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Entrevista

Luis Bahamondes: Os paradoxos da saúde da mulher

Especialista em métodos contraceptivos alerta para a importância dos anticoncepcionais de longa duração para reduzir o risco de gravidez não planejada e aborto

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPTodas as manhãs o médico argentino Luis Guillermo Bahamondes chega cedo ao Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp), criado em 1977 para impulsionar os estudos na área da saúde da mulher na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aposentado desde 2016 da universidade, da qual recebeu recentemente o título de professor emérito, Bahamondes não para. “Trabalho todos os dias”, conta.

Em uma sala no 2º andar do Cemicamp, que preside desde 2016, ele orienta alunos de mestrado e doutorado do Departamento de Tocoginecologia da universidade. Também coordena as pesquisas do centro, que funciona como hub na América Latina de um programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) de capacitação de jovens profissionais de países latino-americanos e da África lusófona em saúde sexual e reprodutiva.

Idade 77 anos
Instituição
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Especialidad
Saúde da mulher
Formação
Graduação em medicina pela Universidade Nacional de Córdoba (1971) e doutorado pela Unicamp (1982)

Nascido em uma família humilde de Córdoba, Bahamondes desejava se tornar psicólogo. A conselho do pai, optou pela medicina, um passaporte para sair da pobreza, a princípio para ser psiquiatra. Na graduação, iniciou um estágio em uma maternidade que reorientou sua carreira. Formado, seguiu para aperfeiçoamento no Uruguai e residência médica no México, onde atuou em uma das maiores maternidades da América Latina. “Vi na residência casos que nunca voltei a ver na vida”, disse, apontando para uma foto da época.

Em 1976, a convite do colega chileno Aníbal Faúndes, foi para a Unicamp, onde ajudou a estruturar o ensino e a pesquisa em sua área e se tornou referência internacional no estudo de métodos contraceptivos.

Casado com a psicóloga argentina Maria Makuch, tem três filhos e cinco netos. Na entrevista, ele fala da importância do acesso a métodos anticoncepcionais eficazes para o planejamento familiar, do corporativismo médico e das tentativas de chamar a atenção de gestores para os estudos com impacto em saúde pública.

Como está a saúde da mulher no Brasil?
A mulher, no Brasil e no mundo, enfrenta quatro grandes problemas: falta de acesso a métodos anticoncepcionais e de atenção na gravidez, no parto e no puerpério, além de carência de atendimento após a menopausa e para cuidar do sangramento uterino anormal. Muito precisa ser feito para atender a essas necessidades, e muito poderia ser economizado com ajustes nas políticas públicas de atendimento à saúde da mulher. Publicamos em 2014 um artigo mostrando quanto custava para o setor público brasileiro cada gravidez, incluindo os exames e as consultas do pré-natal, o parto e o acompanhamento no puerpério [os 40 dias após o parto]. Tudo saía por US$ 1 mil, cerca de R$ 5 mil. É muito caro. Se as mulheres que não desejam engravidar colocassem DIU [dispositivo intrauterino] ou implante hormonal, métodos anticoncepcionais de longa duração, o custo para o Estado seria de menos de R$ 1 mil. Tentamos há anos influenciar os formuladores de políticas públicas. Enviávamos cada publicação de nosso grupo com importância para o setor público para os secretários da Saúde de Campinas e do estado de São Paulo e para o ministro da Saúde, com um recado: “Olhe isto”. Sabe quantas vezes nos responderam? Nenhuma, nem sequer acusavam o recebimento.

Há outro exemplo de trabalho do seu grupo com impacto em políticas públicas?
Vários. Recentemente, um aluno meu examinou se haveria diferença na eficácia ou na ocorrência de problemas entre os DIU colocados por médicos e os inseridos por enfermeiros, estudantes de medicina ou residentes [alunos de especialização em ginecologia e obstetrícia]. Nenhuma. O Ministério da Saúde tentou mudar a norma, para permitir ao enfermeiro colocar DIU, mas o Conselho Federal de Medicina [CFM] foi contra. O ministério insistiu, mas, em muitos lugares, continua a valer a regra de que enfermeiro não pode colocar DIU. O argumento do CFM para justificar a proibição é que existe a lei do ato médico [legislação que define os procedimentos exclusivos de médicos], que veda aos não médicos a exploração das cavidades naturais do corpo. O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco decidiu que sim e, lá, o enfermeiro pode colocar.

