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Entrevista

Maria Cecília Minayo: Um olhar sociológico sobre a saúde

Pesquisadora emérita da Fiocruz criou metodologias para investigar como a violência afeta a vida de grupos como idosos e policiais

Ana Carolina Fernandes

Maria Cecília de Souza Minayo é uma socióloga que atua em várias frentes de trabalho. Com mais de 60 anos de experiência como docente e há três décadas como pesquisadora, ela ajudou a introduzir as ciências sociais no campo de estudos médicos e da saúde pública no Brasil. A partir da observação de grupos como policiais e idosos, criou metodologias para investigar como diferentes tipos de violência impactam a saúde das pessoas, extrapolando o debate para além da segurança pública. Ao longo de sua trajetória acadêmica, Minayo coordenou mais de 40 estudos sobre as relações entre violência e saúde, bem como orientou cerca de 80 projetos na pós-graduação, incluindo mestrados, doutorados e pós-doutorados.

Professora emérita da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz), Minayo foi presidente da comissão que formulou a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Violência e Acidentes do Ministério da Saúde, na década de 1990. A iniciativa estabeleceu protocolos de conduta para diferentes tipos de violência que afetam os serviços de saúde, como acidentes de trânsito e agressões domésticas contra mulheres e crianças. Seu trabalho mais recente, ainda inédito, é um censo que avalia as condições de vida de idosos no sistema prisional masculino e feminino do estado do Rio de Janeiro.

Aos 86 anos, Minayo segue dando aulas, orientando e coordenando pesquisas. Casada com o químico e sociólogo Carlos Minayo, com quem tem duas filhas e quatro netos, acaba de receber o Prêmio Internacional da Academia Mundial de Ciências (TWAS Awards). Para esta entrevista, ela recebeu Pesquisa FAPESP em seu apartamento no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.


Idade 86 anos
Especialidade
Sociologia
Instituição
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Formação
Graduação em sociologia pelo Queens College da Universidade da Cidade de Nova York (1979), mestrado em antropologia social pelo Museu Nacional-UFRJ (1985) e doutorado em saúde pública pela Fiocruz (1989)

Qual é a memória mais marcante da sua infância?
Nasci em 1938, em um pequeno distrito de Rio Piracicaba, Caxambu, um povoado no interior de Minas Gerais. Entrei na escola com 7 anos sabendo ler, porque minha mãe tinha me ensinado. Dona Ruth, a professora, dava aulas para o primeiro, segundo e terceiro anos, todos juntos. Sinto um profundo respeito e muita gratidão por ela. Todas as crianças desse povoado sabiam ler e escrever, e também matemática, por causa dela. Foi importante para mim ter tido uma educação de qualidade nesse começo de vida. Porém essa escola rural só ia até o terceiro ano e, em geral, as famílias do povoado não incentivavam os filhos a seguirem os estudos. Mas meus pais pensavam diferente. Minha mãe era funcionária dos Correios e meu pai um comerciante, versátil e inteligente, que também foi um importante político local. Eles tinham visão de futuro sobre as mulheres: resolveram matricular minha irmã menor e eu em um colégio em Itabira [MG], chamado Nossa Senhora das Dores. Eu tinha 9 anos e ela 8.

Vocês iam todos os dias até Itabira?
Do colégio até a casa dos meus pais, naquela época, eram nove horas de viagem. Hoje, é um percurso que pode ser feito em uma hora e meia de carro. Antes, a gente precisava ir a cavalo ou de carroça e pegar também um trem. Por causa dessa dificuldade de locomoção, fomos internas na instituição. Só saíamos duas vezes por ano, nas férias. Eu logo me tornei uma das melhores alunas da sala. Mais tarde, fiz o curso de normalista, de formação de professores, na mesma escola. Era o que as mulheres costumavam fazer naquela época para ter uma profissão. Terminei meus estudos com 17 anos, em 1955, e acabei me tornando professora daquele colégio no hoje chamado ensino médio.

