A doença é devastadora. A planta começa a ter manchas, as folhas caem e os frutos ficam com formações estranhas na superfície da casca. Quando detectado o cancro cítrico nas lavouras de laranjas, limões e tangerinas, a ordem – amparada em lei – é erradicar as árvores e deixar o local sem plantio dessas espécies por dois anos. Embora a incidência no Estado de São Paulo esteja abaixo de 1%, o problema preocupa porque, se uma árvore é atingida, é preciso cortar cerca de 100 plantas num raio de 30 metros, causando sérios prejuízos aos citricultores, que gastaram, entre 1999 e 2001, quase R$ 100 milhões com o cancro. Para controlar essa doença provocada pela bactéria Xanthomonas axonopodis pv. citri, a única solução é colocar um batalhão de inspetores em visitas programadas às áreas contaminadas ou suspeitas de contaminação. Outras medidas de controle, fora a erradicação, não resolvem o problema. A pulverização de medicamentos mata a bactéria na parte externa da planta, enquanto, no interior, o microrganismo continua a se reproduzir.
A inspeção é feita por amostragem diretamente no campo – uma em cada cinco árvores -, e cada inspetor analisa cerca de 110 plantas por dia. Mas esse trabalho cansativo e difícil de ser executado, sujeito a falhas humanas, vai ganhar, em breve, uma nova ferramenta, provavelmente em forma de lanterna, dotada de um feixe de laser, que vai facilitar, dar mais precisão e, principalmente, antecipar o diagnóstico do cancro nas plantas. A técnica – inédita no mundo – está em desenvolvimento num dos braços do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), localizado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos (o outro braço fica no Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp), um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP. A pesquisa conta também com o apoio do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), instituição mantida por produtores e indústrias de suco.
Energia absorvida
Para chegar ao detector de cancro cítrico, os professores Vanderlei Salvador Bagnato, coordenador do Cepof, em São Carlos, e Luis Gustavo Marcassa partiram de um fenômeno físico chamado espectroscopia de fluorescência presente em determinadas moléculas que absorvem energia e emitem luz depois de excitadas por meio de uma outra fonte luminosa. “Nesse caso do cancro, quando lançamos um feixe de laser monocromático na cor verde sobre a laranjeira, as substâncias presentes nas bactérias absorvem essa energia e respondem com outra cor, ou melhor, em outra freqüência”, explica Bagnato.
A doença, no entanto, não é verificável somente com o feixe de laser verde. É preciso um visor de cor amarela que barra a freqüência verde para o olho humano. Assim, as lesões da doença ficam mais fáceis de ser identificadas durante uma inspeção. Existem também grandes chances de ser possível a identificação de plantas doentes que não tenham ainda apresentado os sintomas do cancro cítrico. Essa possibilidade, que será testada em laboratório, é totalmente descartada em uma simples inspeção visual.
Bagnato e Marcassa já haviam utilizado o laser e a espectroscopia de fluorescência para diagnosticar diversos tipos de câncer (pele, boca, esôfago, bexiga, pulmões) num projeto que está em desenvolvimento no Cepof. Da mesma forma, um feixe de laser é jogado sobre a região que se quer verificar no corpo humano e a resposta determina o tipo de tumor, se maligno ou benigno (veja Pesquisa FAPESP n° 74). O feixe é conduzido por uma fibra óptica, normalmente utilizada em transmissões telefônicas, composta de sete segmentos. Um serve para enviar a luz, e seis, para coletar a resposta luminosa. Tanto a detecção dos cânceres como a do cancro cítrico são feitas por softwares específicos desenvolvidos pela equipe.Nas plantas, a comparação, feita na tela do computador, permite visualizar em gráficos as freqüências diferenciadas quando a planta está sadia e quando está infectada pela Xanthomonas. O padrão de fluorescência muda da planta normal para a infectada, onde existe alteração metabólica das moléculas proporcionada pela bactéria.
