“O cerrado não revela seus mistérios à gente que não é cativa desse destinozinho de chão”, escreveu certa vez João Guimarães Rosa, traduzindo os caprichos das paisagens que dominam a região central do Brasil. Muitos desses segredos do cerrado, a maior savana tropical do planeta, podem ter valor científico, social e econômico, mas não estão mesmo expostos à vista. É que fazem parte do universo molecular. “O cerrado é um laboratório químico altamente sofisticado”, destacou a pesquisadora Vanderlan da Silva Bolzani. Professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, Vanderlan se dirigia a uma entusiasmada plateia, composta sobretudo por estudantes do ensino médio, que assistia a mais um encontro do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação, realizado dia 16 de maio, em São Paulo.
O cerrado, explicou Vanderlan, é constituído por um mosaico de ambientes, determinados por diferentes tipos de solos, condições climáticas e paisagens. Sua diversidade biológica, assim como toda a variedade de formas de vida na Terra, é “resultado da evolução mediada por processos químicos que, com o passar do tempo, tornaram-se cada vez mais complexos”. Segundo ela, as substâncias produzidas pela flora do cerrado, fundamentais para a adaptação e o equilíbrio de plantas, insetos, animais e microrganismos desse ecossistema, também podem ser úteis para os seres humanos. A pesquisadora se referia especificamente aos metabólitos secundários das plantas, os subprodutos de um ciclo metabólico que se inicia com a fotossíntese, processo pelo qual as plantas transformam a energia solar em matéria orgânica. Por vezes produzidos em pequenas quantidades, esses compostos, que em geral são importantes agentes de defesa das plantas contra predadores ou para a atração de polinizadores, podem apresentar atividade biológica útil para a concepção de novos fármacos. “A investigação científica da biodiversidade pode ser uma estratégia valiosa para fornecer bens e serviços essenciais para a humanidade”, afirmou Vanderlan. Cerca de 100 mil compostos secundários já foram isolados de plantas e são usados na produção de alimentos, agroquímicos, combustíveis e cosméticos, entre outros. Esse universo que não é visível a olho nu, ressaltou a química, agrega valor à nossa biodiversidade. “E tudo o que tem valor precisa ser protegido.”
Mas não é isso que se vê por lá. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, de 2002 a 2008 subiu de 43,7% para 47,8% a área desmatada do cerrado. Essa variação corresponde a 85 mil quilômetros quadrados (km²) – a média anual de desflorestamento na região hoje é de 14,2 mil km². Essa transformação da paisagem original tornou o cerrado um dos 25 ecossistemas terrestres mais ameaçados do mundo. “Mas continua sendo um dos de maior riqueza também”, disse a bióloga Vânia Regina Pivello, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo (USP), uma das convidadas do ciclo de conferências. O cerrado é o segundo maior ecossistema do Brasil. Estende-se por cerca de 2 milhões de km² ou 23% do território nacional. É menor apenas que o ecossistema amazônico, que, com 3,5 milhões de km², ocupa quase a metade da área total do país. De acordo com a bióloga, o cerrado abriga uma grande variedade florística. São cerca de 6 mil a 7 mil espécies (44% endêmicas da região), muitas ainda insuficientemente conhecidas.
Essas plantas se distribuem por paisagens bastante distintas. Em geral, os especialistas as classificam em ao menos três fisionomias: a campestre, composta predominantemente por gramíneas; a savânica, formada por campos abertos com árvores de pequeno e médio porte (entre 5 e 12 metros de altura); e a florestal ou cerradão, com árvores que podem alcançar 20 metros. “O cerrado é a mais diversificada savana tropical do planeta”, ressaltou Vânia.
Essas formações surgiram a partir de condições ambientais bastante específicas. Uma delas é o clima, que, no cerrado, é marcadamente estacional, com períodos bem definidos de seca intercalados com períodos de chuvas intensas. A profundidade do lençol freático é outro fator que influencia a diversidade de paisagens desse ecossistema. A razão é que as árvores de lá não se adaptam bem a solos úmidos. Assim, quanto mais próximo da superfície está o lençol freático em determinada área, menor é a quantidade de árvores ou arbustos. Segundo Vânia, essa situação favoreceu a formação de vegetação herbácea, com predominância de gramíneas.
Um terceiro fator ambiental que contribui para moldar o cerrado é o solo bastante antigo e pouco fértil, ácido e carregado de alumínio. “Comparado ao solo de outras savanas, principalmente as africanas, o do cerrado tem baixo teor nutricional”, afirmou. A baixa fertilidade do solo reduz a ocorrência de animais pastadores de maior porte, como os veados-campeiros (Ozotoceros bezoarticus). Na avaliação de Vânia, os pastadores mais abundantes do cerrado são os cupins e as formigas-cortadeiras, que aumentam a disponibilidade de nutrientes para as plantas, especialmente árvores e arbustos.
