sumidouros e saídas. A água que alimenta esse sistema vem da chuva e principalmente da bacia de captação, dos rios. Por isso, precisamos também mapear as rotas de fluxo, os condutos, como se fosse um encanamento, dentro da rocha.

Quem eram seus companheiros nessa época?
Luís Sánchez, o Luizão, que está na Poli [Escola Politécnica da USP], Peter Milko, Antônio Montanheiro, que acabou a geologia, se mudou para Pernambuco e resolveu fazer medicina, e um espanhol, Juan Carlos, mergulhador, porque tinha um lago na caverna dos Ecos e ninguém sabia como explorar.

Pelo jeito, sua graduação foi bastante animada.
Sim. E ainda dávamos palestras nas escolas de geologia, em Rio Claro [SP], Ouro Preto [MG], Brasília, aproveitando as viagens de exploração que fazíamos. Queríamos incentivar os futuros geólogos a conhecer as cavernas e a fazer mapeamentos geológicos, que ainda não tínhamos. O pessoal se interessava muito. Perguntavam por que as cavernas eram importantes, diziam que eram um vazio, não tinha nada lá. Por isso, com o tempo, comecei a dizer que sou um geólogo do nada. Tenho de explicar a ausência de rocha, não ela em si. Uma vez, na UnB [Universidade de Brasília], a Mylène Berbert, que hoje faz trabalhos de espeleologia no Serviço Geológico do Brasil, perguntou: “Como é que nós vamos estudar as cavernas? Onde estão as cavernas no Brasil? E como são?”. Luizão e eu procuramos o Aziz, e a proposta foi dele: “Por que vocês não fazem um levantamento de onde ocorrem rochas favoráveis para desenvolvimento de cavernas e carste?”. Pegamos os mapas do DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral] e da SBE, na época era tudo meio feito à mão, e fizemos o primeiro mapa sobre as áreas de ocorrência de regiões carbonáticas e de cavernas. Terminamos em 1979, estávamos ainda na graduação, publicamos na revista Espeleotema, da SBE. Mapeamos cerca de 500 cavernas, hoje estamos em 23 mil, no cadastro do Cecav [Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas] do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade]. O número cresceu muito porque inclui as de formação ferrífera, que são muitas, mas pequenas.

Valdir Felipe Novello / USPNa caverna do Diabo, em 2012: Veronica Ruiz, Bruna Cordeiro, Paul Williams, Bruno Lenhare, Karmann e William Sallun FilhoValdir Felipe Novello / USP

Como foi a receptividade desse mapeamento?
Esse trabalho das províncias espeleológicas teve um impacto grande, principalmente na ideia de regionalização do tipo e tamanho de cavernas, associados aos diferentes tipos de rochas. Começamos a mostrar resultados, ganhamos credibilidade e o apoio de outros professores do IGc, como Aldo Rebouças [1937-2011], Oscar Rösler e Roland Trompette, que foi meu orientador e sempre frequentou o instituto. Ainda no mestrado apresentei a proposta de uma disciplina de espeleologia. Tentei várias vezes, até que o conselho do departamento deixou passar, como optativa. E como espeleologia não é só geologia, mas inclui também ambiente, biologia, arqueologia, convidei Eleonora Trajano, do Instituto de Biociências, que também trabalhava com cavernas. Já a conhecia desde antes da graduação, porque ela também frequentava o CEU. Participamos juntos, em janeiro e fevereiro de 1975, da operação Tatus.

O que foi a operação Tatus?
Foi uma experiência de permanência em uma caverna. Participei da equipe externa, de apoio. Queríamos saber como seria viver em um ambiente subterrâneo. Na época era uma novidade, para entender como a luz solar influencia o ciclo de vigília e sono. Havia umas experiências sendo feitas na França e o pessoal do CEU resolveu fazer aqui também, com 11 pessoas na caverna de Santana, em Iporanga, no Petar, durante 15 dias. Ficavam no salão São Paulo, que é bem grande, apenas com luz artificial, principalmente carbureto, alguns lampiões a gás e fogareiro para preparar comida, além de coleta de resíduos. A comunicação por telefone era só de dentro para fora e não de fora para dentro, para ninguém saber o que acontecia externamente. Anotávamos o que faziam, quando dormiam. Alguns dormiam mais, outros menos. Vimos que os períodos de sono e vigília se estendiam por 73 horas, com quase 30 de sono ou de repouso e mais umas 30 e tantas horas de atividade. Quando passaram os 15 dias, o pessoal que ficou lá dentro achou que estava ainda no sétimo ou oitavo dia. Tinha perdido a noção do tempo.