O equipamento que vai para o campo possibilitará, primeiro, um teste visual por meio do uso do feixe de laser e da observação via óculos especial. Depois, se for detectado algum problema, a parte afetada da planta será submetida a uma confirmação da presença do cancro pelo software instalado num lap top que estará acoplado a um sistema de fibras ópticas para coletar o espectro das folhas. A identificação de outros microrganismos presentes nos citros também está nos planos da equipe. “Sabemos que a emissão do laser pode ser igual e as respostas diferentes em cada bactéria ou fungo”, diz Marcassa. “Vamos criar um banco de dados com uma sistemática de detecção de doenças abrangendo o espectro de fluorescência de cada microrganismo de modo a facilitar suas identificações”, relata Bagnato.
Os pesquisadores já obtiveram as respostas preliminares diferenciadas de outras doenças, como a clorose variegada dos citros (CVC), também conhecida como amarelinho, causada pela bactéria Xylella fastidiosa, e do sarampo, doença que ainda não teve seu agente causador reconhecido. No experimento com o cancro foram realizados testes comparativos, confrontando plantas da variedade laranja-pêra rio inoculadas com a Xanthomonas e plantas sadias. Com os primeiros dados em mãos, os dois pesquisadores registraram a nova técnica para detecção do cancro cítrico em patente depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) em abril deste ano.
As pesquisas no Cepof certamente abrem um campo imenso na construção de novos equipamentos que possam auxiliar no diagnóstico de doenças agrícolas sem a necessidade de levar uma amostra para identificação em laboratório. Um procedimento que retarda muito o início do controle das doenças. O desenvolvimento da nova técnica começou há dois anos, quando o engenheiro agrônomo José Belasque Júnior, do Departamento Científico do Fundecitrus, procurou o Instituto de Física de São Carlos. “Queríamos algo para aumentar a eficiência da inspeção”, conta Belasque. “Pensávamos em um óculos ou em pulverizar a planta com uma tinta para que pudéssemos identificar mais facilmente o cancro.”
Folha certa
Atualmente, a inspeção é visual, com pessoal treinado pelo Fundecitrus. “Existem árvores com até 4 metros de altura onde é possível que apenas duas ou três folhas estejam infectadas no meio de 20 a 30 mil”, explica o agrônomo. No procedimento atual, todas as propriedades que apresentaram contaminação são inspecionadas periodicamente e, uma vez por ano, 10% das plantações de citros em São Paulo são sorteadas e inspecionadas. Ao encontrar uma folha com suspeita de cancro, o inspetor convoca o produtor e um representante da Secretaria da Agricultura do Estado ou do Fundecitrus. Só aí a folha pode ser arrancada e levada para um laboratório do Instituto Biológico, que emitirá um laudo.
Se positivo, em apenas uma planta, corta-se um raio de 30 metros ao redor dessa, o que equivale a cerca de 100 árvores. Se o número de exemplares doentes exceder 0,5% do número total existente no talhão (pomares com, no mínimo, 2 mil plantas), toda essa área será erradicada. Aquelas que forem cortadas devem ser queimadas no próprio local e todas as outras árvores de citros da região devem ser investigadas. Na região da Flórida, nos Estados Unidos, país que é o segundo produtor mundial de citros, atrás do Brasil, onde o clima é mais favorável à disseminação da doença, a erradicação é obrigatória num raio de 576 metros.
Prejuízo para todos
A incidência da doença tem caído nos últimos três anos nos estados de São Paulo e de Minas Gerais, regiões onde o Fundecitrus atua. No ano passado, a presença do cancro atingiu 0,07% dos talhões em São Paulo, e em Minas ele não é detectado há dois anos. Mesmo com esse índice baixo, a erradicação representou, desde 1999, o corte de cerca de 3,5 milhões de plantas e prejuízos diretos no patamar dos R$ 100 milhões. Soma-se a esse prejuízo, no Estado de São Paulo, mais R$ 20 milhões anuais em recursos do Fundecitrus e dos governos estadual e federal na inspeção e na erradicação das plantas doentes.