Por que a senhora foi morar no Rio de Janeiro?
Trabalhei como professora em Itabira por 10 anos, até 1965. Como o colégio tinha uma unidade no Rio de Janeiro, fui convidada para dar aulas lá. As escolas pertenciam a um grupo religioso muito católico. No final dos anos 1950, em razão de mudanças propostas à Igreja pelo papa João XXIII [1881-1963], foi criado no Rio de Janeiro o Instituto Superior de Pastoral Católica [Ispac]. A instituição ministrava cursos de filosofia, teologia, sociologia, ética e moral, tendo como inspiração as encíclicas de João XXIII, que chamavam os católicos a se engajarem contra a pobreza e a miséria. Matriculei-me nesse instituto e as aulas mudaram totalmente a minha cabeça. Passei a questionar o fato de que a congregação para a qual trabalhava só atendia alunos de classe média e não olhava para a pobreza que nos rodeava.

O que mudou depois dessa experiência? 
Meus pais tinham poucos livros em casa, mas recebiam um boletim chamado São Geraldo que discutia a questão da pobreza e, especialmente, trazia notícias do sofrimento das pessoas na África. Eu sempre fui ávida por leitura. E esse boletim me fazia sonhar. Desde muito nova eu sonhava em me tornar missionária. O curso no Instituto Superior de Pastoral Católica abriu minha cabeça, mas não para negar o catolicismo; continuei ligada à religião. Ao mesmo tempo, comecei a questionar a vida pacata do grupo de professores do qual eu fazia parte, que trabalhava na instituição. Então, na segunda metade da década de 1960, me envolvi com os movimentos sociais. De forma paralela às aulas no colégio, comecei a trabalhar na favela da Penha. Eu levava alunas e colegas para conhecer a realidade desse lugar e dava aulas de educação popular. Passei a fazer o mesmo em outras comunidades do Rio, como o conjunto habitacional Guaporé, situado na zona norte da cidade.

A senhora conheceu seu marido em meio a essas atividades?
Sim. Carlos veio da Espanha para o Brasil no final dos anos 1960 para ser diretor do Departamento de Química da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-Rio]. Ao se deparar com a situação de pobreza do Rio de Janeiro, se engajou também nos movimentos sociais. Naquela época, o país contava com vários cursos de educação popular, que eram ministrados fora das universidades, em espaços informais de conhecimento. Em meados de 1969, trabalhando no Guaporé, conheci Carlos. Ele me contou que tinha ido atuar lá após uma experiência na favela da Rocinha com três amigos. Eles foram morar na comunidade para dar aulas, mas, como estávamos em plena ditadura, a polícia começou a persegui-los, de forma que eles desistiram de permanecer na Rocinha e foram para um lugar menos visado. Mas os meses foram passando e a repressão ficou mais dura. Um dos alvos principais dos militares eram os educadores populares. Muitos começaram a ser presos.

Como a ditadura militar [1964-1985] impactou sua vida?
No colégio católico em que eu dava aulas, tinha uma aluna cujo pai era policial federal. Ele gostava muito de mim, mas não sabia do meu trabalho com educação popular. Um dia, cheguei no colégio e ele estava por lá porque tinha ido buscar a filha. Pedi para falar com ele. Olha a minha ingenuidade. Eu contei a ele que vários colegas que trabalhavam com educação popular estavam sendo presos e pedi conselhos. Ele disse para eu citar os nomes, mencionei duas pessoas e ele falou para ficar longe delas, pois eram “perigosas”. E recomendou que eu sumisse antes que me prendessem também. Fiquei apavorada e resolvi me esconder, mas não podia ir para a casa dos meus pais em Minas Gerais, para não colocá-los em risco.

