A habilidade de gerir grupos e identificar o cerne dos problemas colocou o imunologista Jorge Kalil à frente de duas grandes instituições: o Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP), principal centro de pesquisa, ensino e assistência em cardiologia no país, e o Instituto Butantan, o maior produtor nacional de soros e vacinas.
Indicado presidente do conselho diretor do InCor e depois da entidade que o gere, a Fundação Zerbini, Kalil coordenou a equipe que equacionou os problemas financeiros da instituição. No Butantan, coordenou a atualização dos protocolos de produção de soros, a modernização das fábricas e acelerou o desenvolvimento de novas vacinas, como a da dengue.
Sem receio de expressar suas opiniões, Kalil critica os entraves burocráticos à pesquisa. Seu trabalho como pesquisador contribuiu para reduzir a rejeição em transplantes, identificar as causas da doença reumática cardíaca e criar uma vacina contra o problema.
Natural de Porto Alegre, é casado há 38 anos com Liana, com quem tem dois filhos – Emmanuelle, formada em administração, e Fernando, engenheiro que atua no mercado financeiro. Ele sonha em criar no Butantan um centro para o desenvolvimento de compostos com o potencial de se tornarem medicamentos. Leia a seguir a entrevista que concedeu em novembro à Pesquisa FAPESP.
Idade |
62 anos |
Especialidade |
Imunologia |
Formação |
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (graduação), Universidade Paris VII (especialização, mestrado e doutorado) |
Instituição |
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Instituto do Coração Instituto Butantan |
Produção científica |
522 artigos publicados em revistas científicas e 5.600 citações; orientou 14 dissertações de mestrado e 19 teses de doutorado |
Sua fama é de bom gestor e administrador. O senhor tem um talento para resolver encrencas?
Acho que sim. Apesar de ter feito carreira como cientista, desde a juventude alguns amigos diziam que eu tinha de ser administrador ou empresário. Depois de me formar em medicina e iniciar a residência em clínica médica, fui para a França como estagiário em 1978. Dois anos depois, quando eu mal tinha terminado o mestrado, meu orientador e chefe do laboratório, Marc Fellous, foi para Israel fazer um sabático e me deixou chefiando o grupo. Quando ele voltou, foi para o Instituto Pasteur e continuei como chefe de laboratório no Hospital Saint Louis. Fiz meu doutorado quando já dirigia o laboratório. Fellous me ajudava e levei o laboratório. Tanto que, quando o professor Jean Dausset, meu orientador no doutorado, ganhou o Nobel de Medicina, me convidou para ficar definitivamente. Na época, eu tinha de 27 para 28 anos. Pensei na possibilidade, conversei muito com minha mulher, que não queria mais ficar lá, e com Fellous, que disse: “Vá para o Brasil, que lá você pode fazer a diferença”. Assumi isso como missão e vim.
Veio para São Paulo?
Não, voltei para o Rio Grande do Sul em 1983, onde fiquei um ano e pouco até os professores Fulvio Pillegi e Adib Jatene me chamarem para trabalhar no InCor. Eu tinha 30 anos e vim montar e dirigir um labo-ratório de pesquisa, primeiro instalado na Faculdade de Medicina da USP e depois no InCor. Ali eu também tinha de gerir pessoas, administrar, ser pesquisador e buscar dinheiro. Criei a Associa-ção Brasileira de Transplante de Órgãos, a ABTO, e fui seu primeiro presidente aos 32 anos. Em 1991, quando saí para um sabático na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, também me colocaram como chefe do laboratório.
Já na chegada?
Fui como professor-assistente visitante e me colocaram como chefe de laboratório de uma pessoa muito carismática, a Rose Payne, que havia concorrido com Dausset ao Nobel. Ela estava saindo e assumi o Laboratório de Tipagem de Tecidos por um ano. Nunca estudei formalmente administração, mas sempre fui curioso, conversava com amigos empresários e, lendo, aprendia técnicas e conceitos. Depois de um mês em Stanford, fiquei apavorado porque tinha perdido dinheiro segundo um relatório financeiro que recebi. Era um laboratório de pesquisa e prestação de serviços em imunologia de transplante e tínhamos feito muitos exames. Pensei que tivéssemos ganhado bastante dinheiro. Mas o aluguel da área era altíssimo, porque, mesmo sendo da universidade, ficava no lugar mais nobre de Palo Alto. Foi uma lição de gestão. Apesar disso, acho que fui bem. Queriam que eu continuasse administrando o laboratório, fazendo ciência e com uma posição definitiva de professor na universidade. Mas, de novo, com a ideia de ajudar a desenvolver o país, voltei.
