No início dos anos 1980, a matemática carioca Marilda Antonia de Oliveira Sotomayor, na época com 39 anos, partiu para um pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, com a esperança de trabalhar com o matemático norte-americano David Gale (1921-2008) e ganhar independência científica em um ramo da matemática econômica conhecido como teoria do crescimento econômico, área de pesquisa de seu doutorado. Sua expectativa foi frustrada quando, no primeiro encontro com Gale, ouviu dele: “Não trabalho mais com essa área”.
Desapontada, passou os dois meses seguintes na biblioteca em busca de um problema novo em crescimento econômico para tratar no pós-doutorado, até que seguiu uma sugestão do marido. Pediu uma conversa com Gale e perguntou em que ele estava trabalhando. Ele lhe disse que estava intrigado com um problema na área de matching que acreditava ter solução, mas não tinha conseguido demonstrá-la. Sotomayor trabalhou no fim de semana e, na segunda-feira, apresentou o resultado ao economista. Foi assim que ela entrou e aos poucos se tornou uma referência mundial no campo conhecido como mercados de matching, um ramo da teoria dos jogos com aplicações na economia, em que agentes podem ser pareados de acordo com suas preferências.
Inspirada pela carreira da mãe, Sotomayor graduou-se em matemática e planejava tornar-se professora do ensino superior. Mas, estimulada pelo marido, o peruano naturalizado brasileiro Jorge Sotomayor, matemático como ela, entrou de cabeça na vida acadêmica. Ela organizou congressos sobre teoria dos jogos dentro e fora do Brasil e ajudou a internacionalizar e a tornar essa área conhecida no país. Três congressos ocorreram na Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou durante 17 anos, com a participação de seis prêmios Nobel de Economia com quem mantinha relação de amizade. Com um deles, Alvin Roth, escreveu um livro, que considera “o trabalho mais importante de sua carreira”.
No ano passado, em meio à pandemia, Sotomayor foi eleita membro da American Academy of Arts and Sciences, selecionada na categoria ciências sociais, na área de economia. “Essa honra mostra a alta consideração que especialistas de seu campo e membros em todo o país têm por você”, informou a instituição ao lhe comunicar a honraria. Mãe de um casal de gêmeos, hoje com 34 anos, a matemática concedeu a entrevista a seguir por e-mail, em meio a uma longa reforma em sua casa, no Rio de Janeiro.
Especialidade
Mercados de matching, uma subárea da teoria dos jogos
Instituição
USP, UFRJ e FGV-RJ
Formação
Graduação em matemática pela UFRJ (1967), mestrado em matemática no Impa (1972), doutorado em matemática na PUC-RJ e no Impa (1981) e pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley
Produção
Cerca de 50 artigos científicos, um livro, em coautoria, e quatro capítulos de livros
Poderia explicar de maneira simples o que é a teoria dos jogos e o ramo em que a senhora trabalha, os mercados de matching?
A teoria dos jogos é uma teoria matemática que estuda situações de decisão, em que dois ou mais agentes interagem entre si, segundo regras bem determinadas. Tem sido aplicada a diversas áreas, como economia, biologia e computação. Na economia, um dos ramos em que ela mais tem apresentado aplicações é a teoria dos mercados de matching, que teve origem em 1962 com o artigo “College admissions and stability of marriage”, de autoria de David Gale e do matemático Lloyd Shapley (1923-2016), publicado na revista científica The American Mathematical Monthly. Nesse trabalho, os autores descrevem o mercado de admissão dos estudantes às universidades nos Estados Unidos.
Como se liga estudantes chegando à universidade à teoria dos jogos e ao matching?