A mulher enfrenta falta de acesso a anticoncepcionais, de atenção na gravidez e após a menopausa

O argumento do CFM se justifica?
É uma visão corporativista e sem sentido. O enfermeiro ou a enfermeira não têm consultório privado, não serão competidores do médico para colocar DIU ou implante hormonal. Nas Unidades Básicas de Saúde [UBS] isso permitiria ao médico se dedicar aos pacientes com problemas de saúde, enquanto o enfermeiro veria as mulheres sadias, que são as que procuram os métodos anticoncepcionais. Aqui no Cemicamp colocamos bastante DIU porque treinamos as enfermeiras. Por anos tivemos sete fazendo o procedimento, algumas se aposentaram e agora temos três. Comprovamos que os enfermeiros colocam o DIU tão bem quanto os médicos, ou até melhor. O governo tem investido na colocação do DIU pós-parto, 10 minutos depois da saída da placenta, com o consentimento da mulher, dado de preferência antes do parto. Veja o paradoxo: quem atende os partos no SUS [Sistema Único de Saúde]?

Os médicos, não?
Não só. Quarenta por cento dos partos do SUS são atendidos por enfermeiros. Se eles realizam os partos, poderiam colocar um DIU, que é uma tarefa mais simples. Se amanhã a ministra da Saúde der uma ordem para que os enfermeiros passem a colocar DIU e implantes hormonais nos 5 mil municípios brasileiros, não resolve a questão. Tem de treinar o pessoal, ter logística adequada, criar referência e contrarreferência para quando há problemas. O DIU de cobre é distribuído no SUS, mas se coloca pouco, porque nem todos os alunos de graduação em medicina e residentes aprendem a fazer, ainda que o programa da residência em medicina familiar ou em ginecologia e obstetrícia inclua o treinamento para a colocação de DIU e implantes hormonais. Além disso, as faculdades vinculadas à Igreja Católica e alguns hospitais confessionais não aprovam o planejamento reprodutivo e o uso de métodos contraceptivos. Quer ver outro paradoxo? Há 50 milhões de mulheres em idade reprodutiva no país. Cerca de 80% das brasileiras de 15 a 49 anos usam alguma forma de anticoncepção moderna, mas 55% têm gravidez não planejada. Algo está errado.

Quais métodos anticoncepcionais o SUS oferece?
Preservativo, pílulas combinadas [contendo os hormônios estrogênio e progestogênio], anticoncepcional injetável mensal e trimestral, além de DIU com cobre e anticoncepção de emergência, a chamada pílula do dia seguinte. Todos são bastante usados. Mas não existe adesivo transdérmico, anel vaginal, DIU hormonal nem implante.

Por que então há tantos casos de gravidez não planejada?
Porque a mulher tem de marcar uma consulta para se reabastecer de pílula na UBS. Seria mais prático dar a receita para três meses, em vez de mensal. Metade das mulheres abandona o uso de pílula depois de um ano, porque ela pode causar mal-estar gástrico, transtornos menstruais, cefaleia e outros problemas que poderiam ter sido previstos. Se a mulher tomar apenas a pílula anticoncepcional, em uso perfeito, sem esquecer nenhum dia, a taxa de falha é praticamente zero. Mas 23% esquecem de tomar alguns dias no mês e engravidam. É preciso tomar direitinho, porque a quantidade de hormônio nas pílulas é cada vez menor. Quando esquece, a probabilidade de ovular é altíssima e, consequentemente, de engravidar. Por isso a indústria farmacêutica estimula o uso todos os dias. Uma saída seria usar os métodos mais eficientes de longa duração, como o DIU com cobre, o DIU com hormônio ou o implante contraceptivo. Não há dúvida de que são os melhores. Mas é preciso avaliar caso a caso. Se uma mulher quer evitar a gravidez por até um ano, o mais indicado é a pílula, o adesivo ou o anel. Se outra já tem dois filhos e não quer ter mais nenhum, pode colocar um DIU.