Se arrepende de ter retornado?
Não acho que tenha feito escolhas erradas. Talvez lá eu tivesse feito contribuições científicas e tecnológicas mais importantes. Mas acreditei que aqui eu ajudaria mais o país. Isso tudo para dizer que sempre estive envolvido com ciência, administração e uma vontade grande de ensinar e formar grupos. Quem trabalha comigo não quer sair.
Como consegue manter as pessoas?
Valorizo quem trabalha comigo. Quando voltei dos Estados Unidos, por uma época achei que tinha de ganhar mais dinheiro e trabalhei no Hospital Sírio-Libanês. Em 1995 organizei o laboratório de análises clínicas do hospital. Fiquei 10 anos lá. O laboratório passou de deficitário a lucrativo. Como o meu pagamento dependia do resultado operacional, surgiu a cobiça. Achei que a fase tinha passado e voltei para a USP. Então houve uma crise grande no InCor.
A crise da Fundação Zerbini?
Primeiro foi no InCor, e me chamaram para presidir o instituto. Quando vi que o problema não era no InCor, mas em uma área da Fundação Zerbini, assumi também a presidência da fundação. Consegui acertar o passo do InCor e, depois de dois anos, saí da presidência do instituto, embora ainda presida o conselho da fundação. Ainda estamos pagando algumas dívidas. Mas a fundação equacionou o problema e recuperou a credibilidade ao retomar sua função primordial, que é dar apoio às atividades do InCor. Hoje ela tem sanidade e legitimidade. É respeitada novamente.
Os problemas surgiram na época da construção do prédio novo do InCor?
Houve a questão da construção do prédio novo, mas também teve o InCor de Brasília e a má aplicação de recursos. A fundação estava endividada. O pagamento da operação era feito por meio de empréstimos, comprometendo o patrimônio. Na época, a dívida era superior a US$ 150 milhões. Trabalhamos e equacionamos. Quando as coisas estabilizaram, o Giovanni Cerri assumiu a Secretaria de Estado da Saúde e me pediu para vir para o Butantan, que estava com problemas. Tinha havido o desfalque na Fundação Butantan e o incêndio no prédio das coleções. Além disso, existia um descontentamento geral de quem trabalhava no instituto. Havia uma ruptura grande entre o instituto e a fundação, embora a fundação existisse para auxiliar o instituto. Depois de um ano e meio trabalhando com o José da Silva Guedes, presidente da fundação, conversamos e ele entendeu que tínhamos de unificar a direção de ambos por questão de governança corporativa. Contratei uma consultoria da Fundação Getulio Vargas, que me ajudou a estruturar um sistema de governança que apliquei quando o Guedes achou melhor eu assumir as duas direções.
Da fundação e do instituto?
Exato. Levei isso até outubro de 2015, quando o secretário estadual da Saúde, David Uip, entendeu que já era tempo de dissociar de novo. Hoje sou presidente do conselho da fundação e o André Franco Montoro Filho, que trabalha próximo a mim, é o diretor-presidente da fundação. É importante que não haja dissociação entre as atividades da fundação e as do instituto. Foi o que aconteceu no InCor e aqui quando ocorreram os problemas de gestão e de administração.
O que havia mudado antes das crises?
No caso da Fundação Zerbini, primeiro se criou o InCor-Brasília. O InCor é uma instituição do estado de São Paulo, com atuação aqui, ligado à Faculdade de Medicina da USP. E a Fundação Zerbini havia criado um hospital independente em Brasília. Além disso, só para citar um exemplo, a fundação pensava em atuar em coleta de lixo no Nordeste. Começou a se envolver em negócios que nada tinham a ver com sua atividade-fim, que é dar apoio ao InCor.
Como vocês resolveram a questão?
Saneamos, cortamos projetos que a fundação não tinha competência para tocar e a trouxemos de volta para sua função.
E qual era a situação no Butantan?
Quando cheguei, estávamos com as fábricas de vacinas e soros paradas. Elas eram o estado da arte quando foram criadas. Mas envelheceram e não atendiam mais às exigências atuais da Anvisa. Os registros estavam vencendo e passariam por inspeções sérias. Um dos problemas era a qualidade da água, que não atendia às condições exigidas pela Anvisa para as unidades de produção. Também havia problema com as zonas limpas dessas unidades, que exigem aparelhos de ar-condicionado com diferentes filtros, e com o fluxo de material, porque o limpo não pode cruzar com o sujo. Mas o maior problema talvez fosse a fábrica da vacina da influenza [gripe]. Em 1999 o Butantan assinou com a empresa farmacêutica francesa Sanofi um acordo de transferência tecnológica, do qual participei por trabalhar com Jatene no Ministério da Saúde. A transferência tecnológica havia ocorrido, mas a vacina não era operante. Em 2011 fizemos os primeiros lotes, mas a Anvisa não deixou repassar para o ministério.