Um mercado de matching se configura como um jogo cooperativo, do ponto de vista da teoria dos jogos. É um modelo matemático que representa situações que ocorrem em um ambiente em que os participantes podem se comunicar livremente uns com os outros, fazer ofertas e contraofertas com a finalidade principal de formar pares. Em algumas situações, um mesmo agente pode ser parte de vários pares. Se um par é formado, os parceiros negociam um contrato ou acordo sobre os termos que definem sua participação na parceria. Naturalmente cada participante tem preferências sobre as possíveis transações em que poderiam entrar. Existem regras determinando o que cada um pode e não pode fazer. Um resultado da operação desse mercado pode ser apenas um matching, isto é, um conjunto de pares que não violam as regras do mercado.
Poderia dar um exemplo?
É o caso do mercado de admissão de estudantes às universidades. Esse mercado consiste em um conjunto de universidades e outro de estudantes. Os estudantes têm preferências sobre as universidades nas quais gostariam de ingressar e [pelo sistema norte-americano] as universidades têm preferências sobre os estudantes que desejariam admitir. Essas preferências podem ser elaboradas, por exemplo, a partir de um vestibular ou por meio de testes, como ocorre no mercado de admissão dos candidatos aos cursos de mestrado no Brasil. Naturalmente, cada universidade dispõe de um número máximo de estudantes que poderia receber. Nesse mercado, um matching é a distribuição dos estudantes pelas universidades, que respeita o número de vagas das universidades de tal modo que nenhum estudante seja associado a mais de uma universidade. Um estudante pode ficar sem escola e uma universidade pode não preencher todas as suas vagas.
Quais os conceitos-chave para entender essas situações?
A noção-chave é a de estabilidade, definida por Gale e Shapley, que captura a ideia de equilíbrio do mercado. No exemplo das universidades e dos estudantes, um matching é estável se a distribuição dos candidatos entre as vagas é feita de forma que os dois grupos estejam satisfeitos, no sentido de que não seja possível a nenhum participante obter um parceiro mais preferível. Dito de outra forma, a estabilidade se dá se não existem uma universidade e um estudante que não estejam associados entre si pelo matching, mas tal que o estudante prefere a universidade àquela para a qual foi designado ou prefere a universidade a ficar sem escola, caso ele tenha ficado sem escola pelo matching. Por outro lado, a universidade prefere o estudante a algum outro que admitiu ou prefere o estudante a ficar com uma vaga a preencher, caso isso tenha ocorrido no matching. Gale e Shapley mostraram que um matching estável sempre existe para o mercado de admissão de estudantes às universidades e ofereceram um procedimento matemático para determiná-lo.
A importância da teoria dos matchings foi reconhecida com o Prêmio Nobel dado a Shapley e Roth em 2012
Essa ideia tem outras aplicações?
Em outros mercados, além de um matching, são especificados os ganhos monetários obtidos por cada participante nas negociações realizadas. É o que ocorre num mercado de trabalho, formado por empresas e trabalhadores. Cada empresa deseja contratar certo número de trabalhadores e cada trabalhador deseja se empregar em uma firma. Se uma empresa e um trabalhador formam uma parceria, então esses agentes deverão negociar o salário do trabalhador com base na produtividade dele, levando em conta o que os outros pares no mercado negociaram. Naturalmente, existe um valor de reserva para cada agente [empresa e trabalhador], representando o ganho monetário mínimo que aceitaria receber em cada parceria que puder formar – para o trabalhador, o valor de reserva é o menor salário que aceitaria receber de uma firma; para a firma, é o menor lucro líquido que estaria disposta a ganhar numa parceria com um trabalhador. Um resultado para esse mercado consiste de um matching, que especifica quem trabalha para quem, juntamente com os salários dos trabalhadores e os lucros líquidos das firmas. Um tal resultado é estável se todos os agentes estão recebendo um valor maior ou igual ao seu valor de reserva e, além disso, não existem uma firma e um trabalhador não associados entre si pelo matching, tal que a firma pode pagar um salário ao trabalhador maior do que o que ele está recebendo e, ainda, obter um lucro líquido maior do que o que está obtendo com algum de seus parceiros correntes, no caso, todos os trabalhadores associados a ela pelo matching.