Nas minhas pesquisas eu não faço segurança pública. Busco compreender como a violência impacta a saúde de crianças, mulheres e idosos

E o que a senhora fez?
Tinha uma amiga que era casada com um dos filhos do editor e livreiro José Olympio [1902-1990]. Ela também trabalhava com educação popular. Telefonei para ela e expliquei minha situação. Disse que tinha a impressão de que estava sendo seguida o tempo todo. Ela morava em uma mansão na lagoa Rodrigo de Freitas e me convidou para morar com sua família por um tempo. Eu me mudei para lá e resolvi pedir ajuda para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil [CNBB] para conseguir soltar meus amigos presos. Mas a situação política só piorava. Decidi sair do colégio em que dava aulas e me mudar para Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde havia um bispo, chamado dom Adriano Hipólito [1918-1996], que protegia as pessoas que atuavam com educação popular e estavam sendo perseguidas. Uma colega do colégio me acompanhou nessa aventura. Ficamos um tempo por lá, sob a proteção desse religioso, recebendo um salário-mínimo cada uma para trabalhar em um movimento coletivo que tinha sido criado por estudantes e intelectuais para educar pessoas daquela região vulnerável.

Como foi sua entrada na faculdade?
Em 1974, ingressei no curso de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. Por causa da ditadura, era um ambiente onde tudo tinha de ser dito de forma cifrada, porque não se sabia ao certo o que pensavam professores e colegas. Apesar disso, foi um período de muita aprendizagem. Eu tirava boas notas em todas as disciplinas e ajudava meus amigos na leitura de obras difíceis, como os livros do filósofo alemão Karl Marx [1818-1883].

A senhora já estava casada?
Não. Em 1971, Carlos foi para a Espanha visitar a mãe, que estava muito doente e acabou falecendo. Quando iria regressar ao Brasil, foi alertado por amigos de que deveria permanecer no exterior. Se voltasse, corria o risco de ser preso. Em um interrogatório, um de nossos colegas que estava preso foi pressionado para fazer denúncias e acabou citando o nome do Carlos, pois sabia que ele estava fora do país. Porém, com isso, ele entrou na mira dos militares. Na mesma época, um advogado que defendia presos políticos me avisou que meu nome também estava sendo mencionado em interrogatórios. Então, resolvi sair do país para encontrar Carlos, mesmo sem terminar a faculdade. Já tínhamos uma relação próxima e decidimos nos casar em 1976, em Nova York, nos Estados Unidos. Estamos juntos de papel passado há 48 anos.

Como foi a vida no exílio?
Em Nova York viviam vários brasilianistas renomados que apoiavam os brasileiros. Um deles era o historiador e antropólogo Ralph Della Cava, do Queens College, da Universidade da Cidade de Nova York. Ele conseguiu uma vaga para mim naquela universidade, onde finalizei a graduação em 1979. Nessa época, havia um grupo na França que reunia intelectuais e membros da Igreja Católica para financiar os exilados em várias partes do mundo. Esse grupo era presidido pelo pedagogo e educador Paulo Freire [1921-1997], que estava exilado em Paris. Eu e meu marido recebíamos US$ 500, o que nos mantinha nos Estados Unidos.

E quando retornaram ao Brasil?
Em 1979, com a Lei de Anistia. Eu já estava grávida de minha segunda filha. A neurose de ser preso era tão grande que na viagem inteira de volta, no avião, Carlos ficou rasgando papéis, com medo de a polícia encontrar qualquer coisa que pudesse incriminá-lo. Mas passamos na alfândega sem contratempos.

Como vocês reorganizaram a vida, sem emprego e com duas filhas pequenas, depois do exílio?
Ficamos três anos nos Estados Unidos e a PUC cancelou o contrato com Carlos. Na volta, durante 10 anos, fiz trabalhos de tradução e algumas atividades com o Fundo das Nações Unidas para a Infância [Unicef], como a criação de um centro comunitário na Rocinha. Também iniciei minha trajetória acadêmica. Já Carlos foi recontratado pela PUC-Rio após dois anos da nossa chegada. Começou também a dar aulas na Fundação Getulio Vargas [FGV] e, mais tarde, foi convidado para atuar na Fiocruz.