Por causa da qualidade da água?
Não. Àquela altura, já tínhamos resolvido os problemas. Tínhamos a licença da Anvisa para preparar a formulação da vacina da influenza, fracioná-la e colocá-la em ampolas. Em 2011, consegui fazer a Anvisa aprovar a produção dos vírus em ovos, aqui. Se tenho a produção do vírus, a próxima etapa é formular e envasar. Produzimos o vírus, formulamos e envasamos. Mas a Anvisa disse que o produto não podia ser vendido ao ministério, porque não tínhamos licença para fazer a linha toda. Era considerado um produto novo e era preciso registrar de outra forma. É burocracia, tive brigas enormes. A Anvisa exigiu mudanças na área de formulação e envase e, em 2012, já tínhamos feito. Em 2013 entregamos os 7 milhões de doses. De 2013 para 2014, era preciso fazer a segunda etapa das mudanças. Novamente a Anvisa disse que não terminaríamos a tempo e os secretários do ministério me obrigaram a comprar 10 milhões de doses da Sanofi. Produzimos os 20 milhões que eu disse que produziríamos, mas eles compraram só 10 milhões. Depois, me preparei e entregamos 34 milhões em 2015.
É o suficiente para o país?
O Brasil usa 54 milhões de doses e imuniza um quarto da população. Quando começou, só imunizava idosos, crianças e profissionais da saúde. Por isso a fábrica foi concebida no início dos anos 2000 para produzir 20 milhões de doses. O restante é fornecido por empresas de fora do país. Nós ajudamos a importar.
E o problema com os soros?
Quando cheguei os soros eram produzidos com dificuldade. Os protocolos de imunização têm mais de 100 anos e o nível de anticorpos produzidos pelos cavalos contra difteria e tétano não era suficientemente elevado. No produto final não havia problema, porque controlamos a qualidade. Revimos os processos e melhoramos a imunização dos animais. Na época a Anvisa falou que os três produtores nacionais de soros não tinham condições de seguir produzindo e precisavam fazer reformas. Em 2014 e 2015 reformamos nossa fábrica. Duplicamos a capacidade de produção e estamos no processo de validação.
No InCor, estamos pagando as dívidas, e a Fundação Zerbini recuperou a credibilidade
Quando inicia a produção? Farão os 12 soros antes produzidos pelo Butantan?
A ideia é começar a produzir neste início de ano. Alguns dos soros só nós fazemos. Durante a reforma, organizamos uma produção compartilhada com o Instituto Vital Brazil, no Rio, e a Fundação Ezequiel Dias, a Funed, em Minas. Pegávamos o plasma dos cavalos do Butantan e preparávamos os soros na Funed.
Quanto se gastou nessas reformas e readequações?
Em 2014 e 2015 investimos R$ 300 milhões da Fundação Butantan para renovar essas fábricas. Ainda precisamos renovar as instalações da que faz a vacina contra tétano, difteria e pertússis, a DTP, e da fábrica da vacina contra a hepatite B. Mas estamos sem recursos. O Butantan é uma instituição pública e as margens de lucro são pequenas. A vacina que entregamos para o ministério a R$ 9 é vendida pelas empresas privadas às clínicas de imunização a R$ 100 ou R$ 120. Vendemos a preço de produção. É nossa missão.
Como anda a vacina da dengue?
O projeto de desenvolvimento da vacina da dengue estava devagar e aceleramos muito. Ele começou em 2008 no âmbito de um projeto Pite [Programa Pesquisa em Parceria para a Inovação Tecnológica], da FAPESP, em parceria com o CNPq. Terminamos os testes clínicos de fase 2 com excelentes resultados. A produção de anticorpos neutralizantes aproximou-se de 90% para os quatro sorotipos da dengue. Estamos prontos para a fase 3.
Quem vai receber a vacina nessa fase?
Na fase 2, foram 300 pessoas. Na fase 3, serão 17 mil. Doze mil receberão a vacina e 5 mil, placebo. Ela será testada em 14 centros no Brasil selecionados de acordo com a incidência da dengue e dos diferentes sorotipos do vírus. A vacina está pronta. Foi aprovada pelo conselho de ética e pesquisa da FM-USP, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, e também pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, porque trabalhamos com vírus recombinante. A última série de perguntas feita pela Anvisa já foi respondida. Estamos esperando a licença para iniciar o estudo. [Em dezembro a Anvisa aprovou a fase 3 e o Butantan, seguindo novas exigências de fabricação da agência, iniciou a produção dos lotes para os testes. A imunização deve começar em fevereiro, embora falte parte dos recursos para o ensaio clínico.]