Por que os matchings interessam para a economia?
Porque refletem o comportamento de pessoas em mercados da vida real. A teoria dos matchings fornece modelos matemáticos para esses mercados. Por meio desses modelos podemos compreender e detectar as falhas desses mercados, o que pode ajudar a organizá-los melhor ou a consertá-los quando eles quebram. Em 2012, a teoria dos matchings recebeu o reconhecimento de sua importância para a economia com o prêmio Nobel em Economia concedido ao matemático Alvin Roth e a Lloyd Shapley. Shapley, juntamente com Gale, foi o fundador da teoria e Roth liderou a sua aplicação aos mercados da vida real. Gale também teria ganhado o prêmio se estivesse vivo, mas faleceu em 2008.
Como foi seu trabalho e sua amizade com Gale e Roth?
Escrevi com Roth o trabalho mais importante de minha carreira, Two-sided matching: A study in game-theoretic modeling and analysis. O livro foi publicado em 1990 e recebeu o prêmio Lanchester, da Operations Research Society of America, o mais cobiçado na área de pesquisa operacional. Tenho uma relação de amizade com ele e com Robert Aumann, Eric Maskin, Roger Myerson e Paul Milgrom – todos vencedores do Nobel. Também era muito amiga de Shapley e de John Nash (1928-2015) e construí uma relação muito especial com Gale, com quem escrevi vários trabalhos. Meu primeiro artigo sobre matchings foi feito em coautoria com ele durante o pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1983. O artigo foi publicado no American Mathematical Monthly no ano seguinte.
Como a senhora conheceu esses acadêmicos?
Com exceção de Nash, que encontrei pela primeira vez em 1995 em um congresso em Jerusalém em homenagem aos 65 anos de Aumann, todos os outros ainda não eram Nobel quando os conheci. Exceto Alvin e Gale, o primeiro contato se deu nas conferências de teoria dos jogos em Stony Brook, o mais importante evento internacional da área, que começou nos anos 1980. Em 1991 fui convidada para dar uma palestra plenária e a partir daí comecei a frequentá-lo. Fui a organizadora científica do congresso em 2006 e, no ano seguinte, organizei, em nova edição desse congresso, um evento de um dia chamado Gale’s Feast, em homenagem aos 86 anos de David Gale. Ele compareceu com a família. Quase todos estiveram no Brasil por ocasião dos congressos de teoria dos jogos que organizei na USP [Universidade de São Paulo], alguns mais de uma vez.
Como foi sua trajetória até chegar ao matching?
O caminho a partir da graduação na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] até o mestrado no Impa [Instituto de Matemática Pura e Aplicada] foi natural e motivado pelo meu desejo de aprender mais e poder ser professora de ensino superior. Ouvi falar do Impa no último ano da licenciatura. A minha turma convidou o professor Lindolpho de Carvalho Dias, então diretor do Instituto de Matemática da UFRJ, para um bate-papo informal. Nessa conversa soube que ele também era diretor do Impa e que lá eu poderia fazer cursos de iniciação científica para complementar minha licenciatura, visando um ingresso posterior no programa de mestrado em matemática. Fiquei muito animada com a possibilidade de continuar os meus estudos e no ano seguinte comecei a estudar no Impa com uma bolsa da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] em parceria com a Fundação Ford. Durante o mestrado, no início dos anos 1970, fui contratada pela PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio, onde trabalhei por 25 anos. O ambiente de trabalho intelectualmente estimulante no Departamento de Matemática da instituição, onde lecionei, e meu casamento com um professor do Impa, grande entusiasta da carreira científica, influenciaram minha decisão de ingressar no programa de doutorado do Departamento de Matemática da PUC, realizado em parceria com o Impa. Nele, obtive o título de doutora em ciências matemáticas com uma tese na área de economia matemática. Meu interesse em tornar-me pesquisadora em mercados de matching surgiu no pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Como era seu trabalho na PUC-RJ?
