A natureza da brutal e periódica perda de luminosidade da enigmática estrela gigante Eta Carinae, que a cada cinco anos e meio deixa de brilhar por aproximadamente 90 dias consecutivos em certas faixas do espectro eletromagnético, em especial nos raios X, pode ter sido finalmente desvendada por uma equipe internacional de astrofísicos comandada por brasileiros. O pesquisador Augusto Damineli e o pós-doutor Mairan Teodoro, ambos da Universidade de São Paulo (USP), analisaram dados registrados por cinco telescópicos terrestres situados na América do Sul durante o último apagão do astro, ocorrido entre janeiro e março de 2009, e colheram evidências de que esse evento literalmente obscuro esconde, a rigor, dois fenômenos distintos embora entrelaçados — e não apenas um, como acreditava boa parte dos astrofísicos.
Primeiro, há uma espécie de eclipse das emissões de raios X desse sistema que, a rigor, é binário, composto de duas estrelas muito grandes: a principal e maior, a Eta Carinae A, com cerca de 90 massas solares, e a secundária, dois terços menor e dez vezes menos brilhante, a Eta Carinae B. O bloqueio da emissão é causado pela passagem da estrela de maior em frente ao campo de visão de um observador situado na Terra. Esse fenômeno, já razoavelmente conhecido e estudado, dura cerca de um mês, não mais do que isso. Como explicar então os outros 60 dias de apagão? A resposta, segundo Damineli e Teodoro, reside na existência de um segundo mecanismo que prolonga a perda de brilho em raios X do sistema Eta Carinae.
Assim que termina o eclipse, as duas estrelas estão a caminho do periastro, o ponto mais próximo entre suas órbitas, da ordem de 230 milhões de quilômetros. Os ventos estelares da Eta Carinae maior, um jato de partículas que escapa permanentemente de sua superfície, passam a dominar o sistema binário, aprisionam os ventos estelares da estrela menor e os empurram de volta contra a superfície da Eta Carinae B. Nesse momento, ocorre o que os astrofísicos chamam de colapso da zona de colisão dos ventos das duas estrelas, que até então estava em equilíbrio.
Em termos de emissão de luz, duas são as consequências do colapso dos ventos, uma proposição teórica até agora nunca observada de fato: estender a duração, às vezes por mais dois meses, da perda de brilho na faixa dos raios X e — eis a grande novidade — promover uma emissão no espectro do ultravioleta. Ou seja, em meio ao apagão em raios X, há um clarão no ultravioleta, que até agora não havia sido reportado. “Os dois fenômenos estão misturados e criam um quadro complexo”, explica Damineli, que há mais de duas décadas estuda a Eta Carinae. “Se eles ocorressem em separado, seria mais fácil divisá-los.”
O novo trabalho dos brasileiros fornece uma explicação mais detalhada da dinâmica de mecanismos envolvidos na cíclica e temporária redução de luminosidade da Eta Carinae, a estrela mais estudada da Via Láctea depois do Sol e uma das maiores e mais luminosas que se conhece. De forma esquemática, o primeiro mês dos costumeiros 90 dias de apagão em raios X poderia ser creditado na conta do eclipse e os dois meses seguintes, ao mecanismo de colapso dos ventos estelares. As evidências apontam nesse sentido, mas as coisas não são tão simples assim.
Se o apagão tem data para começar, parece nem sempre ter para terminar. O último, por exemplo, iniciou-se em 11 de janeiro de 2009, como previsto, mas se prolongou por somente 60 dias, um mês a menos do que o esperado. “Não há necessariamente dois apagões iguais”, afirma Teodoro. “O eclipse parece se estender por cerca de 30 dias, mas o processo de colapso dos ventos estelares tem duração variável.” Aparentemente, esse segundo fenômeno pode durar algo entre 30 e 60 dias.
