Gabriel Victora estava acostumado a longos ensaios solitários quando era pianista profissional. Hoje, como imunologista, passa horas sozinho em uma sala escura e fria de um laboratório buscando entender como amadurecem os linfócitos B, as células produtoras de anticorpos. Ele ainda acha que tocar piano é mais difícil do que marcar células, mas a disciplina herdada da música o ajudou a persistir em uma pesquisa liderada pelo imunologista brasileiro Michel Nussenzweig na Universidade Rockefeller, Estados Unidos, cujos resultados foram apresentados em novembro na revista Cell. Os pesquisadores começam agora a entender um fenômeno velho conhecido e pouco compreendido dos imunologistas: a maturação da afinidade – produção e seleção dos linfócitos B que geram os anticorpos mais efetivos conforme uma infecção progride.
Acreditava-se que tal refinamento ocorria à medida que os linfócitos B entravam em contato com antígenos, moléculas reconhecidas pelos anticorpos. Agora se viu que é a interação com outras células do sistema imune que determina quais linfócitos B se tornarão produtores de anticorpos. “É preciso considerar a interação entre essas células no desenho de vacinas. Olhar só para a interação do linfócito B com o antígeno não é necessariamente a saída”, diz Victora. O trabalho recebeu destaque na Cell e mereceu o comentário de Jason Cyster, da Universidade da Califórnia em São Francisco, um dos líderes mundiais da pesquisa na área, na mesma edição da revista.
Numa infecção, os linfócitos B migram do sangue para órgãos linfoides como as amígdalas ou os linfonodos da axila. Ali se agrupam no chamado centro germinativo, onde há alta concentração de pedaços dos agentes infecciosos (antígenos) presos à superfície de outras células do sistema imune, as células dendríticas foliculares, além de linfócitos T recrutados por esses antígenos. Nesses centros os linfócitos B inserem alterações aleatórias nos genes que codificam os anticorpos e geram células com genoma diferente do das demais células do corpo.
Mutantes
A maioria das células mutantes é menos eficiente que o linfócito B original, mas umas poucas se tornam altamente eficazes e são selecionadas para produzir anticorpos. Nesse sentido, os centros germinativos são como bibliotecas: guardam grande quantidade de informação que pode estimular e aperfeiçoar habilidades ou propagar dados após uma sugestão instigadora. “É ali que os anticorpos evoluem em tempo real e permitem responder a patógenos com ciclo evolutivo mais rápido que o nosso”, explica Victora. “Sem isso, sempre perderíamos a corrida evolutiva contra as infecções.”
O centro germinativo abriga acontecimentos desconhecidos que controlam o percurso e o destino das células em amadurecimento. Para saber como os linfócitos B são selecionados, Victora teve de entender a dinâmica das duas regiões desses centros: uma com poucos núcleos de células, a zona clara; e outra repleta de linfócitos B, a zona escura.
Na zona clara, os linfócitos B misturam-se às células dendríticas foliculares carregadas de antígenos e aos linfócitos T. Os imunologistas acreditavam que os linfócitos B se replicavam na zona escura e migravam para a clara. Com a evolução de técnicas para obtenção de imagens, começaram a notar um movimento bidirecional, com células da zona clara voltando para a escura. Faltava saber como elas migram e no que isso influencia a seleção.
Para delimitar as duas zonas, Victora desenvolveu uma forma de marcar com precisão microanatômica as células dos centros germinativos para, em seguida, acompanhar seus percursos em tempo real no animal vivo, antes de resgatá-las para estudos de caracterização fenotípica e de perfil de expressão gênica. Isso só foi possível com o uso de camundongos transgênicos que expressam uma versão modificada da proteína verde fluorescente, a GFP, ativável pela luz de um laser de dois fótons. Como tem comprimento de onda mais longo, esse laser penetra em órgãos intactos e ativa regiões profundas. É como se Victora usasse uma lanterna para iluminar uma região específica das células.
Com uma combinação de técnicas, ele ativou os linfócitos B de cada zona e mediu quanto tempo levavam para ir de uma a outra. Após quatro horas da fotoativação, metade dos linfócitos B da região escura migrou para a clara. Mas, passadas seis horas, só 15% dos linfócitos B tinham ido da área clara para a escura, sugerindo que é nesse retorno que acontece a seleção dos mais aptos a combater a infecção.
Após separar os linfócitos B das duas regiões, os pesquisadores avaliaram a expressão gênica deles. Nas células da zona escura predominou a ativação de genes ligados à divisão celular e à ocorrência de mutações. Na zona clara, os linfócitos tinham mais genes ativos envolvidos com a seleção, que depende do reconhecimento de antígenos. Eles mostraram ainda que ao facilitar a interação dos linfócitos T da zona clara com os B, estes migram em massa para a região escura, onde embarcam em outro ciclo de divisão celular e mutação. Trabalhos recentes indicam que a presença de um número elevado de linfócitos T da zona clara pode levar as células B a produzir altas quantidades de anticorpos contra o próprio organismo, como ocorre em doenças autoimunes, a exemplo do lúpus.
No congresso da Sociedade Brasileira de Imunologia, realizado em novembro, Nussenzweig destacou que, caso se encontre um modo de estender o tempo da seleção de linfócitos B nos centros germinativos, talvez se possa gerar uma grande diversidade de anticorpos de alta afinidade e eficazes em captar e inativar patógenos invasores, como o HIV.
Artigo científico
VICTORA, G. D. et al. Germinal center dynamics revealed by multiphoton microscopy with a photoactivatable fluorescent reporter. Cell. v. 143, p. 1-14. 12 nov. 2010.