Ensinar sempre foi muito absorvente e gratificante para mim. Quando voltei de Berkeley, necessitava de espaço para desenvolver minha área de pesquisas. Porém, teoria dos jogos não era uma área considerada de interesse pelo meu departamento na PUC. Assim mesmo, assumindo uma sobrecarga de trabalho, consegui oferecer um curso de matching e atrair a melhor aluna do Departamento de Matemática, que fez sua dissertação de mestrado em mercados de matching sob a minha orientação. Permaneci na PUC até 1993, quando, por meio de um concurso para professor titular, mudei para o Departamento de Economia da UFRJ. Quando lá me aposentei, migrei para o Departamento de Economia da USP, em 1997.
Em que momento a senhora se interessou pela teoria dos mercados de matching?
Pretendia fazer meu doutorado em processos estocásticos [processos que evoluem conforme variáveis aleatórias, em teoria das probabilidades]. Depois de dois meses de leitura nessa área, meu orientador, Jack Schechtman, me apresentou um problema na área de crescimento econômico: “Não é sobre processos estocásticos”, disse. “Mas não se preocupe, só quero saber como você se sai em economia matemática.” O modelo econômico estava pronto e só precisei entrar com a matemática. Tratava-se de uma generalização do problema de tese do Jack, que fizera seu doutorado com Gale, então professor titular do Departamento de Matemática na Universidade da Califórnia. E foi assim que esse problema gerou a minha tese de doutorado em 1981. Foi publicada no Journal of Economic Theory, em 1984, com o título “On income fluctuations and capital gains”. Ocorreu então que, depois do doutorado, para continuar trabalhando nessa área, necessitava ganhar independência científica. Surgiu, por fim, a ideia de fazer um pós-doutorado com Gale. Pedi uma bolsa de pós-doutorado ao CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e fui para Berkeley, em fevereiro de 1983, com a esperança de aprender mais sobre crescimento econômico e ganhar a independência científica almejada. Chegando lá, expus a minha tese para Gale. No final de minha apresentação, ele me parabenizou, mas para meu desapontamento me comunicou em tom solene: “Não estou mais interessado nessa área”.
E o que fez?
Passei dois meses frequentando a biblioteca e tentando encontrar algum problema novo em crescimento econômico que me interessasse. Certo dia, meu marido, que também estava num programa de pós-doutorado em Berkeley, chamou minha atenção para o fato de que eu não estava aproveitando a oportunidade de estar tão próxima de um matemático tão notável como Gale. “Por que não lhe pergunta qual o assunto sobre o qual ele está interessado e tenta aprender esse assunto, seja ele qual for?”, ele sugeriu. Por mais absurda que a ideia de aprender algo novo em matemática, em tão pouco tempo, pudesse me parecer, fiz o que ele me sugerira. Gale me respondeu que estava interessado em mercados de matching e me entregou três artigos e um livro para ler. Um dos artigos era o escrito por ele e Shapley sobre os estudantes e as universidades. Procurei entender as definições e as demonstrações dos resultados. Algumas semanas depois devolvi a Gale o material que me emprestara. Eu não tinha nenhuma ideia do que fazer com todo aquele conhecimento novo, mas tinha a esperança de que ele pudesse me apontar alguma direção. Tive então outro desapontamento: “Bem, eu não tenho nenhum problema para você”. Quando já estava saindo de sua sala ele me chamou de volta com um papel nas mãos: “O único problema que tenho é essa proposição, que estou tentando demonstrar há algum tempo sem sucesso. Se ela for verdadeira, será possível demonstrar o teorema de Lester Dubins [1920-2010] e David Freedman [1938-2008] em três linhas. Seria ótimo ter uma demonstração mais curta desse resultado porque então se poderia ensiná-lo em apenas uma aula”, disse ele.