E a disciplina, como foi?
Começou como uma novidade, com alunos da geologia, biologia, geografia, porque oferecia vagas para outras unidades e até para o público geral. Havia também as atividades de campo, então a Eleonora, como bióloga, mostrava o que às vezes nem percebemos, como o bagre-cego e outros animais adaptados à vida nas cavernas (ver Pesquisa FAPESP no 224). Depois mudei o enfoque e o nome para geologia de terrenos cársticos, com ênfase geológica, mas também com vagas para alunos de outras unidades. O curso continua em pé, sempre com muita procura. Até hoje eu participo, agora como professor sênior. Todo ano, em outubro, vamos às cavernas de Iporanga.

Como surgiu a ideia de que as cavernas poderiam guardar registros do clima do passado?
Em 1982, vi em uma revista alemã que eu assinava, Bild der Wissenschaft [Imagem da Ciência], um artigo de Wolfgang Dreybrodt, da Universidade de Bremen. Foi um dos primeiros trabalhos sobre paleoclima [climas do passado] em espeleotemas [estruturas formadas pela circulação de água nas rochas das cavernas, como as estalactites e as estalagmites]. Era uma supernovidade, mas havia dificuldade para datar o material. Ainda não estava desenvolvido o método que usamos atualmente, com urânio-tório. Dreybrodt tentou datar com carbono 14, deu vários erros, mas lançou a ideia. Você vê uma estalagmite crescendo aos poucos, observa o gotejamento e pensa: por que para de gotejar? Porque não chove, não tem recarga. Você vê a estrutura interna de uma estalagmite, é uma bacia sedimentar, com camadas e variação de cor e espessura. A composição também varia, pode ser calcita, aragonita, tanta coisa. Por que isso? Quem controla a formação e o crescimento dos espeleotemas é o ambiente que circunda a caverna. Os espeleotemas registram processos de sedimentação, que é a precipitação química de minerais, como calcita. No salão Taqueupa, na caverna Santana, formam canudos de 2, 3 metros, com estratigrafias [distribuição de camadas] bem distintas.

Com o tempo, comecei a dizer que sou um geólogo do nada. Preciso explicar a ausência de rocha, não a rocha em si

Como resolveu?
Só decolamos quando o geólogo Chico Bill [Francisco Cruz] entrou na minha sala, vindo do Rio Grande do Norte, e declarou: “Quero trabalhar com grandes cavernas”. Opa, pesquei mais um. As grandes cavernas conhecidas na época estavam na região de Iraquara, na Chapada Diamantina, Bahia. Eu já tinha feito parte do doutorado no Canadá com Derek Ford, um marco na geoespeleologia, e aprendi a usar isótopos [variação do mesmo elemento químico] para datação. Propus ao Chico Bill: “Vamos entrar de cabeça com registros climáticos em espeleotemas. Essa área vai explodir”. Montamos um plano de pesquisa e fomos atrás de um espeleotema que pudesse ter registros climáticos. É importante alertar que não se pode tirar qualquer coisa de cavernas, porque é um ambiente protegido por lei – sempre carregamos a autorização do ICMBio para pesquisa e coleta. Quem nos ajudou muito foi uma colega do instituto, Marly Babinski, que conhecia o pessoal da geocronologia de rochas. Ela falou com o Warren Sharp, na época na Universidade de Minnesota [atualmente na Universidade da Califórnia em Berkeley, também nos Estados Unidos], que trabalhava com datação usando urânio e tório, exatamente o que queríamos. Fizemos contato, Chico Bill foi para lá e conseguimos fazer as datações. As proporções de isótopos de oxigênio e carbono medimos com o pessoal do Cena [Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da USP], em Piracicaba. E fizemos nossa primeira curva de variação de isótopos, indicando a variação do clima, com espeleotemas da caverna de Botuverá, no leste de Santa Catarina, e de Santana, no sudeste de São Paulo. Uma curva linda, mostrando também o ciclo solar e a variação da insolação (ver Pesquisa FAPESP no 111). Foi um dos trabalhos mais importantes de que participei. Gostei muito de ver como a chuva modifica o gotejamento dentro das cavernas e como o sistema cárstico funciona. Para mim, o trabalho de campo é a parte mais emocionante da pesquisa.

