Há tempos, um mistério intriga os neurologistas: por que dois cérebros com lesões praticamente idênticas podem desenvolver doenças distintas? Por que a agressão e morte do mesmo grupo de neurônios gera, em alguns casos, um indivíduo epiléptico e, em outros, uma vítima de derrame, dois estados clínicos que não têm nada em comum?
A equipe do médico Esper Abrão Cavalheiro, do Laboratório de Neurologia Experimental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador de um projeto temático que estuda o rearranjo das células nervosas após lesões cerebrais que vão dar origem a uma dessas duas patologias, formulou uma boa explicação para o enigma. A resposta parece estar no evento que causa a morte neuronal. Para Cavalheiro, lesões iguais ou semelhantes, mas resultantes de processos diversos, fazem os circuitos cerebrais se reorganizarem de maneira diferente, originando enfermidades com características distintas.
É como se o sistema nervoso fosse capaz de memorizar o motivo da agressão e usasse essa informação como parâmetro em seu processo de regeneração. Observamos em ratos epilépticos uma reorganização da circuitaria neuronal que não acontece nos animais vitimados por acidente vascular cerebral”, compara Cavalheiro, que também é secretário de Políticas e Programas de Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). “Isso nos levou à hipótese de que é esse rearranjo que determina o quadro característico da epilepsia (crises de convulsão).” No caso das vítimas de derrame, a reorganização mais tênue das células nervosas acaba gerando comprometimento das funções motoras e cognitivas, limitações que não afetam os epilépticos.
A epilepsia é desencadeada por uma atividade elétrica anormal dos neurônios. Já o derrame ocorre devido ao entupimento de uma das artérias que irrigam o cérebro, num processo geralmente associado a fatores de risco como hipertensão, diabetes e altas taxas de colesterol. Essas duas causas diferentes – a hiperexcitação elétrica, de um lado, e o impedimentoda chegadadesangue ao cérebro, de outro – levamaum resultado idêntico: a morte maciça de neurônios, mais evidente no hipocampo, importante estrutura do lobo temporal relacionada às emoções, aprendizado e memória. Cerca de 80% dos neurônios do hipocampo podem ser inutilizados nesse processo.
“Essas lesões são tãosemelhantes que, imediatamente após a morte neuronal, é difícil distinguir uma da outra pelo aspecto histológico (estudo microscópico de tecidos e órgãos)”, afirma Cavalheiro. Os pesquisadores têm de esperar algumas semanas para que as particularidades de cada tipo de rearranjo neuronal – mais pronunciado, no caso da epilepsia, e menos presente, no derrame – se manifestem e sejam visíveis às lentes do microscópio. “O que provavelmente ocorre é que, além da destruiçãode neurônios, as agressões ao cérebro provocam outros efeitos, ainda não conhecidos. Esses efeitos ‘secundários’, obscurecidos pela magnitude da morte neuronal, seriam os fatores determinantes da evolução futura”, diz o pesquisador.
Para compreender a fundo o mecanismo de regeneração cerebral que resulta na epilepsia e derrame, Cavalheiro, estudioso do tema há décadas, reuniu um time de especialistas da Unifesp – Cícero Galli Coimbra, Débora Amado, Maria da Graça Naffah-Mazzacoratti e Maria José da Silva Fernandes – que realizam estudos com ratos de laboratório. Cada grupo aborda a questão do reordenamento neuronal por um ângulo específico.
Coimbra busca construir um modelo experimental para a isquemia cerebral, processo em que a circulação sanguínea diminui, em razão de derrame ou parada cardíaca, privando temporariamente o cérebro de oxigênio. Em seus trabalhos com animais de laboratório observou que a morte neuronal é acompanhada de uma reação inflamatória intensa, com a ativação das chamadas células gliais. Esse tipo de tecido cicatricial, que até recentemente era considerado um simples suporte dos neurônios, desempenha um papel ativo no processo de morte e regeneração dos tecidos. Outra descoberta: vítimas de isquemia que apresentam febre, aparentemente uma reação benigna do organismo, têm provavelmente maior chance de desenvolver o mal de Alzheimer.