Os métodos de longa duração são bastante usados?
Não sabemos. O último Demographic Health Survey (DHS), um levantamento nacional que inclui o uso de anticoncepcional, já tem muitos anos. Informava que apenas 2% das mulheres de 15 a 49 anos usavam contraceptivos de longa duração. Vamos imaginar que subiu para 5%. O DIU com cobre falha para 10 em cada mil mulheres, uma taxa muito baixa. O implante subdérmico falha para quatro em mil e o DIU hormonal para duas em mil, taxas baixíssimas. Não temos mais mulheres usando porque o governo se recusa a colocar o DIU hormonal e o implante na lista de medicamentos prioritários do SUS. Uma lei recente determinou o uso do implante em populações vulneráveis, como as moradoras de rua ou as portadoras de HIV, só que nunca se implementou adequadamente, não se distribuiu direito para as unidades de saúde.

Qual a principal consequência das gestações não planejadas?
Muitas terminam em abortos clandestinos, já que o aborto é ilegal no Brasil. Isso contribui para o aumento da mortalidade materna. Há uns 40 anos houve uma polêmica enorme na Câmara dos Deputados, quando se discutiu se o médico deveria colocar no atestado de óbito que a mulher estava grávida ou morreu em consequência de problemas na gestação, no parto ou no puerpério. Os conservadores foram contra, porque essa informação mostraria qual é a mortalidade materna real e daria uma dimensão da mortalidade materna evitável, como a provocada por aborto inseguro. Há no Brasil muita gravidez não planejada e um número difícil de estimar de abortos inseguros, porque esses dados não entram nas estatísticas oficiais.

Comprovamos que os enfermeiros colocam o DIU tão bem quanto os médicos, ou até melhor

Em 2023, o Supremo Tribunal Federal retomou o debate sobre o direito ao aborto, mas parou. Como vê a situação?
A meu ver, as igrejas e o governo não têm o direito de dizer para a mulher o que ela pode fazer ou não, porque a carga de uma gravidez, planejada ou não, recai principalmente sobre ela. A Holanda legalizou o aborto há muito tempo. Lá ocorrem menos abortos a cada ano porque as mulheres têm mais acesso a anticoncepcionais, o que resulta em menos gestações não planejadas. Também acho necessário que a mulher tenha direito a interromper a gravidez quando o método anticoncepcional falha, além dos casos em que a gestação é produto de estupro ou há risco de morte para a mulher ou o feto não tem condições de sobreviver [a legislação brasileira não pune os últimos três casos]. Quantas mulheres com gravidez não planejada fazem aborto? Não muitas. Na Argentina, que tornou o aborto legal há alguns anos, não ocorrem tantos casos. Nem no Uruguai ou em Cuba. Na Colômbia se dizia que, quando uma mulher chegava a um serviço médico e pedia a realização de um aborto, o processo de interrupção da gravidez já havia começado quando ela descobriu que estava grávida e decidiu que não queria manter a gestação. O aborto medicamentoso, feito com drogas que não se vendem no Brasil, acontece como se fosse uma menstruação em mais de 95% dos casos. Para que funcione, além de uma legislação que permita o aborto, é preciso ter acesso aos medicamentos, senão a política pública fica manca.

Por que a carga da gravidez recai sobre a mulher?
A mulher precisa se afastar do trabalho na gestação. Depois, tem de arrumar creche para o bebê, amamentar etc. Em um trabalho recente, o grupo de epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas examinou o que acontecia quando as mulheres que ficaram grávidas na adolescência chegavam aos 30 anos. Elas alcançavam menor escolaridade e ganhavam menos do que os homens. É um artigo sensacional que todo formulador de política pública deveria ler. A lei do planejamento familiar [Lei nº 9.263, de 1996] diz que o governo tem a obrigação de prover os métodos anticoncepcionais sem custo. Só que não basta ter lei. É preciso implementá-la e o país ainda não conseguiu.