Nossa vacina da dengue gerou altos níveis de anticorpos contra os quatro sorotipos do vírus
Essa vacina foi desenvolvida junto com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, os NIH, certo?
Os NIH fizeram as deleções que deram origem ao vírus atenuado. Eles escolheram o vírus e fizeram uma formulação líquida congelada, impossível de usar em países como o Brasil e a Índia. No Butantan, trabalhamos no desenvolvimento industrial. Desenvolvemos estratégias para cultivar a célula em que o vírus é inoculado e obter grande rendimento e também métodos para purificar, liofilizar e torná-lo mais estável após a reconstituição. Fizemos isso e comparamos com a vacina dos NIH. Temos uma vacina nova, que deu origem a outra patente. Nosso produto é diferente.
Já compararam com a dos NIH? O que mostram os testes?
Comparamos com a dos NIH e tem o mesmo grau de imunização. No estudo de fase 2, testamos a vacina em indiví-duos que haviam tido contato com a dengue e em indivíduos sem contato com o vírus. No meu laboratório com o Esper Kallas, na USP, analisamos a produção de anticorpos e a resposta celular. Em geral, ninguém estuda essa segunda parte. Todos avaliam o nível de anticorpos, que são produzidos pelos linfócitos B. Mas, para fazer anticorpos, os linfócitos B precisam interagir com outro tipo de célula, os linfócitos T helper ou auxiliadores. Fizemos um estudo inédito, com resultados excepcionais, que explica por que a nossa vacina funciona bem e as outras, feitas a partir do esqueleto do vírus da febre amarela e parte do vírus da dengue, não oferecem proteção tão boa. Quando cheguei, esse projeto estava mortinho e hoje é o principal da casa. Há farmacêuticas nacionais e internacionais interessadas.
Qual a capacidade de produção da vacina da dengue no Butantan?
Estamos discutindo porque ainda não temos a fábrica final. Temos um projeto que, otimizado, permitirá produzir vírus para 100 milhões de doses por ano. Mas não temos como liofilizar e formular tudo isso. Precisaremos de mais investimentos ou teremos de comprar esse serviço. Antes, vamos construir uma fábrica cujo projeto está pronto. O tempo de construção é de pouco mais de um ano.
Vai depender do resultado da fase 3?
A Sanofi construiu a fábrica da vacina da dengue quando terminou a fase 2. As empresas competitivas internacionais têm a noção do risco, coisa que não temos no Brasil. Aqui se faz a fábrica depois de ter a encomenda do governo. Idealmente é preciso construir a fábrica sem a fase 3. Se esperarmos a conclusão dos ensaios clínicos, a chegada da vacina ao mercado será retardada em dois anos. Mas não temos recursos para isso.
Quanto seria necessário para construir essa fábrica?
Para realizar a fase 3 e construir a fábrica, precisaremos de US$ 100 milhões. Só na fase 3 a Sanofi gastou € 300 milhões e € 1,5 bilhão em todo o projeto. Creio que o que já gastamos não chegue a US$ 10 milhões, obtidos com o apoio do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], que, ao lado da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos], é uma das instituições a serem preservadas no país.
Qual a situação do Butantan hoje?
Há dois problemas financeiros. Em 2014 o governo federal e o Poder Judiciário disseram que havia uma resolução definindo que o governo não pode fazer contrato com fundações. Os contratos de compra do governo tinham de ser feitos com a instituição pública, que, no nosso caso, é a Secretaria de Estado da Saúde. Com isso, deixamos de receber dinheiro. Quando o governo de São Paulo fatura e recebe o recurso, tem de abater a dívida federal e repassa 13% para esse fim, mais 1,5% para o pagamento de precatórios e 1% de Pasep [Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público]. A Fundação Butantan não tem lucro para pagar isso. Em 2014, retiveram 15,5%. Além disso, o repasse do dinheiro leva um tempo. Temos R$ 300 milhões zanzando por aí, do total de R$ 1,2 bilhão que vamos faturar em 2015 com a venda de soros e vacinas. O segundo problema é que em 2014 tivemos de assinar contratos no exterior de compras de vacinas que são repassadas para o Ministério da Saúde e isso nos onerou. Eu não queria assinar porque o dólar começou a variar. Mas não houve jeito. O Butantan compra em dólar ou euro e o governo não quer repassar a diferença de custo que houve com a desvalorização do real. Por essas questões, o Butantan está com problemas para pagar os seus fornecedores.