Sempre fui boa aluna em matemática. Aos 9 anos, recebi um prêmio por ter tirado a maior nota na prova final
A senhora conseguiu?
Mesmo sem me dar conta da importância, tanto de ordem prática como teórica desse resultado, encontrar uma prova mais curta para ele era um grande desafio. Fui para casa com aquele papel e trabalhei, com afinco, no fim de semana. Foi difícil esperar pela segunda-feira para mostrar minha demonstração ao Gale. Quase no final de minha apresentação, ele começou a bater palmas e a exclamar muito empolgado: “Você provou! Você provou”. Começou aí meu percurso num campo de pesquisas quase inexplorado até então, que contava somente com uma meia dúzia de artigos, mas que abria as portas para o surgimento de uma teoria matemática, com muitas aplicações à economia, e que receberia, ao longo dos anos, a contribuição de inúmeros matemáticos e economistas, conquistando finalmente o seu reconhecimento com o Nobel de Economia em 2012.
Seu marido também é matemático?
Sim. Em 1970, já professora da PUC-RJ, casei-me com ele, que já era um matemático renomado e me deu o seu exemplo, dividiu comigo as tarefas domésticas, criou comigo dois filhos e foi o maior incentivador na minha carreira. Atualmente, Jorge é professor titular aposentado da USP. Trabalha em sistemas dinâmicos [espécie de função que representa os valores que uma variável assume ao longo do tempo, como a que representa o balanço do pêndulo de um relógio]. Eu o conheci no Impa, em 1970, onde ele foi professor titular por mais de 20 anos. É peruano, hoje naturalizado brasileiro. Veio para o Brasil em 1962 para estudar sistemas dinâmicos com Maurício Peixoto [1921-2019], professor e um dos fundadores do Impa. Terminou o doutorado em 1964.
Quando surgiu seu interesse pela matemática?
Fui boa aluna em matemática desde criança. Aos 9 anos, recebi um prêmio em dinheiro por ter tido, entre os estudantes da quarta série primária [atual ensino fundamental] do bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, a maior nota na prova final de matemática. Foi sempre muito estimulante intelectualmente para mim o desafio de resolver problemas matemáticos. Mas foi no quarto ano do ginásio, da Escola Normal Carmela Dutra, no Rio, na qual me formei, em 1961, professora primária, que descobri que queria ser docente de matemática de curso médio. Nosso professor de matemática era muito temido entre as alunas, conhecido por dar provas difíceis. Tive nota 10 em todas as provas no decorrer do ano, ganhando assim uma competição com quatro de minhas colegas, que perderam o 10 na última prova.
Sua mãe era professora de matemática?
Tradicionalmente, em todos os países do mundo, os homens têm o respaldo da família e da sociedade para realizar com sucesso seu trabalho, enquanto as mulheres, em geral, estão ainda buscando seus direitos. Para se ter sucesso na carreira científica, é necessário muito tempo de dedicação à pesquisa, participação em congressos importantes, visitas a centros de pesquisa, interação com outros pesquisadores etc. As mulheres da minha faixa etária viveram numa época em que tudo isso era muito difícil para elas. Era inconcebível que uma mulher, casada ou solteira, viajasse sozinha para o exterior ou tivesse colegas de trabalho do sexo masculino e, se casada, tivesse compromissos outros que não fossem com o trabalho no lar, com os filhos e o marido. Elas viviam à sombra do sucesso profissional do cônjuge. Perdiam sua identidade, mas se orgulhavam de serem conhecidas como sra. X ou esposa do dr. Y. A única profissão bem-vista para as mulheres era a de professora de crianças, porque naquela época não havia professores homens nas escolas primárias. Uma minoria foi para a universidade. No meu caso, tive o privilégio de ser filha de uma professora de matemática de ensino secundário que estava à frente de seu tempo. Percebendo, desde cedo, o meu gosto por matemática, orientou-me para cursar uma faculdade e obter a licenciatura. Ingressei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da então denominada Universidade do Brasil [hoje, UFRJ], em 1964.
