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Do ponto de vista do desempenho dos alunos, os resultados mais expressivos foram os obtidos no sistema da Unicamp. Um artigo publicado em edição recente da Higher Education Management and Policy, publicação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apresenta os dados que embasaram a criação da bonificação de pontos e também seus primeiros resultados. O estudo mostra que para os estudantes que entraram na Unicamp entre 1994 e 1997 aqueles oriundos de escolas públicas tiveram desempenho acadêmico superior aos egressos de colégios privados, considerando-se para ambos os grupos jovens que entraram na universidade com notas no vestibular na mesma faixa. O fenômeno, chamado de “resiliência educacional”, é conhecido dos educadores e indica a capacidade do aluno de obter sucesso acadêmico e social apesar da exposição a adversidades pessoais e sociais. Entre as explicações possíveis destaca-se o traquejo especial dos alunos pobres, porém bem formados, para enfrentar situações desfavoráveis, uma qualidade valiosa no ambiente competitivo de uma universidade de pesquisa que nem sempre é compartilhada com os colegas de classe média, em geral poupados das adversidades por suas famílias.
As evidências sobre esse comportamento ajudaram a moldar o Paais (Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social), que a partir de 2004 passou a beneficiar com 30 pontos os egressos de escolas públicas e em mais 10 pontos os negros e índios – esse bônus é aplicado sobre um referencial de 500 pontos, atribuído à média do desempenho de todos os alunos em cada prova. A escolha dessa faixa de pontuação não foi casual. Trata-se de uma espécie de zona de empate técnico do vestibular, dentro da qual a oscilação de desempenho dos candidatos não indica propriamente uma vantagem – caso os mesmos candidatos submetam-se a sucessivos exames, suas colocações costumam variar dentro dessa área cinzenta. A idéia, portanto, era privilegiar alunos de escolas públicas, negros e índios apenas como critério de desempate dentro de uma amostra de candidatos com rendimentos acadêmicos muito semelhantes. “O que os nossos dados mostravam é que, para além da questão da inclusão social e da promoção da diversidade, essa fórmula também interessava à Unicamp do ponto de vista acadêmico, uma vez que historicamente os alunos oriundos da escola pública apresentavam um desempenho crescente em relação aos do ensino privado com nível equivalente de conhecimento”, diz Renato Pedrosa, autor principal do artigo e professor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc) da Unicamp.
Em 2005, primeiro ano de implantação do programa, a admissão na Unicamp de alunos oriundos de escolas públicas cresceu de 29,6% do total para 34,1%. E a participação não se limitava aos cursos de baixa procura, como é habitual. Trinta e quatro dos 110 estudantes admitidos nos cursos mais seletivos, como o de medicina, vieram do ensino público. O ingresso de negros e índios cresceu 44% em relação aos 2 anos anteriores, subindo de 10,9% para 15,7% do total – um índice, porém, ainda abaixo dos 23% de matriculados do ensino médio do estado de São Paulo que pertencem a essas etnias. O dado mais significativo foi o desempenho dos egressos de escolas públicas no primeiro ano de faculdade. No ranking do vestibular, eles tiveram médias superiores às de colegas formados em escolas privadas em apenas quatro dos 56 cursos. Mas, ao cabo de 1 ano de estudo, as médias desses mesmos jovens já eram superiores em 31 dos cursos quando comparados ao grupo vindo do ensino particular. No curso de medicina os egressos da escola pública tiveram 7,9 de média, enquanto a nota de seus colegas ficou em 7,6. Resultados preliminares do ano de 2006 e 2007 indicam rendimento equivalente. “Do ponto de vista da formulação de políticas públicas, nossa abordagem é uma clara alternativa aos sistemas de cotas adotados por muitas universidades, pois desenvolve um novo conceito de mérito que beneficia estudantes de alto potencial e garante a diversidade no ambiente acadêmico”, diz Renato Pedrosa.