Esse cenário intrincado foi descrito em detalhes num artigo aceito para publicação no Astrophysical Journal (ApJ). Além de Damineli e Teodoro, que são os principais autores do estudo, o trabalho é assinado por outros 24 pesquisadores do Brasil, América do Sul, Europa, Estados Unidos e Austrália. Dados obtidos no Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), situado em Cerro Pachón, nos Andes chilenos — iniciativa da qual o Brasil é um dos sócios e um dos mais potentes telescópios usados no estudo —, foram fundamentais para registrar indícios dos fenômenos envolvidos no apagão da Eta Carinae. Damineli é o coordernador de um projeto temático da FAPESP que permitirá a instalação no Soar de um espectrógrafo de alta resolução, o Steles.
Moribunda, explosiva e casada
Um dos corpos celestes mais fascinantes da Via Láctea, a Eta Carinae está situada a 7.500 anos-luz da Terra, na constelação austral de Carina, à direita do Cruzeiro do Sul. Nas classificações dos astrofísicos, aparece como uma estrela supergigante da raríssima classe das variáveis luminosas azuis que hoje contabiliza umas poucas dezenas de membros, mas que deve ter sido comum no início do Universo. É um objeto colossal e longínquo, não visível a olho nu, embora um observador treinado possa localizá-lo nas noites de inverno ou outono com um bom binóculo. O diâmetro da estrela principal do sistema é igual à distância que separa a Terra do Sol. Sua luminosidade é ainda mais impressionante, aproximadamente 5 milhões de vezes maior do que a do Sol. Quando sofre seu cíclico apagão a cada cinco anos e meio, deixa de emitir, nas faixas de raios X, ultravioleta e rádio, uma energia equivalente à de 20 mil sóis.
A Eta Carinae se torna uma estrela ainda mais especial por reunir outros predicados pouco comuns. Com apenas 2,5 milhões de anos de existência, cerca de 1.800 vezes mais nova do que o Sol, já é um astro moribundo e potencialmente explosivo. Deve literalmentte ir pelos ares na forma de uma hipernova a qualquer momento entre hoje e alguns milhares de anos. “Sua morte deverá produzir uma explosão de raios gama, o tipo de evento mais energético que ocorre no Universo”, afirma Damineli. Há meros 170 anos, a megaestrela entrou aparentemente numa fase terminal e turbulenta, no auge de sua decadência. Desde então, como nos anos 1840 e em menor escala na década de 1890, sofre grandes erupções em que perde matéria da ordem de dezenas de massas solares e aumenta temporariamente seu brilho. Em 1843, a Eta Carinae se tornou visível a olho nu durante o dia por meses e quase tão luminosa quanto Sirius, a estrela mais brilhante do céu noturno, que se encontra muito próxima à Terra, a uma distância de no máximo 30 anos-luz.
Naquela época, também em consequência da erupção, a megaestrela ganhou um traço que dificulta ainda mais a sua observação: uma densa nuvem de gás e poeira, no formato de dois lóbulos e denominada Homúnculo, passou a envolvê-la. “A Eta Carinae é um objeto particularmente difícil de ser estudado”, comenta o astrofísico Ross Parkin, da Universidade Nacional da Austrália, especialista em criar modelos computacionais que tentam reproduzir a interação dos ventos estelares de sistemas binários e coautor do artigo (uma de suas simulações foi usada no trabalho dos brasileiros). “É complicado vê-la, pois está imersa nesse envelope massivo de poeira.”
O nome de Damineli está ligado à história desse misterioso objeto celeste. Contra a opinião de muitos, teve a primazia de defender, há quase 20 anos, a ideia de que a Eta Carinae era um sistema com duas estrelas, em vez de apenas uma, e que essa dupla de astros luminosos sofria um apagão periódico. “A Eta Carinae não era apenas gorda, era também casada”, diz o professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, com seu talento para cunhar frases tão engraçadas quanto informativas. “Dou todo o crédito dessas descobertas ao Damineli, que foi o primeiro a perceber isso”, diz o veterano pesquisador Theodore Gull, do Goddard Space Flight Center, da Nasa.