Minha eleição em 2020 para integrar a American Academy of Arts and Sciences foi um sonho
Havia mulheres no curso?
Na graduação, embora minha turma fosse pequena, as mulheres eram a maioria. Nessa época, os homens que gostavam de matemática faziam engenharia, que lhes dava uma profissão com mais status do que o magistério. A licenciatura em matemática era mais procurada pelas mulheres. Engenharia não era considerada profissão para mulher. Entretanto, quando ingressei no Impa, somente 30% dos alunos de mestrado da instituição eram mulheres. Esse cenário mudou. Ao longo desses anos, a mulher deixou de ser apenas dona de casa e tem ido à luta para realizar os seus sonhos. Entretanto, não se exige dela um passo maior do que fazer um curso superior e chegar ao doutorado. Esse feito é comemorado pela família. Se ela se aventura na pesquisa, não se costuma incentivar nem cobrar dela sucesso nessa atividade. Ela ainda é muito requisitada na vida doméstica e, quando a profissão do cônjuge não é a acadêmica, os interesses de ordem profissional podem conflitar. Talvez isso explique a baixa representatividade feminina em prêmios científicos e de pesquisa. O prêmio TWAS [Academia Mundial de Ciências do Terceiro Mundo], considerado o Nobel dos países em desenvolvimento e que recebi em 2016, é um exemplo. Dentre os ganhadores nas nove categorias, fui a única mulher. No Brasil demos um salto grande na participação da mulher nas universidades, mas em alguns países mais desenvolvidos economicamente, como o Japão, ser professor de ensino superior ainda é uma profissão de homens.
Como está sua vida em meio à pandemia do novo coronavírus?
Eu e meu marido estamos em confinamento desde o início da pandemia. Mas, após 20 anos morando em São Paulo, tornei-me muito caseira. Por outro lado, temos a sorte de morarmos numa casa grande e confortável aqui no Rio de Janeiro, onde podemos caminhar pelo quintal e tomar sol. Temos uma piscina aquecida e coberta, que nos permite exercitar em qualquer época do ano. É a casa onde cresci. Em janeiro do ano passado, iniciei uma reforma. Sou a arquiteta e a administradora ao mesmo tempo, e essas atividades, junto com as de dona de casa, embora ambas sejam muito prazerosas, têm me consumido bastante – descobri que gosto de cozinhar e coleciono as queimaduras… Assim, tenho pouco tempo livre para as minhas pesquisas, o que tem me angustiado muito. Mas o que me incomoda mais na pandemia é o fato de não poder receber ninguém aqui que venha de ônibus ou não poder ter uma consulta médica presencial.
Profissionalmente, o que mudou com a pandemia?
Quase nada. Desde 2014 estou aposentada da USP, onde obtive minha livre-docência em economia [na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, FEA]. Hoje tenho uma posição na FGV-RJ [Fundação Getulio Vargas, do Rio de Janeiro], onde ofereço um minicurso anual de um mês e meio. Como pesquisadora, gosto de trabalhar em casa, pois produzo mais. No ano passado, consegui terminar três artigos, que estão submetidos para publicação. Também participei de um congresso on-line em Providence, nos Estados Unidos, como convidada. O ano de 2020 foi muito gratificante. Em maio do ano passado, fui eleita membro da American Academy of Arts and Sciences, mas, por conta da pandemia, minha posse foi adiada para 2022. De qualquer forma, a minha eleição foi como um sonho bom no meio de um grande pesadelo. Ainda em 2021, tenho dois artigos para terminar e a participação em dois congressos internacionais como palestrante convidada. Considero-me uma pesquisadora realizada, cujo trabalho científico tem sido reconhecido no Brasil e no exterior.