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Tanto a USP como a Unicamp evitaram adotar sistemas de cotas, por considerá-los inconciliáveis com o consagrado conceito do reconhecimento por mérito que permeia suas relações acadêmicas. O temor é que o ingresso de estudantes com formação deficiente beneficiados por reservas fixas de vagas cause prejuízos à excelência do ensino e da pesquisa – USP e Unicamp são responsáveis por mais de um terço da produção acadêmica do país. “No debate sobre ações afirmativas há uma discussão de fundo, que é o papel que universidades de pesquisa como a Unicamp devem desempenhar na sociedade”, afirma Leandro Tessler, coordenador executivo do vestibular da Unicamp e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW). “Tem gente que acha que essa função é promover inclusão social. Nós achamos que o objetivo deve ser atrair os jovens mais talentosos, tanto que realizamos o vestibular em 20 cidades em nove estados do país, e garantir a sua diversidade”, afirma Tessler.
Os simpatizantes das cotas, naturalmente, têm outro ponto de vista. “As experiências com cotas e outras iniciativas parecem mostrar que é possível atrair alunos vindos de escolas públicas com qualidade semelhante aos oriundos de escolas privadas, mesmo que eles não estejam listados no topo do vestibular”, diz Antonio Sergio Alfredo Guimarães, professor da USP, que é um estudioso das ações afirmativas e especialista em sociologia das relações raciais. “Em muitos casos, não falta capacidade de aprender, pois a motivação e o desempenho durante o curso compensam deficiências de formação. Nossa sociedade está cada vez mais democrática e há uma questão de princípio: a finalidade é aumentar a inclusão e fazer com que a elite intelectual não se confunda com a elite econômica, que pessoas talentosas mas pobres não sejam simplesmente barradas. Essa perversão do sistema é o que se busca corrigir.”
Se há um consenso entre os que defendem e os que se contrapõem às cotas, é que a raiz do problema está na péssima formação oferecida pela maioria das escolas públicas de ensino fundamental e médio. Mas os defensores não vêem sentido em esperar para que essa mazela histórica seja resolvida. “As estatísticas são eloqüentes. O ingresso ao ensino superior brasileiro é alcançado por apenas 7,1% dos brasileiros entre 18 e 25 anos, mas entre os brancos nessa faixa de idade o acesso à universidade chega a 11,2%, enquanto entre os negros não passa de 2,3%”, diz André Brandão, professor da Universidade Federal Fluminense e organizador do livro Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação, compilação de artigos com experiências de várias universidades, lançado em 2007.
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Na UnB, o índice de rendimento acadêmico dos estudantes que haviam ingressado no segundo semestre de 2004 revelou que o rendimento dos cotistas é, de modo geral, menor que os de não-cotistas. “Mas igualmente mostrou que em todos os grupos de cursos há estudantes negros com elevado rendimento e que, na maioria dos grupos, entre um terço e quase metade dos cotistas tiveram rendimento superior à mediana do curso, atingindo excepcionais 70% na medicina”, sustenta Velloso. “Os dados surpreendem, mas nem tanto, quando se considera que os cotistas aprovados constituem uma elite social em seu segmento, ainda que uma segunda elite quando comparada à dos não-negros universitários”, diz. Os negros, como se sabe, abandonam a escola antes dos brancos e apenas uma parte deles conclui o ensino médio e se habilita a ingressar na universidade. Segundo dados de 2001 do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), os negros são 12% dos alunos que concluem a 4ª série em escolas públicas e privadas. Mas, entre os que concluem o 3º ano do ensino médio, há apenas 6% de alunos que se declaram negros.
Em 2004 o desempenho médio dos candidatos do sistema de cotas da UnB no vestibular foi inferior ou bastante inferior ao dos demais nas três áreas do conhecimento – Humanidades, Ciências e Saúde. Considerando os grupos de prestígio social mais alto dos cursos em cada uma dessas áreas, as diferenças ficaram em torno de 25%. Nos grupos de baixo prestígio das três áreas as distâncias foram menores, abaixo de 20%. O panorama do desempenho se alterou drasticamente no vestibular de 2005. As maiores distâncias entre candidatos de ambos os segmentos passaram a ser iguais ou menores que apenas 10%. “Nos cursos de alto prestígio das Humanidades as médias das notas dos cotistas foram apenas 1% inferiores às de seus colegas do sistema universal, ou seja, não houve diferenças com significado substantivo entre ambos os grupos”, diz Velloso. Uma possível explicação para a mudança foi a atração de negros com padrão socioeconômico mais elevado, que se animaram a disputar o vestibular estimulados pela cobertura da mídia sobre o programa de cotas.
