Em outubro de 1970, o crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) desembarcou em Santiago, no Chile, buscando asilo político. No Brasil, ele havia sido acusado de difamar a ditadura militar (1964-1985) por denunciar práticas de tortura de presos políticos. Na época, contava já 70 anos, o que não o impediu que continuasse trabalhando: “Não é cômodo um novo exílio na velhice. Mas aqui estou e recomeço uma vida que nunca parou de recomeçar. E assim é que recomeço, inclusive, a levantar um museu de arte moderna e experimental que a vida batizou de Museu da Solidariedade”, escreveu ao pintor mexicano Mathias Goeritz (1915-1990).
O convite para liderar a criação da nova instituição partiu do próprio Salvador Allende (1908-1973), então recém-eleito presidente do Chile. Graças à sua ampla rede de contatos no mundo da arte, Pedrosa mobilizou nomes como o catalão Joan Miró (1893-1983), a brasileira Lygia Clark (1920-1988) e o norte-americano Frank Stella, que enviaram obras para o novo museu, inaugurado na capital chilena em maio de 1972. “Era um museu com um acervo feito apenas de doações, com o objetivo de apoiar o governo socialista de Allende. Em um ano, recebeu mais de 600 obras”, conta a socióloga Glaucia Villas Bôas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de Mário Pedrosa: Crítico de arte e da modernidade (Editora UFRJ). Lançado no ano passado, o livro se junta a outras publicações que saíram recentemente sobre a vida e a obra do intelectual.
Interrompido pelo golpe do general Augusto Pinochet (1915-2006), o exílio do brasileiro no Chile ilustra o forte entrelaçamento entre arte e política que marcou sua biografia. Nascido em Timbaúba (PE), Pedrosa entrou em contato com ideias marxistas na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, que viria a se tornar uma unidade da UFRJ. Filiou-se ao Partido Comunista em 1925. Dois anos mais tarde, saiu do Brasil rumo à União Soviética para estudar na Escola Leninista de Moscou, mas adoeceu e mudou os planos: ficou em Berlim, onde frequentou cursos universitários de sociologia e filosofia, além de participar de atividades políticas contra os nazistas. É na capital alemã que adere às ideias da Oposição Internacional de Esquerda, grupo liderado por Leon Trotski (1879-1940), que se opunha ao stalinismo.
Pedrosa já havia publicado diversos artigos políticos na imprensa brasileira quando, em 1933, estreou na crítica de arte com um texto sobre a gravurista alemã Käthe Kollwitz (1867-1945). “É o primeiro ensaio brasileiro sobre a arte moderna com base sociológica. Ele explica o fenômeno artístico com rigor científico e parte da dinâmica das estruturas sociais para entender o que é uma manifestação artística dentro de determinada sociedade”, aponta o filósofo Marcelo Mari, do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB), que organizou o livro Mário Pedrosa: Revolução sensível (Edições Sesc, 2023), com os historiadores Francisco Alambert e Everaldo de Oliveira Andrade, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Nos anos seguintes, o crítico escreveu ensaios sobre o pintor Candido Portinari (1903-1962), defendendo uma arte engajada e libertária, mas não panfletária. “Pedrosa queria renovar a arte brasileira na segunda metade da década de 1940, que, em sua visão, estava engessada. Para ele, o realismo de Portinari e Di Cavalcanti [1897-1976] servia de instrumento ideológico do Estado Novo [1937-1945] e para a construção de uma brasilidade oficial do governo Vargas”, explica Mari.
Nos Estados Unidos, onde se exilou após sofrer perseguição por sua militância política durante a ditadura do Estado Novo, Pedrosa aprofundou suas formulações sobre a modernidade artística. Em Nova York, foi impactado pelas esculturas do artista norte-americano Alexander Calder (1898-1976), de quem se tornou amigo. “É uma arte democrática porque pode ser feita de qualquer troço, cabe em qualquer lugar, a serviço de qualquer condição, nobre, rara ou usual; e serve para revitalizar a alegria e o senso de harmonia, ora embotado, dos homens”, escreve o crítico no artigo “Calder, escultor de cataventos”, publicado em 1944. A partir daí, Pedrosa se afasta da arte figurativa e se aproxima de expressões não representativas, como o abstracionismo.
“Os primeiros escritos de Mário Pedrosa expressam uma visão da arte com compromisso social. Aos poucos, ele sofistica essa visão e passa a incorporar elementos da Gestalt, a psicologia da forma alemã”, observa o jornalista Luiz Antônio Araujo, professor da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que prepara uma biografia do crítico para a editora Record, ainda sem data de lançamento. “Pedrosa valoriza a obra de Calder por recuperar objetos e materiais do cotidiano. Muita gente não achava que seus móbiles, estruturas suspensas que se movem, podiam ser considerados arte. E é nessa mesma direção que ele orienta a primeira geração de artistas concretistas no Brasil, como Ivan Serpa [1923-1973], Abraham Palatnik [1928-2020], Lygia Clark e Hélio Oiticica [1937-1980].”