Essa bactéria, portanto, provavelmente originária da Ásia, onde a doença é endêmica, não é como um fantasma que apenas assombra, mas um real inimigo para a maior citricultura do mundo e a segunda agroindústria do Brasil, depois da cana-de-açúcar. Ela movimenta US$ 3,5 bilhões por ano no país e emprega cerca de 400 mil pessoas. A receita gerada na exportação atinge, anualmente, US$ 1,2 bilhão em sucos e frutas in natura.
O peso do cancro na citricultura brasileira, aliás, influenciou a decisão da FAPESP de escolher a bactéria Xanthomonas citri como o segundo patógeno vegetal a ter seu genoma seqüenciado, após o pioneiro da Xylella fastidiosa. “A incidência do amarelinho é maior, chega a 38% no Estado de São Paulo, mas nesse caso não é preciso cortar a planta, controla-se a doença com podas dos pontos atacados e combate-se às cigarrinhas vetoras da bactéria”, explica Belasque. Sempre em parceria com o Fundecitrus, o seqüenciamento da Xylella teve um investimento de US$ 13 milhões, e o da Xanthomonas, finalizado em dezembro de 2000, de R$ 2,2 milhões. Os pesquisadores envolvidos nesses projetos estudam agora as interações químicas dentro de cada genoma e as proteínas sintetizadas pelos genes.
A manutenção da competitividade do setor citrícola brasileiro depende tanto das pesquisas realizadas nos laboratórios do projeto Genoma como no desenvolvimento de novas técnicas e de equipamentos para a detecção de doenças. Belasque acredita que, dentro de pouco tempo, o uso do laser ganhará espaço e importância na identificação do cancro e de outras doenças dos citros. “Esperamos que seja útil também, por exemplo, na identificação precoce da pinta-preta, uma doença causada pelo fungo Guignardia citricarpa.”
Essa doença não atinge todas as regiões do Estado e não envolve erradicação, mas os sintomas só aparecem como pequenas manchas escuras durante o amadurecimento do fruto. “O fungo está ali há muito tempo, mas não é possível sua detecção antes do aparecimento dos sintomas”, explica Belasque. A intenção do Fundecitrus é usar o futuro equipamento de detecção de cancro e de outras doenças via laser também nos locais onde se produzem as mudas, estratégia que pode evitar uma maior disseminação de fungos e bactérias. No caso do cancro, a contaminação pode ocorrer via combinação de vento e chuva e pelo homem, que pode levar a Xanthomonas na mão, na roupa, no sapato, ou ainda em objetos.
Parcerias produtivas
Segundo Bagnato, o primeiro protótipo de um equipamento para ser usado no campo deve ficar pronto dentro de um ano. “Estaremos, assim, cumprindo uma das missões do Cepof, que é estabelecer parcerias para a resolução de problemas da sociedade e do setor produtivo”, diz Bagnato. “Queremos estabelecer uma tradição nesse sentido.” O Cepof, em dois anos, registrou oito patentes, em equipamentos utilizados na medicina e na odontologia, por exemplo.
Além das soluções tecnológicas, o centro promove a pesquisa científica e tem publicado cerca de 40 trabalhos, por ano, em revistas científicas internacionais, elaborados por uma equipe de cinco professores, 45 graduandos com bolsas de iniciação científica, 36 estudantes de pós-graduação (mestrado e doutorado) e três pós-doutorandos. “Outra coisa importante é o sentido multidisciplinar dos nossos trabalhos.” No caso da detecção do cancro cítrico via laser, um engenheiro agrônomo tomou contato com a física da luz e os físicos passaram a entender de doenças vegetais que prejudicam a citricultura.
O projeto
Detecção do Cancro Cítrico por Meio de Laser; Modalidade Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenador Vanderlei Salvador Bagnato – Instituto de Física da USP de São Carlos/Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica; Investimento
R$ 50 mil