O inesperado brilho em ultravioleta em meio ao apagão de raios X em 2009 foi detectado pelos brasileiros de forma indireta, por meio do registro de uma fraca emissão numa linha espectral do gás hélio ionizado, a Hell4686 A. A medição de valores positivos para essa linha é uma espécie de assinatura espectral de que existe uma fonte de raios ultravioleta no lugar observado. “O sinal do hélio ionizado que vimos durante o apagão de 2009 é apenas 20% maior do que o limite capaz de ser medido por telescópios”, diz Damineli. “Mas ele equivale ao brilho de 10 mil sóis no ultravioleta extremo.” A captação do sinal também foi facilitada pelo cerco à Eta Carinae que Teodoro coordenou há dois anos, quando cinco telescópios observaram a estrela em distintos momentos. Tudo isso explica por que nos três apagões precedentes que também foram acompanhados pela comunidade científica (1992, 1997 e 2003) não haviam sido reportadas emissões nessa linha espectral.
Como há mesmo um clarão no ultravioleta durante o apagão em raios X, a melhor explicação para essa ocorrência é a queda dos ventos estelares da Eta Carinae sobre sua irmã menor. “Acho que há uma evidência muito boa de que isso ocorre por um pequeno período de tempo durante o periastro”, afirma o astrofísico americano Michael Corcoran, do Goddard Space Flight Center, um dos coautores do trabalho com os brasileiros. Seu colega Nathan Smith, da Universidade do Arizona, outro estudioso dessa estrela, tem uma opinião semelhante. “Os autores do estudo fizeram um trabalho muito cuidadoso e mediram a linha de emissão do hélio ionizado de uma forma consistente”, diz Smith, que não participa do artigo na ApJ. “A análise deles parece mesmo apoiar a conclusão de que a zona de colisão dos ventos despenca temporariamente sobre a estrela secundária.”
Entender as interações entre os ventos estelares das duas Eta Carinae, a maior e a menor, parece ser essencial para desvendar os fenômenos envolvidos no apagão. Trata-se de um jogo de empurra-empurra desigual, travado por dois contendores bem distintos. Também presente no Sol, o vento estelar é um mecanismo de perda de matéria na forma de um jato de partículas em geral eletricamente carregadas, como prótons e elétrons liberados por um gás ionizado. Por esse mecanismo, a grande Eta Carinae deixa escapar num único dia uma quantidade de massa equivalente à da Terra. Seu vento é bastante denso e viaja a 600 quilômetros por segundo no espaço. “Ele é cinco vezes mais lento do que o vento da estrela secundária, que tem um caráter mais rarefeito”, explica Teodoro.
Durante a maior parte do tempo, os ventos das duas Eta Carinae estão em equilíbrio. Eles se encontram num ponto entre as duas estrelas e essa colisão produz ondas de choque que resultam em emissões de raios X. São essas emissões que deixam de ser captadas da Terra durante o apagão da estrela. Quando as duas estrelas se aproximam demais, o jogo de forças pende claramente para o astro maior. O vento da estrela principal, que funciona como uma parede em relação ao jato de partículas da estrela menor, arremessa de volta o vento da Eta Carinae B. É o tal colapso da região de choque dos ventos estelares, o fenômeno que leva a uma fugaz emissão de ultravioleta em meio ao apagão em raios X.
Segundo dados da astrofísica alemã Andrea Mehner, do Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, o vento da estrela se tornou mais rarefeito nos últimos 10 anos e diminuiu sua densidade em um terço. No entanto, as observações de Damineli não corroboram essa interpretação. Para ele, a densidade do vento da Eta Carinae principal não variou muito na última década. Uma boa chance de colher mais informações sobre o tema polêmico será durante o próximo apagão da estrela, marcado para começar em julho de 2014, quando muitos telescópios voltam a mirar seus espelhos para o astro gigantesco.
O Projeto
Steles: espectrógrafo de alta resolução para o Soar (nº 2007/02933-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Augusto Damineli – IAG/USP; Investimento R$ 1.373.456,33 (FAPESP)
Artigo científico
TEODORO, M. et al. He II 4686 in Eta Carinae: collapse of the wind-wind collision region during periastron passage. The Astrophysical Journal. No prelo.