A responsabilidade sobre a prevenção também recai sobre elas?
Em teoria, deveria ser compartilhada pelo casal. Quem engravida é a mulher, mas a responsabilidade deveria ser do casal. Existe uma responsabilidade compartilhada para o bem, quando os homens acompanham e encorajam a gestação. E existe uma responsabilidade compartilhada para o mal, quando o homem diz: “Você não vai colocar DIU porque o pastor disse que não deve ou porque o fio machuca o pênis”. Ou quando surge um efeito colateral e ele diz: “Tem que parar com isso”. Daí, quando a mulher engravida, ele fala: “Como engravidou?”. No ambulatório do Cemicamp, cada vez mais homens acompanham as mulheres nas consultas sobre anticoncepção, mas há os que ficam do lado de fora, esperando a mulher ser atendida.

Por que não entram?
Porque não querem. Convidamos e os estimulamos a participar. Eles têm direito a entrar com a mulher, mas ficam envergonhados. No Brasil, apesar de a violência contra a mulher ainda ser grande, há uma característica cultural diferente da de outros países da América Latina. Os homens não fazem questão de que o filho seja homem. No México, no Peru, no Equador e em outros países andinos, ter um filho homem ainda é importante. Quando eu era médico no México, avisava: “Olha, é uma menina!”, e o homem dizia: “Outra?!”. Quando nasceram minhas filhas, no México, levei flores para minha mulher e uma companheira de quarto perguntou: “Teve um menino?”. Minha mulher explicou que era uma menina e ela não se conformou: “E seu marido lhe traz flores?”. Quando nasceu a segunda, também levei flores e outra companheira de quarto teve a mesma reação.

Como avalia a formação de médico ginecologista no Brasil?
As universidades públicas de São Paulo formam bons médicos. O problema é que tem proliferado faculdade de qualidade medíocre, o que leva a médicos com formação ruim. Toda semana aparecem médicos acusados de má conduta com mulheres. Na minha época, não nos ensinavam que tínhamos que respeitar a paciente porque estava implícito.

O que o levou a se dedicar a essa área?
Sou de uma família muito humilde. Nasci na maternidade da Universidade Nacional de Córdoba, onde depois me formei. Apenas nasci lá. Meus pais logo se mudaram para Mendoza, em busca de um clima mais seco, porque minha mãe era asmática grave. Moramos em uma casa de adobe, com banheiro fora. Em 1958, meu pai conseguiu comprar um apartamento, com banheiro dentro, aquecimento e até uma geladeira. Mas minha mãe morreu pouco depois e não desfrutou de nada disso. Quando faltava um ano e meio para terminar o colegial, meu pai começou a perguntar o que eu iria fazer e a me dizer: “Lembre que o diploma universitário é o passaporte para sair da pobreza”. Nas férias, ele me levava à Faculdade de Agronomia, em Mendoza, onde era funcionário. Ele era também um entomologista aficionado. Três insetos que descobriu levam o nome dele. Ele me levava para ver os insetos ao microscópio e com a lupa, com o intuito de que eu fosse estudar agronomia.

Acho necessário que a mulher tenha direito a interromper a gravidez quando o método anticoncepcional falha

Não deu certo.
Um dia eu avisei: “Pai, vou estudar psicologia”. Ele falou: “Se você estudar psicologia, não vai sair da pobreza”. Estamos falando de 1960, quando a psicologia era pouco valorizada. Ele, então, disse: “Por que não estuda medicina e se dedica à psiquiatria? Vai fazer o que você gosta, mas com um diploma válido na Argentina”. Fui então estudar medicina em Córdoba, a 700 quilômetros de Mendoza. Na época era como se mudar para outro planeta. Meu pai não podia me manter e logo comecei a trabalhar. Vendi bilhete de loteria, trabalhei em uma gráfica e fiz muita coisa até que acabei como inspetor de ônibus da prefeitura de Córdoba. Durante a faculdade, entrei como estagiário na Maternidade Provincial. Não pagavam, mas davam a opção de fazer as refeições todos os dias no hospital, o que já era uma ajuda imensa. Eu ficava no plantão vendo os médicos mais experientes atendendo parto e fazendo curetagem [raspagem do útero]. Quando me formei, em 1971, fui trabalhar em uma clínica de planejamento familiar em Córdoba, que dependia de uma instituição com sede em Nova York. O pessoal de esquerda dizia que éramos de direita porque colocávamos DIU, uma ação do imperialismo, e o pessoal de direita dizia que éramos comunistas, porque colocávamos DIU. Depois fui para o Uruguai aprimorar minha formação. Ao terminar, em 1973, senti que não estava preparado e encontrei um folheto com a oferta de residência médica no Instituto Mexicano del Seguro Social. Mandei a papelada e, quando voltei para a Argentina, no Natal de 1973, recebi uma carta dizendo que eu tinha sido aceito para uma residência de três anos. Procurei um chefe e perguntei o que fazer. Ele disse: “Vá embora, enquanto é tempo, por seus próprios meios. A situação na Argentina está ficando feia e provavelmente você terá de ir contra a vontade”.