De onde vem a verba da fundação?
De uma margem da venda de vacinas para o governo. Gostaria de que tivéssemos também dinheiro de royalties.
Há interesse em transferir tecnologia para empresas?
Se o Butantan ganhar por isso, sim. São 3 bilhões de pessoas vivendo em áreas de risco para a dengue. O Butantan não consegue produzir para todo mundo, nem tem canais de distribuição. Se conseguirmos fazer com que a vacina se espalhe pelo mundo e o Butantan receba royalties, poderíamos dar uma lição ao Brasil. O país poderia entender que não é só plantando soja que se gera riqueza, mas também criando tecnologias e ganhando royalties. Não sabemos ser competitivos. Somos amarrados em burocracia e regras. Tenho dificuldades enormes de gestão como administrador público. A toda hora o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Estado querem saber o que está sendo feito. No Butantan, temos o Núcleo de Inovação Tecnológica, NIT, com um grande número de patentes. Há gente interessada em trabalhar com as patentes, mas somos asfixiados pela burocracia.
Por que é difícil inovar nessa área?
Porque é burocrático. As farmacêuticas brasileiras ou não fazem inovação ou fazem nos Estados Unidos e na Europa. As universidades, quando têm uma descoberta, acham que vão ganhar muito dinheiro com a patente e não facilitam. Os procuradores do Estado não querem que só uma empresa seja responsável por uma patente, embora a exclusividade seja decorrente do pedido de patente. Ela existe para que uma empresa desenvolva um composto e obtenha retorno financeiro. Poderíamos ter mais investimento em inovação. O problema é regulatório e de gestão. A lei de inovação é complicada. Muitas regras atrapalham. Fruto disso é que não existe inovação na área farmacêutica e de saúde no Brasil.
O senhor sofre alguma retaliação por falar desses problemas?
Crio inimizades com certeza. Mas a maioria, às vezes silenciosa, concorda comigo. Claro que é complicado e me incomodo. Qualquer pessoa pode ir ao Ministério Público e dizer que estou fazendo algo errado e tenho de me explicar. Eles não têm o ônus da prova; eu é que tenho o ônus da defesa. Mas, cada vez que o pessoal do Tribunal de Contas vem aqui e entende o que estamos fazendo, nos ajuda.
Qual é a sua contribuição científica mais importante?
A comunidade científica internacional premiou os trabalhos em que, em colaboração com Luiza Guilherme, descrevi os mecanismos de indução e progressão de doenças autoimunes humanas, sobretudo o mecanismo pelo qual um agente infeccioso leva o organismo a quebrar a tolerância a si mesmo e passa a se atacar. Entre esses estão os trabalhos em que descobrimos como o Streptococcus quebra a tolerância imunológica e provoca a doença reumática cardíaca. É um modelo importante de doença autoimune desencadeada por um agente infeccioso. Outras doenças parecem funcionar assim, como o diabetes tipo 1 e a esclerose múltipla. Com Edecio Cunha Neto, vi algo semelhante em Chagas.
Tempos atrás o senhor disse que estava num momento da carreira em que queria fazer a ciência translacional mais rapidamente.
Já estou fazendo. Assinamos um contrato de R$ 20 milhões com a GSK [GlaxoSmithKline], financiado pela FAPESP, para instalar no Butantan um dos centros da empresa para o desenvolvimento de novos fármacos. Temos vários compostos em desenvolvimento, cujos princípios ativos foram obtidos a partir dos venenos. Também gostaria de criar o Instituto de Inovação em Biotecnologia do Butantan, o IIBB. A ideia é pegar compostos com potencial de virar novos medicamentos ou vacinas e desenvolvê-los em parceria com empresas. Seria uma espécie de incubadora.
Dos laboratórios do Butantan saem vários compostos, mas eles não conseguem ultrapassar a barreira de inovação e originar novos medicamentos.
Temos 40 patentes ativas nas quais estamos trabalhando. É o que tenho de fazer. Já tenho muitas publicações científicas e citações. Quero desenvolver algo que possa ajudar efetivamente as pessoas. Com o surgimento do Zika, reuni o pessoal do instituto e fizemos um programa de estudos da doença. Gosto de administração porque permite colocar em prática minhas ideias científicas. Para participar do grupo de países desenvolvidos, o Brasil tem de mostrar que é capaz de resolver os seus próprios problemas.