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo, Pedrosa retorna do exílio nos Estados Unidos. No ano seguinte, cria uma coluna dedicada exclusivamente às artes visuais no Correio da Manhã e na década de 1950 intensifica sua atividade como crítico na esfera pública. “Pedrosa não queria que sua reflexão sobre arte ficasse circunscrita a artistas ou ao público frequentador de galerias e bienais. Ele queria ser ouvido numa esfera ampla, e naquele momento um espaço de grande circulação e respeitabilidade era o jornal impresso”, acrescenta Araújo.
Com presença regular também no Jornal do Brasil, o pernambucano é hoje considerado por especialistas um dos grandes renovadores da crítica de arte no país. Até então, tratava-se de uma atividade realizada principalmente por literatos, como Mário de Andrade (1893-1945), com quem o pernambucano se correspondeu. Ao longo das cinco décadas de atuação como crítico, Pedrosa reelabora constantemente seu pensamento sobre arte, sempre atento à cena internacional. Para ele, todo e qualquer indivíduo seria um artista em potencial, “independente de seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado”, conforme registrou em artigo publicado em 1947, no Correio da Manhã.
É assim que volta sua atenção à “arte virgem” produzida pelos artistas do ateliê do Engenho de Dentro, no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, ao qual dedicou diversos artigos no Correio da Manhã. Pedrosa frequentava o espaço criado em 1946 pela psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) na companhia de jovens pintores como Serpa, Palatnik e Almir Mavignier (1925-2018). Estes, influenciados pelos artistas internos daquela instituição e pelas ideias do crítico, pouco a pouco abandonavam a pintura figurativa e abraçavam a arte concreta que despontaria no Rio de Janeiro nos anos 1950.
Segundo Villas Bôas, da UFRJ, a frieza técnica e a racionalidade da sociedade moderna tornaram-se alvos de Pedrosa: “Ele achava que a arte tinha a missão de ajudar o indivíduo a recuperar a sensibilidade perdida em um mundo cada vez mais veloz”. Sua concepção de modernidade, de cunho universalista, acrescenta a pesquisadora, difere da visão de Mário de Andrade, voltada para a construção de uma identidade nacional. Pedrosa enfatiza ainda o diálogo com o passado e as diferenças culturais: em 1961, como diretor artístico da VI Bienal de São Paulo, o crítico pernambucano causou repercussão ao reunir pela primeira vez no pavilhão do Ibirapuera arte africana e aborígene australiana, caligrafia japonesa e obras de modernistas como o alemão Kurt Schwitters (1887-1948).
Em 1977, com o início do processo de abertura política no Brasil, Pedrosa retorna do exílio em Paris, onde havia se refugiado após o golpe militar no Chile. Nesse período, constata que o ciclo da arte moderna havia se esgotado e concebe, com a artista Lygia Pape (1927-2004), uma mostra sobre arte indígena para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Intitulada Alegria de viver, alegria de criar, a exposição tinha como proposta “mostrar ao brasileiro que o fenômeno cultural de criatividade artística não é um fenômeno de progresso, é de experiência, vivência, homogeneidade e defesa das virtudes das comunidades ainda vivas”, como escreveu o crítico no Jornal do Brasil. De acordo com Mari, da UnB, Pedrosa percebe no fim da vida que a arte contemporânea tinha se tornado um objeto de consumo acomodado ao status quo e era incapaz de mudar a realidade. “Ele então aposta em outras experiências, como a arte indígena. Foi um decolonial avant la lettre”, define.
Porém um incêndio em 1978 destruiu parte do MAM Rio, frustrando a realização do evento. Em seu lugar, o crítico propôs a criação do Museu das Origens, que reuniria cinco instituições: o próprio MAM Rio, além do Museu do Índio, Museu do Inconsciente, Museu do Negro e Museu das Artes Populares. A iniciativa não avançou, mas hoje chama a atenção por ter destacado de modo pioneiro a produção artística de grupos historicamente marginalizados.
Confundindo-se com a história política e cultural do século XX, a vida agitada de Mário Pedrosa chegou ao fim em novembro de 1981. Vítima de câncer, ele morreu no Rio de Janeiro, aos 81 anos. Um ano antes, em São Paulo, havia assinado o livro de fundação do Partido dos Trabalhadores, tornando-se seu filiado n° 1.
Desde a publicação entre 1995 e 2000 dos quatro volumes de seus Textos escolhidos (Edusp), organizados pela filósofa Otília Arantes, da USP, é crescente o interesse de pesquisadores pela vida e obra do intelectual. Em 2015, o Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York, reuniu em inglês parte de seus escritos na série Primary documents. No ano passado, a editora Companhia das Letras lançou a coletânea de ensaios Obra crítica, vol. 1 – Das tendências sociais da arte à natureza afetiva da forma (1927 a 1951), organizada pelo músico Quito Pedrosa, neto do crítico. “Pedrosa pensou não só a cultura, mas o Brasil. Não foi mero reprodutor de ideias europeias: formulou conceitos inéditos para entender nosso país. Por isso merece ser lido e estudado”, conclui Andrade, da FFLCH-USP.
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