O senhor era militante de esquerda?
Eu tinha participado do movimento estudantil e sido fichado pela polícia. Participava de manifestação e fui preso uma vez. Vendi meu carro, comprei o bilhete aéreo e fui para o México. Minha mulher, que é psicóloga, ficou em Córdoba, esperando que eu alugasse um apartamento para ela ir. Só que tive má-sorte. No primeiro dia de residência, tive uma peritonite apendicular, fui operado e fiquei 20 dias internado. Meus colegas ligaram para minha esposa e avisaram: “Tivemos de internar o Luis. Ele passou por uma pequena cirurgia e seria bom que você viesse para o México”. Quando saí do hospital, alugamos um apartamento. Como não tínhamos dinheiro, compramos só uma cama e uma geladeira. Só comprei travesseiro quando recebi o salário do hospital. Nossas duas filhas mais velhas nasceram no México.

Como foi a residência médica lá?
Sensacional. No Brasil, a residência em gineco-obstetrícia na época era de dois anos. Lá já eram três. Fazíamos anatomia patológica, endócrino, cardiologia, raios X, oncologia e cirurgia geral. Eu trabalhava em um complexo hospitalar com 255 leitos de gineco-obstetrícia e no hospital associado, de gestantes saudáveis, com 350 leitos só de obstetrícia. Nos dois hospitais nasciam 140 bebês por dia. Trabalhávamos 90 horas semanais, mas eu morava na frente do hospital. Vi na minha residência casos que nunca mais voltei a ver na vida, como abscessos abertos no pericárdio, gravidez com ruptura hepática, entre outras coisas.

O que o trouxe à Unicamp?
Em março de 1976, no Congresso Mundial de Ginecologia, no México, encontrei o Anibal Faúndes, que perguntou: “O que vai fazer quando terminar o treinamento?”. Respondi que não sabia, mas que não voltaria para a Argentina. Ele me falou de um argentino em San Antonio, no Texas, começando os estudos de fertilização in vitro, e perguntou se eu queria ir para lá. Mas minha mulher não queria educar as meninas nos Estados Unidos. O Faúndes então me convidou para vir para a Unicamp, onde precisavam de professores. Cheguei sem falar português. Tinha de ensinar os residentes a operar, dar aulas, tocar ambulatório de infertilidade e ajudar na anticoncepção. Vim contratado para trabalhar com infertilidade, não com anticoncepção. Mas abandonei a infertilidade porque logo descobri que o setor público não estava disposto a investir para resolver o problema das mulheres de baixa renda. Custam caro o tratamento com hormônios sintéticos, a fertilização in vitro e qualquer procedimento de reprodução assistida. Em 1982, resolvemos retornar para a Argentina, porque a democracia voltava. Eu me considerava em dívida com o país porque havia me formado médico em universidade pública e gratuita. Mas nos demos mal. Prestei concurso na maternidade provincial, de onde eu tinha saído, passei, mas não me deram o cargo. Abri um consultório, mas não tinha coragem de cobrar. Sempre me lembrava de um professor da Universidade de Mendoza que atendia minha mãe. Quando meu pai perguntava: “Quanto tenho que pagar?”, o médico dizia: “Você não paga nada. Tenho pacientes que pagam por sua esposa”.