Você também pesquisou o papel da atividade microbiana na formação de cavernas, não?
Na época da caverna dos Ecos já tínhamos essa pergunta: o que dissolve a rocha em profundidade, se o ácido carbônico não chega lá? Deve haver outro agente corrosivo ou outro mecanismo de produção de algum ácido que não vem com a água de infiltração. Se cogitava a ação bacteriana, que poderia transformar o sulfeto em algum ácido. A rocha calcária não tem enxofre, que faz parte do sulfeto. Resolvemos caçar esses bichos. Conseguimos avançar, em parte com o doutorado do químico Murilo Andrade Valle, já em 2010. Procurei o pessoal da microbiologia. Com Vivian Pellizari, que está agora no IO [Instituto Oceanográfico da USP], investigamos a microbiologia da água subterrânea e, em 2024, na pesquisa de mestrado do geólogo Tom Dias Morita, conseguimos, em parte, traçar o genoma da bactéria que age em profundidade nas cavernas do grupo Una, na região da Chapada Diamantina, em Iraquara, na Bahia. São bactérias anaeróbicas [não utilizam o oxigênio como fonte de energia], que chamamos de sulfo-oxidantes e sulforredutoras. Elas obtêm energia digerindo minerais com enxofre, como a pirita e a galena, que são sulfetos de ferro e chumbo. O enxofre do ácido sulfúrico que vai corroer a rocha vem da decomposição desses sulfetos.

Quantas cavernas você descobriu?
Não falamos assim, porque o trabalho é sempre em grupo. As descobertas mais importantes das quais participei foram com o pessoal do CEU, das cavernas de Goiás, norte de Brasília, na região de Posse, a São Mateus, a Imbira e a Terra Ronca. O povo da região já conhecia. A São Mateus tinha uma dolina, um afundamento de terreno, e nos levaram até lá. Disseram: “Aqui tem um buraco para cá e outro para lá”. A dolina no meio. Descemos, era um ambiente grande. Pérolas [formações calcárias arredondadas no solo das cavernas] gigantes, estalagmites com 8, 10 metros de altura. Exploramos o Vale do Ribeira – as novidades ali eram as cavernas com desenvolvimento mais vertical, que chamamos de abismo. Descemos com corda e escadinha de cabo de aço. Participei da descoberta do abismo Ponta de Flecha, também em Iporanga, com restos de ossadas da megafauna pleistocênica. Fizemos um trabalho de escavação paleontológica por volta de 1980, com apoio de Oscar Rösler. A equipe era Clayton Lino [espeleólogo e arquiteto], Eleonora Trajano, que era aluna do zoólogo Paulo Vanzolini [1924-2013], outro padrinho que tivemos, e os arqueólogos Erika Robrahn e Paulo de Blasis, do MAE. Encontramos uma ponta de flecha de sílex em um conduto bem pequeno, ao lado de um dente grande de toxodonte, um bichão da megafauna. Já tínhamos visto ossadas de animais com alguns cortes, indicando que o pessoal tirava carne dos ossos.

Lembra-se de algum momento de exultação?
Até hoje, o mais doido foi em São Mateus de Imbira, em Goiás, faz muito tempo. Foi o maior desbunde, um lugar cheio de coisas que você não sabe nem para onde olhar primeiro. Um show de espeleotemas, com formações minerais de aragonita de tudo quanto é tamanho, helictites [espeleotemas em forma de leque, saindo do teto ou das paredes] crescendo, aquele chão de estrelas. E o rio subterrâneo, uma represa de travertinos [barreiras de calcita ou outros minerais] gigantes… Um negócio de outro mundo. Depois, na gruta da Torrinha, a Lapa Doce, lá na Chapada Diamantina, vendo coisas que nunca imaginava. Você fica meio tonto com tanta beleza.