Os dados disponíveis mostram uma variabilidade de desempenho muito grande entre as universidades que adotaram cotas raciais ou sociais, mas a esperada deterioração do nível acadêmico parece não ter ocorrido na maioria das instituições. É certo que há dados preocupantes: no vestibular de 2003 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em dez cursos, ingressaram cotistas (cotas para escola pública e, dentro desta, para negros) que obtiveram entre 4 e 7 pontos nos exames, de um total de 110 possíveis. Um estudo feito em 2006 pelo historiador Wilson de Mattos na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) chegou a um resultado mais animador ao comparar médias de rendimento no curso dos que optaram pela reserva de vagas para negros com médias dos demais estudantes. Numa amostra de 11 departamentos dos diversos campi da instituição, considerando as médias por departamento e o rendimento no primeiro e segundo semestres de 2003, as notas dos cotistas geralmente se diferenciavam das dos demais estudantes por apenas alguns décimos de pontos a menos. Em dois departamentos as médias dos negros foram superiores às dos demais alunos também por alguns décimos. Uma pesquisa de opinião feita com 557 docentes de quatro universidades que adotaram cotas, a UnB, a Federal de Alagoas (Ufal), a Estadual da Bahia (Uneb) e a UERJ, sugere que o sistema foi bem aceito entre os professores. Apenas 9,7% consideraram que o nível acadêmico piorou. A maioria, de 79,6%, disse que permaneceu igual e 10,7% acharam que melhorou. A pesquisa foi feita pelos pesquisadores André Brandão, José Luís Petruccelli e Renato Ferreira, do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ.
Os exemplos de sistemas de cotas que privilegiam prioritariamente os alunos de escolas públicas despontam como os mais bem aceitos, enquanto os que instituem cotas raciais estão mais sujeitos a controvérsias. Um dos modelos mais polêmicos é o de cotas raciais da UnB, que, em vez de adotar o critério da autodeclaração de etnia, empregava até o ano passado um sistema de avaliação de fotos de candidatos a cotas. O sistema de fotos foi abolido em 2008, mas vigora a ameaça de desclassificação para candidatos cuja declaração de etnia seja considerada fraudulenta, decisão especialmente difícil num país miscigenado como o Brasil. A Ufba optou por colocar os autodeclarados negros como uma subcota dentro da cota de 45% de alunos de escolas públicas – e não tem tido dificuldade de ocupar as vagas com esse duplo crivo. “Como estão recrutando pessoas de um mesmo estrato, faz pouca diferença se há exageros na autodeclaração”, afirma o professor Antônio Guimarães, da USP. A UERJ e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) modificaram seus sistemas no ano seguinte à implantação, transformando as cotas de negros em subcotas dos alunos de escolas públicas e exigindo comprovação de carência dos candidatos – houve a percepção de que, no primeiro vestibular, apenas negros de origem socioeconômica privilegiada haviam obtido êxito no vestibular. As experiências variam de acordo com necessidades regionais. A Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems) reserva 20% de vagas para negros e 10% para indígenas. A Universidade Federal de Alagoas também instituiu uma divisão peculiar. Há reserva de 20% das vagas para estudantes negros e pardos que estudaram em escolas públicas, mas há um crivo de gênero – desse total, 60% cabem a mulheres afro-descendentes e 40% a homens.