Até quando ficou na Argentina?
Voltamos ao Brasil em 1989, quando o Cemicamp conseguiu o primeiro grande projeto da Organização Mundial da Saúde. Vim como gerente desse projeto, para o qual eu tinha conseguido financiamento, com o Faúndes. Uma de minhas tarefas era melhorar a capacidade de pesquisa do departamento, ajudar os colegas a publicar mais em revistas internacionais. Foi uma cultura que desenvolvi, inclusive para mim mesmo, porque comecei a dizer: “Se tenho uma mensagem a dizer, por que não dizer em inglês?”.

Em quase 40 anos aqui, quais as suas contribuições mais importantes?
A maior contribuição são os estudos sobre o uso estendido dos métodos contraceptivos de longa duração. Fomos o primeiro grupo a mostrar que o uso do DIU hormonal mais famoso, o Mirena, da Bayer, aprovado para cinco anos, poderia ser usado por até 10 anos.

Quem engravida é a mulher, mas a responsabilidade de prevenir a gestação deveria ser compartilhada pelo casal

A Bayer não deve ter ficado contente.
Não. Mas depois a Bayer fez um estudo semelhante e hoje o dispositivo está aprovado para oito anos nos Estados Unidos. Aqui, estamos esperando o parecer da Anvisa para estender para o mesmo prazo. O Mirena no Brasil custa R$ 1 mil ou US$ 200. Nos Estados Unidos, são US$ 930. Apesar do preço, as operadoras de saúde preferem pagar, porque é mais barato do que um parto ou uma histerectomia [retirada cirúrgica do útero]. Fomos também os primeiros a mostrar que é possível estender o uso de um implante contraceptivo de nome comercial Implanon NXT, da Organon. Ele foi aprovado para três anos. Mostramos que pode ser usado por até cinco.

De onde veio a percepção de que era possível estender o uso deles?
Os estudos iniciais mostraram que a quantidade de hormônio no final dos cinco anos do Mirena e de três do Implanon ultrapassava os níveis necessários para prover anticoncepção.

Como estão as técnicas de fertilização assistida?
Elas têm evoluído e hoje são uma receita de bolo. O problema é que os custos são altos e precisa-se de laboratório sofisticado. Existe pouco investimento em técnicas de baixo custo. A OMS tenta fazer isso.

O senhor integra um grupo raro de médicos que trabalha na universidade e não tem consultório particular. Por quê?
Por causa de minha experiência na Argentina. Eu sentia uma pressão grande das pacientes particulares no dia a dia. Mas, principalmente, porque sempre considerei que devia devolver à sociedade o que ela deu para minha formação, embora esteja devolvendo no Brasil e não na Argentina.

No final de setembro, esteve na OMS, em Genebra. O que fez lá?
Por causa da Covid-19, fazia quatro anos que nós, dos sete hubs do Programa de Reprodução Humana, HRP, criado em 1972, não nos reuníamos. Ficamos três dias relatando nossos trabalhos sobre infertilidade, violência contra a mulher, morbimortalidade materna ou mutilação genital feminina, para vermos o que estava funcionando ou não. Nos próximos cinco anos, vamos focar em apoio a centros latino-americanos, inclusive no Brasil, para ensiná-los a desenvolver projetos de pesquisa, contatar potenciais financiadores e melhorar o impacto das publicações.

Aposentou-se?
Não tenho fazenda, não sou pescador e moro com minha mulher. Os filhos já saíram de casa. Quando me aposentei, há sete anos, construímos a casa em que moramos, sem degraus. Tem um quarto com banheiro no térreo e dois quartos em cima para quando uma de minhas filhas vem do Texas com os netos. Tudo abre a uma grande varanda, com uma churrasqueira e uma piscina. Trabalho todos os dias. Leio, escrevo, falo com os alunos da graduação, oriento os alunos da pós-graduação e venho ao Cemicamp, onde mantenho projetos de pesquisa. Além dos alunos regulares, estamos com 13 bolsistas estrangeiros, de Moçambique, do Haiti, da Guatemala, do Equador e de Angola, que fazem mestrado ou doutorado em saúde sexual e reprodutiva, de preferência vinculados a projetos financiados pela OMS. Três dias por semana, depois do almoço, vou à academia. Nos outros quatro, ando de bicicleta e leio muito, principalmente literatura. Temos uma biblioteca grande. Sempre que viajo com minha esposa voltamos com livros. Prefiro ler os autores latino-americanos em espanhol.

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