As administrações se modernizaram, mas o meio policial continua seguindo as mesmas normas de comando e disciplina

Qual foi o tema de seu mestrado?
Fiz minha dissertação em antropologia social no Museu Nacional da UFRJ entre 1981 e 1985. Meu orientador foi o pedagogo com doutorado em história Victor Vincent Valla [1937-2009]. Estudei as condições de vida de trabalhadores da indústria extrativa de minério de ferro em Itabira. Depois da defesa, comecei a dar aulas na PUC e me envolvi com um projeto que procurou investigar as diferentes situações de pobreza existentes no Brasil. A pesquisa foi financiada pelo Ministério do Planejamento. Durante três anos, eu e uma equipe realizamos trabalho de campo em cinco áreas pobres do Rio de Janeiro, entre elas as favelas da Rocinha e Roquete Pinto, esta última uma favela de palafitas. Finalizei o mestrado e, no mesmo ano, entrei no doutorado na Fiocruz.

Como foi a chegada de uma socióloga a uma instituição que, naquela época, era focada em pesquisas na área médica e em saúde pública?
Quando ingressei na Fiocruz, senti que tinha encontrado o meu lugar, onde podia unir a preocupação com o social e minhas ambições acadêmicas. No doutorado, que defendi em 1989, criei uma metodologia para desenvolver pesquisa social qualitativa na área da saúde. Essa abordagem estuda aspectos subjetivos de fenômenos sociais e do comportamento humano, por meio de métodos como entrevistas individuais ou em grupo, análise de documentos e observação. A metodologia que criei partiu do meu conhecimento teórico sobre o tema, mas também por meio das diferentes atividades que realizava naquela época. Por exemplo, na Fiocruz, eu ministrava aulas de pesquisa sociológica para médicos da pós-graduação que cursavam mestrado ou doutorado. Eles estavam acostumados a atuar com atenção de saúde pública epidemiológica de grandes grupos, mas não sabiam olhar para as pessoas de forma particular. Nas aulas, eu mostrava a eles a importância dessas análises individualizadas e me deparava com perguntas que me obrigavam a repensar o modo como explicar o impacto dos problemas da saúde na vida social. A partir dessas experiências, minha tese aborda as teorias, metodologias, estratégias, técnicas e exemplos práticos para a realização de pesquisa social em saúde. O trabalho de doutorado foi publicado em livro, sob o título O desafio do conhecimento [Hucitec Editora, 1992]. A obra já está em sua 15ª edição.

E como a violência virou seu tema de pesquisa?
Ainda na década de 1980, o importante pesquisador colombiano Saul Franco veio para a Fiocruz, fugindo da perseguição do narcotráfico. O sanitarista Sérgio Arouca [1941-2003] era presidente da instituição. Ele e Saul consideravam que a Fiocruz precisava criar linhas de pesquisa para investigar como a violência afeta a saúde, algo que o pesquisador colombiano desenvolvia em seu país. Franco atua há 40 anos pesquisando a violência e o conflito armado na Colômbia e seus impactos na vida e na saúde das pessoas. A violência é um fenômeno sócio-histórico e, por si só, não é uma questão de saúde pública nem um problema médico. Mas ela impacta a saúde em diferentes dimensões. Provoca mortes, lesões, traumas físicos, agravos mentais e emocionais. Reduz a qualidade de vida das pessoas e reverbera nos sistemas de saúde, trazendo novos problemas para o atendimento médico preventivo ou curativo. Arouca me convidou para liderar essa linha de estudos na Fiocruz. Aceitei o desafio junto com duas colegas que são minhas parceiras de pesquisa até hoje: a epidemiologista Simone Gonçalves de Assis e a psicóloga Ednilza Ramos de Souza. Elas são grandes companheiras, jamais largamos a mão uma da outra.

O que fizeram a seguir?
Começamos a investigar a situação do município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que tinha as maiores taxas de mortalidade por violência do estado do Rio. Nessa época, pouca gente trabalhava com violência e saúde no Brasil. A jurista especialista em saúde pública Maria Helena Prado de Mello Jorge, da USP [Universidade de São Paulo], era uma delas. Com a pesquisa em Caxias, demonstramos que não apenas a violência impactava na saúde das pessoas, como o próprio sistema de saúde, muitas vezes, era violento. O estudo serviu de base para a criação, no final dos anos 1980, do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde [Claves] da ENSP.