PATCHEN.DIVERSITY
Nos Estados Unidos, país usualmente apontado como patrono de cotas, a situação é bem mais complexa do que sugere o senso comum. A rigor, a reserva de vagas para minorias étnicas está proibida desde 1978, quando a Suprema Corte julgou o rumoroso caso Bakke vs. diretores da Universidade da Califórnia. Depois de ter sido recusado pela escola de medicina da Universidade da Califórnia, em Davis, Allan Bakke, um homem branco, moveu ação judicial alegando que sofreu discriminação racial. Venceu na Justiça comum e a universidade recorreu. Em 1978, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu em favor de Bakke e classificou como inconstitucionais os programas de admissão que reservam vagas com base na raça. Mas a decisão favoreceu as ações afirmativas, permitindo que as escolas considerem a raça como um dos fatores contemplados nos processos de admissão. Os sistemas de seleção norte-americanos, que variam de estado para estado e de instituição para instituição, admitem o exercício de uma série de ações afirmativas. Boa parte dos estados concede benefícios a seus próprios cidadãos, na forma de pontos e de um preço acessível das mensalidades (lá, o ensino é pago), e mantém esquemas para garantir a diversidade étnica em seus campi. As universidades estaduais da Califórnia, por exemplo, são obrigadas por lei a receber os 12% de estudantes formados com as melhores notas em suas escolas públicas estaduais.
No caso brasileiro, uma avaliação mais efetiva de programas de ação afirmativa só será possível no horizonte de alguns anos. Ocorre que, nos últimos 2 anos, vêm sendo detectadas transformações no perfil da demanda cujos efeitos ainda não são claros. Os dados da Universidade de Brasília sobre o ano de 2006, compilados na dissertação de mestrado defendida no mês passado por Claudete Batista Cardoso, mostram que o porcentual de inscritos para as cotas evoluiu de 15% do total em 2004 para 17% em 2005, caindo abruptamente para apenas 10% em 2006. Segundo Claudete, uma possível explicação para esse comportamento é que ele tenha sofrido influência da forte expansão de vagas no ensino privado no Distrito Federal, associado ao advento do Programa Universidade para Todos (ProUni), que distribui bolsas no ensino privado para alunos carentes. “Como entre os cotistas uma parcela ponderável tem nível social bem inferior ao dos não-cotistas, o que influi negativamente nas suas chances de aprovação em exames muito competitivos, é possível que muitos dos que pensavam em se inscrever nas cotas da UnB tenham passado a procurar bolsas do ProUni”, afirma Claudete. No vestibular da USP, a despeito do advento do programa de ação afirmativa Inclusp, o número de alunos oriundos da escola pública caiu de 49.340 em 2006 para 46.309 em 2007 – resultado atribuído ao aumento da oferta de vagas na rede privada de ensino superior e ao sucesso do ProUni.
Outras evidências sugerem, contudo, que os programas de ação afirmativa não sofrerão abalo em suas premissas. Estudos feitos por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da UnB sugerem que uma eventual multiplicação do número de vagas nas universidades federais, como promete o Ministério da Educação para os próximos anos, teria pouco efeito na redução da desigualdade racial. As simulações mostram que, se o número de vagas oferecidas pelas duas instituições dobrasse repentinamente e não houvesse cotas, a proporção de negros aprovados praticamente não sofreria alteração. “Essa evidência obtida indica claramente que, mesmo com uma forte ampliação das vagas, as chances de ingresso de jovens negros pouco se alterariam”, afirma o professor Jacques Velloso, da UnB . “A evidência também contribui para situar as cotas em sua perspectiva, que tem dois lados. Primeiro, elas consistem num ajuste marginal, embora necessário, de desigualdades sociais e raciais pregressas. Segundo, a de que é indispensável democratizar efetivamente a educação básica pública, oferecendo um ensino de qualidade a todos os que, em virtude da cor da pele e de seu estrato social, não costumam ter acesso a ela.”
Como observa o sociólogo José de Souza Martins, professor titular aposentado da USP e um crítico de ações afirmativas, cotas e bônus estão longe de tocar no problema principal. “Justiça se faz melhorando a qualidade do ensino e dando oportunidades igualitárias para todos, não só para alguns. Expedientes como cotas remendam a desigualdade e não resolvem problema algum”, afirma Martins. “A Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabeleceu que o Brasil devia instituir a partir de 2002 a escola em tempo integral até o ensino médio. Não aconteceu. No lugar disso, fizeram a discussão sobre cotas. O que se propõe é recrutar estudantes com menor potencial e deixar de fora os com maior potencial. O que a sociedade ganha com isso? Não ganha nada. Ela faz de conta que fez justiça”, diz o professor.
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