Nos últimos tempos a neurocientista Fernanda De Felice e o bioquímico Sergio Teixeira Ferreira tiveram de aguçar duas habilidades que sempre ajudaram o meticuloso detetive Sherlock Holmes a solucionar seus casos: observação e raciocínio dedutivo. O casal de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, claro, não tentava resolver crimes. Sem lupa nem cachimbo, eles perseguiam algo possivelmente mais complicado. Buscavam desvendar os mecanismos bioquímicos pelos quais o mal de Alzheimer, uma das doenças mais devastadoras descobertas no último século, danifica os neurônios, as células cerebrais responsáveis por transmitir e armazenar informações, levando à perda definitiva da memória.
A partir do trabalho em seu próprio laboratório e de pistas levantadas por outras equipes, Fernanda e Ferreira confirmaram no ano passado a existência de uma conexão até pouco tempo atrás insuspeita entre Alzheimer e outra doença comum em idosos, o diabetes tipo 2. Em ambos os casos o problema surge porque as células se tornam incapazes de reagir adequadamente ao hormônio insulina, que desempenha funções distintas em diferentes regiões do corpo — nos músculos facilita a absorção da glicose, principal fonte de energia do organismo, enquanto no cérebro favorece a formação da memória.
Agora, em parceria com uma equipe dos Estados Unidos, os pesquisadores do Rio demonstraram que essa mesma insulina, que passa a ser mal aproveitada no Alzheimer, pode prevenir os danos aos neurônios. E, ao menos nos testes em laboratório, esse efeito protetor é intensificado quando a insulina é associada ao medicamento rosiglitazona, usado no tratamento do diabetes tipo 2, relata o grupo em artigo publicado em fevereiro no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Esses resultados permitem uma compreensão mais clara e detalhada de como surge e avança o Alzheimer, que nos estágios iniciais se manifesta na forma de pequenos esquecimentos, como o local em que se colocou a carteira, e ao longo de décadas corrói até as lembranças mais profundas, apagando o passado por completo. Também criam a oportunidade de que se desenvolvam alternativas mais eficazes e menos agressivas de tratamento dessa doença que vem se tornando mais comum à medida que mais pessoas vivem mais tempo — segundo a Organização Mundial da Saúde, há no mundo 18 milhões de pessoas com Alzheimer, número que deve dobrar em 15 anos.
“Apesar desses avanços, estamos longe de oferecer uma nova terapia para os pacientes”, afirma Ferreira. Primeiro será preciso verificar se o efeito protetor da insulina que ele e Fernanda observaram em neurônios isolados em uma placa de vidro ocorre em seres vivos. Se os testes que pretendem iniciar este ano com animais forem bem-sucedidos, aí sim será possível avaliar essa estratégia de tratamento em seres humanos. Antes, porém, será preciso encontrar uma forma eficiente de fazer a insulina chegar ao cérebro. É que apenas parte do hormônio injetado no sangue atravessa a membrana que protege o cérebro e outros órgãos do sistema nervoso central. “Temos anos de trabalho pela frente”, diz o bioquímico.
Os primeiros sinais de uma ligação entre Alzheimer e diabetes surgiram cinco anos atrás. Nos Estados Unidos, uma equipe coordenada por Juliette Janson, da Clínica Mayo, e Peter Butler, da Universidade do Sul da Califórnia, analisou amostras do cérebro e do pâncreas de 105 pessoas — um grupo portador de Alzheimer, outro de diabetes tipo 2 e um terceiro formado por indivíduos saudáveis. Eles viram que o diabetes era duas vezes mais comum entre os portadores de Alzheimer do que entre as pessoas saudáveis. Também constataram que quem tinha Alzheimer apresentava no pâncreas lesões semelhantes às que essa doença neurodegenerativa deixa no cérebro, embora não tenham encontrado mais danos em neurônios dos portadores de diabetes tipo 2 do que nos indivíduos sem esse problema, segundo artigo publicado em 2004 na Diabetes. Aparentemente, o diabetes e a morte das células produtoras de insulina surgiriam como consequência do Alzheimer.
Antenas recolhidas
A equipe da Universidade Brown observou ainda que os genes que contêm a informação para produzir os receptores de insulina eram menos ativos nos neurônios de pessoas com Alzheimer do que nos de indivíduos saudáveis. Por um mecanismo ainda desconhecido, o cérebro com Alzheimer deixava de produzir esses receptores, que funcionam como antenas de rádio captando os sinais químicos trazidos pela insulina e os retransmitindo para o interior das células. A produção dos receptores de insulina diminuía ainda mais com a progressão da doença.