Aziz Ab’Saber recomendava: ‘Quer entender uma caverna? Saia dela, olhe o que existe ao redor, entenda o sistema’

Já se perdeu?
Perdido, não, mas passei vários momentos de me perguntar: “Opa, onde estou? Como é que volta?”. Uma vez, acabou a luz. Usávamos um capacete com uma chama e lanternas com lâmpadas incandescentes. Cada integrante da equipe carregava na cintura um cilindro com dois compartimentos, um com pedras de carbureto e outro com água que pingava sobre ele. Quando o carbureto reagia com a água, soltava acetileno que ia por um caninho até o capacete e abastecia a chama. Não se usava ainda as lâmpadas de LED superpotentes de hoje, que basta uma para iluminar um salão enorme com facilidade. A chama apagou e o meu isqueiro estava molhado. Era na caverna de Santana. Ficamos uma, duas horas esperando, até que apareceu alguém com fogo. Outra vez, em 1990 ou 1991, numa pesquisa sobre a química da dissolução do quartzito na gruta do Lapão, em Lençóis, na Bahia, um bloco de rocha rodou e prendeu minha perna. Eu estava com um colega, que correu em busca de socorro. Depois de umas duas horas, veio um pessoal. Eles queriam rodar a pedra. Eu falei: “Não, pode parar, não vai rodar a rocha não, que vai esmagar minha perna! Pega meu martelo e a talhadeira e corta, para liberar”. Consegui sair só com uns arranhões profundos.

Você tem zero de claustrofobia, não?
É quase zero, porque passagem muito estreita me deixa nervoso, evito. Tem uns caverneiros que parecem minhocas. Se passam e dizem que pode ir, aí vou. Várias vezes já disse: “Daqui eu não passo, não vou”. A gente fazia muita coisa doida, sem equipamento, sem corda boa. Descíamos e subíamos o abismo do Fóssil, que são 40 metros na vertical, como um prédio de 12 andares, com escadinha de cabo de aço. Treinávamos com a escadinha no poço de um dos prédios do Crusp [residência estudantil da USP]. No abismo do fóssil eu descia de escadinha, mas o Peninha ia de rapel, pulando na corda, depois subia. Uma hora ele estava entrando para pular, eu olhei e avisei: “A corda está corroída pela metade. Pode parar, e volta devagarzinho”. Seria uma queda vertical de 40 metros. Hoje a segurança é muito maior.

Quais são as regras básicas da exploração desses lugares?
A primeira, nunca entrar sozinho. Ter um grupo, três é o ideal, incluindo gente mais experiente. A segunda, conhecer a região. O pessoal que entra em caverna tem muito medo de cobra. Não tenho – mas tenho de abelha. Entradas rochosas, como as do Piauí, normalmente têm cachos de abelha. É bom ter um apoio de pessoas locais que vão falar dos eventuais perigos. Outra: levar iluminação de reserva. O iniciante se empolga, vai entrando e se tiver só uma lanterna pode ter dificuldade para voltar. Outra: avisar as pessoas de fora que está entrando. De resto, é bom ter um pouco de coragem, entrar com cautela, ser cuidadoso com espeleotemas frágeis, respeitar o lugar e deliciar-se com as maravilhas que vai encontrar.

Você ainda vai a cavernas?
Sim. Estamos planejando o monitoramento das águas na gruta da Tapagem [nome oficial da caverna do Diabo, em Eldorado, Vale do Ribeira], com colegas do IGc: Nicolas Stricks, Chico Bill e alunos. Essa caverna é uma coisa sensacional, do ponto de vista cênico e geológico. E tem algumas questões científicas interessantes, que ninguém explicou ainda muito bem.

A entrevista acima foi publicada com o título “Ivo Karmann: O geólogo do vazio” na edição impressa nº 349 de fevereiro de 2025.

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