Suas pesquisas sobre violência e saúde tiveram papel importante na formulação de políticas públicas. Pode falar sobre alguma delas?
Em 1998, o Ministério da Saúde me convidou para atuar como presidente de uma comissão para formular a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Violência e Acidentes. O programa estabelece protocolos de conduta para diferentes tipos de violência que chegam aos serviços de saúde, mas é uma iniciativa difícil de ser colocada em prática. Muitos profissionais não acreditam, não gostam, ou não querem saber dela. Por exemplo, quando chega uma criança machucada no posto de saúde, ou uma mulher com o braço quebrado, é preciso identificar se esses casos configuram violência doméstica. No geral, os médicos tratam o braço quebrado e outros ferimentos, mas não perguntam as causas de aquilo ter ocorrido. Eles precisam saber encaminhar o problema para psicólogos, para o Conselho Tutelar ou para a delegacia da mulher.

Essa política foi implantada na década de 1990?
Não. Foi promulgada apenas em 2001, demorou a ser institucionalizada pelo Estado, com o nome de Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Violência. Ela foi, primeiro, adotada na parte relativa a acidentes. Foi um dos elementos que colaboraram, por exemplo, para a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência [Samu], em 2003. Entre 2003 e 2016, a proposta se consolidou. Foram estabelecidos núcleos de formação para abordar os protocolos de conduta em todos os estados, nos grandes municípios. O Claves tem uma parceria com o Ministério da Saúde para realizar esses cursos de formação, que são dirigidos a profissionais da saúde indicados por secretários estaduais e municipais. Esses cursos buscam formar profissionais para lidar devidamente com o problema. Porém, a partir de 2016, o processo de institucionalização da política estagnou.

A violência contra idosos é historicamente naturalizada. Os velhos sempre foram maltratados em nossa sociedade

Qual é a situação dessa política atualmente?
Vivemos um momento de retomada, mas ainda há muito o que fazer. A pedido do Ministério da Saúde, estamos finalizando uma nova avaliação do programa. Identificamos que a área que mais absorveu essa política é a de atenção primária em saúde, que é a principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde [SUS]. Conforme a definição do ministério, a atenção primária abarca um conjunto de ações para promover e proteger a saúde, prevenir agravos, realizar diagnósticos, tratamentos e a reabilitação de pacientes. Mas ainda falta muito para que a política seja institucionalizada.

Poderia falar sobre esse viés de pesquisa, que olha para a violência pensando em questões para além da criminalidade?
Sempre digo que nas minhas pesquisas eu não faço segurança pública. O que busco é compreender como a violência, as agressões, impactam a saúde de crianças e adolescentes, mulheres, idosos, trabalhadores. E isso tanto no âmbito individual, na vida de cada pessoa, como no sistema como um todo, na medida em que essas violências acabam escoando para os serviços de saúde.

Foi com essa abordagem que a senhora pesquisou as organizações policiais?
Realizei junto com minhas colegas duas pesquisas com policiais. A primeira foi com os civis e a segunda com os militares. Nos meus estudos, mostro como eles padecem dos efeitos da violência que convivem no dia a dia. Esses profissionais se queixam de que são tratados por parte da sociedade de forma generalizada, como se todos os policiais agissem de maneira errada. Reclamam da falta de reconhecimento social e também dentro da própria instituição.

Quais são os desafios enfrentados pela polícia hoje no Brasil?
É uma profissão difícil em todo o mundo, mas aqui há desafios maiores em comparação com os Estados Unidos ou países da Europa. A formação em direitos humanos oferecida aos policiais é insignificante e os salários são muito baixos. O mundo se modernizou, as administrações se modernizaram. No meio policial não é assim. Eles continuam seguindo as mesmas normas de comando, disciplina e ordem de antigamente, sobretudo na Polícia Militar, a maior do país. Só em São Paulo temos mais de 90 mil policiais militares. No Rio, são mais de 40 mil.