Epilépticos crônicos
Já as três pesquisadoras da equipe de Cavalheiro investigam diferentes aspectos do tipo de lesão que torna o indivíduo um epiléptico crônico. Maria da Graça estuda a bioquímica do processo – uma cascata de eventos que precedem e sucedem a morte neuronal; Maria José, o metabolismo cerebral; Débora, a influência dos fatores hormonais, que podem facilitar ou dificultar a morte e a reorganização dos neurônios.
No estudo das lesões associadas ao mal epiléptico, as pesquisadoras utilizam um método experimental estabelecido por Cavalheiro e pelo polonês Lechoslaw Turski. Ministram uma elevada dose de pilocarpina – droga extraída da planta sul-americana Pilocarpus jaborandi, utilizada como colírio no tratamento de glaucoma – e induzem nos ratos um estado de excitação neuronal conhecido como mal epiléptico.
A administração da substância ativa os receptores neuronais, que fazem com que maior quantidade de cálcio e sódio penetre nas células nervosas. O resultado da invasão é devastador: há grande destruição de tecido e o genoma de parte dos neurônios sobreviventes se modifica, provocando alterações em seu comportamento celular. Modifica-das, essas células constituem a lesão, foco de futuras crises epilépticas. O espaço antes ocupado pelos neurônios que morreram é preenchido pelas células gliais.Océrebrotenta então restabelecer as conexões(sinapses) perdidas e, nesse processo, as células passam a fazer sinapses consigo mesmas, excitando-se ou inibindo-se. É o chamado “rebrotamento supraglanular de fibras musgosas”, definido de forma sintética pela palavra em inglês sprouting. A conseqüência desse desenvolvimento anômalo é a epilepsia.
Nos ratos, o estado de excitação neuronal dura de 10 a 12 horas e leva a um alto índice de mortalidade. Os animais que sobrevivem ao quadro agudo experimentam um período livre de crises, que dura em média 15 dias. Mas, depois dessa ausência de convulsões, passam a apresentar crises espontâneas e recorrentes por toda a vida, numa média de dois a três episódios por semana. Nos experimentos de indução de epilepsia por pilocarpina, a equipe de Cavalheiro percebeu que o cérebro de ratos jovens suporta melhor uma crise do que o adulto. “Esses animais resistem mais ao aparecimento da lesão e não apresentam crises crônicas, a não ser após o terceiro episódio de estado de mal epiléptico”, diz Maria da Graça.
Os pesquisadores ainda não sabem com certeza por que isso acontece. “Uma explicação possível seria o fato de o cérebro em desenvolvimento apresentar um baixo consumo energético em comparação com o cérebro adulto”, arrisca Maria José. Numa outra linha de raciocínio, os especialistas acreditam que, no cérebro em desenvolvimento, muitos receptores ainda não estão ativos. “Isso faz com que a excitação desencadeada pela crise produza menos danos do que provocaria num cérebro adulto”, explica Maria da Graça.
Há apenas duas décadas, praticamente se desconheciam os fatores que, nas patologias cerebrais, levam à morte de um número enorme de neurônios e pouco se sabia do intrincado processo de reorganização pelo qual passa o cérebro depois da lesão. Nos últimos anos, no entanto, pesquisas, feitas aqui e no exterior, fizeram o conhecimento avançar. Sabe-se hoje, por exemplo, que a morte neuronal decorre da liberação exagerada de um neurotransmissor, o glutamato. Essa substância promove a entrada maciça de cálcio e outros elementos nas células, que morrem em razão do excesso de ingredientes que, em quantidades normais, são indispensáveis à sua existência.
Sabe-se, também, que o sistema nervoso central não aceita passivamente a destruição de neurônios: reage à agressão. “Após sofrer uma lesão grave, o cérebro cria conexões totalmente inéditas. E aprende a lidar com essa nova circuitaria. O que chamamos de doença é, na verdade, uma reação vital”, afirma Cavalheiro. “Nosso objetivoé conhecer melhor os mecanismos da morte neuronal e da reorganização do sistema nervoso para interferir no processo.”