De novo, o fogo
A preservação e a evolução das plantas do cerrado também são influenciadas pelo fogo, importante para a manutenção de outros ecossistemas do país, como os pampas, no sul do Rio Grande do Sul, onde as queimadas contêm o avanço das florestas de araucária e o adensamento de plantas lenhosas (ver Pesquisa FAPESP n° 206).
Os incêndios no cerrado geralmente são breves, explicou Vânia. “A maior parte das queimadas é provocada pelo homem. Mas também há casos de queimadas naturais, causadas por raios.” Tanto em uma situação como em outra, o fogo favorece o brotamento de muitas plantas, além de estimular a floração, a abertura de frutos e a liberação de sementes. “Há uma série de características próprias desse ecossistema que hoje compreendemos como sendo fruto da adaptação dessa vegetação ao fogo”, destacou a bióloga. Uma característica possivelmente moldada pelo fogo são as grossas camadas de cortiça, que recobrem o tronco de algumas árvores e funcionam ainda como isolantes térmicos. A frequência das queimadas também influencia a fisionomia da vegetação, por diminuir a quantidade de árvores e aumentar a do estrato herbáceo, em especial de gramíneas, cujas raízes são mais superficiais e utilizam os nutrientes depositados na forma de cinza.
Assim como ajuda, o fogo também pode ser prejudicial ao cerrado. “É preciso estar atento à frequência das queimadas, à época em que ocorrem e à intensidade de calor que produzem”, disse Vânia. “Esses são fatores importantes para determinar seus efeitos sobre a vegetação local.” Por causa do potencial efeito devastador dos incêndios, a bióloga defende o manejo controlado do fogo na região, a fim de evitar a ocorrência de incêndios acidentais e fora de controle.
Uma das razões que contribuem para a frequência elevada de queimadas no cerrado é o fato de sua vegetação possuir substâncias químicas inflamáveis, explicou Vanderlan. Acredita-se que a tendência é que ao longo das gerações as plantas apresentem uma redução dos compostos inflamáveis e o aumento de outros que as protejam contra o fogo. “Do ponto de vista evolutivo, as espécies tendem sempre a desenvolver mecanismos de defesas químicas que permitem sua adaptação”, disse.
Potencial invisível
Além das moléculas com potencial econômico produzidas por várias espécies, o cerrado é um importante polo agrícola, com destaque para o cultivo de soja, algodão, feijão, arroz, milho e café. Segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção de grãos e sementes oleaginosas, como o cacau, e proteicas, como a soja, vem crescendo exponencialmente no cerrado. Quase metade da área dedicada ao cultivo de soja no país se localiza nesse ecossistema. “Mesmo havendo muita pesquisa para aprimorar a produção de soja, o desmatamento na região continua crescendo e eliminando diversas espécies de plantas que produzem moléculas com potencial para fornecer bens e serviços de grande valor agregado à sociedade”, disse Vanderlan.
Um exemplo de produto farmacêutico gerado a partir da biodiversidade do cerrado é o Fitoscar, pomada cicatrizante lançada em 2007 pelo laboratório Apsen. O fitoterápico é produzido a partir do extrato seco da Stryphnodendron adstringens – ou barbatimão-verdadeiro, como é mais conhecido –, planta da família Fabaceae, facilmente encontrada no cerrado. A pomada foi desenvolvida em uma parceria entre o laboratório e a Faculdade de Medicina da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp). “É o primeiro agente cicatrizante aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a utilizar uma planta típica desse ecossistema”, destacou Vanderlan. Na sua avaliação, o potencial farmacológico da região precisa ser mais bem aproveitado no país.
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Com o objetivo de investigar melhor esse universo, o Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (NuBBE), rede de pesquisa que mantém uma base de dados sobre produtos naturais isolados a partir de elementos químicos da biodiversidade brasileira, vem estudando substâncias com propriedades farmacológicas promissoras. O objetivo é isolar compostos anticancerígenos, antifúngicos e antimaláricos, entre outros. Outra rede, a BIOprospecTa, que integra o Biota-FAPESP, tem se dedicado a buscar substâncias biologicamente ativas na biodiversidade do estado de São Paulo. O objetivo é tentar identificar modelos químicos que possam ser usados na concepção de fármacos e cosméticos. “O país tem muito a ganhar com a descoberta de produtos naturais com propriedades farmacológicas”, disse Vanderlan. “Afinal, o cerrado é um banco de moléculas pouco explorado e sua biodiversidade, fonte de matéria-prima para diversos usos.”
Desde fevereiro o Programa Biota-FAPESP, em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, vem promovendo uma série de palestras voltadas à discussão dos desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros: pampa, pantanal, cerrado, caatinga, mata atlântica e Amazônia, além dos ambientes marinhos e costeiros e a biodiversidade em ambientes antrópicos – urbanos e rurais (ver programação ao aqui). Com o tema O compromisso com o aperfeiçoamento do ensino da ciência da biodiversidade no Brasil, as palestras pretendem, até novembro, apresentar o estado da arte do conhecimento científico gerado por pesquisadores de todo o Brasil, visando a contribuir, por meio de linguagem acessível, com a melhoria da qualidade da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio do país.
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