Como esses problemas impactam na saúde mental desses profissionais?
Escutei de diversos comandantes sobre como eles se sentem solitários, porque precisam dar ordens e aguentar as consequências sozinhos, sem o suporte da instituição. O pessoal do oficialato, em geral, tem mais problemas de saúde mental do que os soldados. Isso porque os soldados, apesar de ganharem pouco, agem conforme as ordens passadas, enquanto os cargos de alto escalão carregam um peso imenso por ter de tomar decisões que impactam na vida de todos os policiais. Eles são obrigados a ir ao enterro de colegas, o que os afeta muito, pois é como se eles se deparassem com a própria morte. Ao mesmo tempo, muito se recusam a buscar atendimento psicológico. Nas minhas pesquisas, escutei vários deles dizerem que não eram mulherzinhas nem malucos. A única pessoa que costumam ouvir é o capelão. E, se a única pessoa que eles escutam é o capelão, então a saída é que o capelão também seja psicólogo. Acompanho de perto essa questão não apenas na academia, mas também no âmbito familiar. Um dos meus genros é instrutor de tiro e especialista em sequestros na Polícia Civil do Rio. A maior quantidade de horas-aula da formação dos policiais é em treinamento de tiro. Ele, que dá aulas na Academia de Polícia e para policiais militares, costuma dizer que uma das coisas mais importantes no ofício de policial é aprender a não atirar em tudo o que vê. Mas e como ficam as questões humanas, inclusive as deles próprios?

Com tantas atividades, sobra tempo para ter hobbies?
Faço ginástica uma vez por semana e gosto muito de ler. Nas férias de janeiro, por exemplo, devorei cinco livros de literatura. Também sou muito próxima das minhas filhas. Tenho um neto, duas netas e uma quarta neta que chega agora, em maio. São a alegria da minha vida e todos são muito inteligentes. Uma das minhas netas, de 9 anos, está escrevendo um livro para a irmãzinha que vai nascer.

Na ditadura, pedi para o pai policial de uma aluna me ajudar a encontrar amigos presos. Ele me disse para sumir, antes que me prendessem

O que está pesquisando no momento?
Ultimamente, tenho estudado muito a questão dos idosos dependentes, que são os que mais sofrem nessa faixa etária, independentemente da classe social. Como não conseguem ter autonomia para levar a vida, ficam esquecidos. Faço pesquisa empírica e já mapeei diversos casos de pessoas que vão trabalhar e deixam os idosos sozinhos, deitados na cama, sujos e sem comer. Eu ando empenhada em levantar subsídios para que o Brasil crie uma política específica para idosos dependentes. O Canadá, os Estados Unidos e a Europa têm iniciativas nesse sentido, que partem dos governos centrais e articulam a participação de governos locais, empresas e sociedade civil. Assim, a família não fica abandonada nessa empreitada. Também estou finalizando uma pesquisa sobre idosos em prisões do Rio de Janeiro. Minha parceira, a psicóloga Patrícia Constantino, também da Fiocruz, coletou os depoimentos em todos os cárceres do estado e realizou os trabalhos de campo. Há relatos e achados impressionantes. A maioria dos idosos encarcerados no estado estudou só até a quarta série, 15% não sabem ler nem escrever, mas, por outro lado, 81% deles nutrem expectativas positivas em relação à vida social no futuro. Apesar de ser um tema de pesquisa bem atual, investigo a violência contra idosos desde 1995. Essa violência é historicamente naturalizada. Os velhos sempre foram maltratados em nossa sociedade. Décadas atrás, eram jogados de pirambeiras, ficavam sem comer. É um mito a ideia de que, no passado, eles eram mais bem tratados. Hoje, o Brasil conta com o Estatuto do Idoso [Lei nº 10.741, 2003], que foi um marco importantíssimo na proteção desses indivíduos no país.

E quais são seus projetos para o futuro?
Por causa do estudo sobre a população de idosos encarcerados no estado do Rio de Janeiro, recebi, neste ano, um convite do Ministério da Saúde para coordenar uma pesquisa sobre as condições de saúde da população carcerária, como um todo, no país. É um grande desafio, mas resolvi aceitar. A gente vai envelhecendo, mas segue fazendo pesquisas, dando aulas, orientando projetos e publicando livros. Ter propósito faz bem e me faz acreditar no futuro. Sou grata à vida e à generosidade dos que me cercam.

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