Febre após isquemia aumenta risco de Alzheimer
Em seus estudos com ratos, o médico Cícero Galli Coimbra, da Unifesp, descobriu que a equação isquemia mais febre não controlada pode produzir, anos mais tarde, uma maior taxa de indivíduos com mal de Alzheimer. Caracterizada pela progressiva perda e morte de células nervosas em várias áreas do cérebro, a enfermidade, que não tem cura, afeta a memória e a capacidade de aprendizagem. Em seu estágio avançado, é a principal causa de demência, que ocorre em 1% da população aos 65 anos e provoca gastos anuais de US$ 100 bilhões nos Estados Unidos.
“Verificamos que a isquemia seguida de hipertermia (febre) provoca a morte de neurônios e o desenvolvimento de alterações típicas do mal de Alzheimer nos animais”, diz o pesquisador. Causada por uma parada cardíaca ou derrame, a isquemia caracteriza-se pela diminuição da circulação sanguínea e oxigenação cerebral.
A constatação de Coimbra deve mudar radicalmente o procedimento médico pós-isquêmico. Muitos indivíduos que sofrem derrames cerebrais apresentam febre na primeira semana de recuperação, devido a pneumonias ou outras complicações hospitalares. Mas raramente os médicos receitam antitérmicos, pois costumam considerar essa febre como algo benigno ou até mesmo um bom marcador da resposta do organismo a antibióticos. Mal sabem que, no futuro, esses pacientes poderão desenvolver a doença pelo simples fato de sua temperatura não ter sido controlada depois da isquemia. “Hoje, 30% dos pacientes com derrame apresentam o mal de Alzheimer cinco anos mais tarde”, revela Coimbra.
O médico da Unifesp ainda não sabe por que isso ocorre. Mas sugere uma linha de raciocínio que tenta explicar o processo. Acometido quase concomitantemente pela isquemia e febre, o sistema imunológico perderia a capacidade de distinguir as proteínas amigas das inimigas do sistema nervoso. Confusas, as células de defesa do organismo passariam, anos depois, a atacar o sistema nervoso, desencadeando o mal de Alzheimer.
Uma explicação alternativa, proposta por outros especialistas, é que o binômio “isquemia mais febre” provoca uma grande liberação de radicais livres. Esses íons tendem a lesar o DNA mitocondrial, acelerando o envelhecimento das mitocôndrias, que são os motores das células. Com aperformance característica dos velhos engenhos, essas organelas passariam a apresentar baixo rendimento e gerariam muita poluição – ou seja, mais radicais livres. No limite, esse sistema de retroalimentação desembocaria no mal de Alzheimer.
Seja qual for a causa, a descoberta de que isquemia seguida de febre pode desencadear o mal de Alzheimer permite produzir intencionalmente essa doença em animais de laboratório, para testar drogas que possam bloquear ou ao menos retardar a enfermidade. “Já temos as linhas gerais de um modelo experimental. O próximo passo é quantificar o processo: por exemplo, o quanto uma segunda ou terceira crise de febre aumenta a probabilidade do mal de Alzheimer”, afirma Coimbra. “E, simultaneamente, iniciar testes com drogas potencialmente inibidoras da doença, como substâncias reconhecidamente capazes de auxiliar na reparação do DNA lesado. O trabalho com animais prepara o caminho para o estudo clínico, abreviando o tempo de pesquisa de 50 para cinco anos.”
O projeto
Epileptogênese em Seres Humanos. Caracterização Eletrofisiológica e Estrutural do Tecido Cerebral obtido nas Cirurgias para Tratamento das Epilepsias. Correlação com Alterações Clínicas, Eletroencefalográficas e Anatomopatológicas (00/08982-7); Modalidade: Projeto temático; Coordenador: Esper Abrão Cavalheiro – Unifesp; Investimentos: R$ 344.328,85 e US$ 459.055,48