Diante dessas pistas, Fernanda e Ferreira decidiram descobrir o que estaria desligando o gene do receptor de insulina e fazendo os neurônios recolherem essas antenas que os mantêm em contato com o seu exterior. Tinham até um palpite. Apostavam que a redução dos receptores estava associada à presença de aglomerados de um fragmento de proteína – o peptídeo beta-amilóide – que se formam no cérebro dos portadores de Alzheimer. Produzido pela degradação anormal de uma proteína importante para o funcionamento dos neurônios, esse peptídeo se liga a outras moléculas iguais a ele no exterior das células, formando os chamados oligômeros.
Mas seriam, de fato, os oligômeros que causavam a redução dos receptores de insulina? No período que passou no laboratório de William Klein, na Universidade Northwestern, em Chicago, de 2005 a 2007, Fernanda preparou um teste simples para tirar a dúvida. Colocou neurônios de camundongo em uma placa de vidro e acrescentou um composto vermelho que aderia aos receptores de insulina. Em seguida, acrescentou os oligômeros de beta-amilóide marcados com uma proteína verde e aguardou para ver o que acontecia. Ela notou que os aglomerados aderiam à superfície do neurônio bem próximo aos receptores de insulina. Meia hora depois do início do experimento 22% desses receptores haviam sido recolhidos pela célula e, três horas mais tarde, 70% haviam desaparecido.
Como consequência, os neurônios se tornaram imunes à ação da insulina ou, como dizem os médicos, resistentes à insulina, apresentando o mesmo sintoma que caracteriza o diabetes tipo 2. Mesmo em um meio com altos teores desse hormônio, as células se tornaram incapazes de interpretar os comandos da insulina – absorver glicose nos músculos ou transformar uma experiência em lembrança nos neurônios.
O efeito mais grave surgiu no dia seguinte. Depois de 24 horas na presença dos oligômeros, os prolongamentos que conectam um neurônio a outro perderam a maior parte dos seus pontos de contato (sinapses) com as células vizinhas, relataram os pesquisadores no PNAS. “Esse dano gradual aos neurônios pode explicar o que se observa nos estágios iniciais do Alzheimer, em que as pessoas começam a apresentar falha de memória antes de haver morte de células cerebrais”, diz Fernanda.
Se os oligômeros comuns no Alzheimer levam os neurônios a se comportarem como as demais células do corpo no diabetes, o que aconteceria se as células cerebrais recebessem o mesmo tratamento dado aos diabéticos? De volta ao Brasil com essa questão em mente, Fernanda e Ferreira retomaram os testes em laboratório. Dessa vez deram aos neurônios três tratamentos – insulina, o medicamento rosiglitazona ou uma mistura de ambos – usados no controle da resistência à insulina antes de acrescentar ao meio de cultura os aglomerados de beta-amilóide. O resultado surpreendeu. O banho de insulina evitou que oligômeros aderissem aos neurônios e disparassem a morte celular. No trabalho, feito com Marcelo Vieira, Theresa Bonfim e Helena Decker, Ferreira e Fernanda viram ainda que o efeito protetor da insulina foi amplificado pela rosiglitazona. Mas nem a insulina nem a rosiglitazona preveniram a adesão dos oligômeros quando os receptores não estavam funcionando adequadamente, afirmou a equipe do Rio no trabalho publicado com a equipe de William Klein. Para Ferreira, essa constatação sugere que a insulina pode ser eficaz apenas nos estágios iniciais do Alzheimer ou mesmo antes de a enfermidade se instalar.
Ainda que sejam necessários testes em animais e em seres humanos para confirmar esse papel protetor da insulina, essa nova possibilidade terapêutica anima Ferreira. É que as duas classes de medicamentos disponíveis contra Alzheimer – os inibidores de acetilcolinesterase e os inibidores do receptor de glutamato – não impedem a morte dos neurônios. Eles ajudam a reduzir a perda da memória e funcionam em uma proporção pequena das pessoas com a doença. E por poucos meses.
Artigo científico
DE FELICE, F. G. et al. Protection of synapses against Alzheimer’s-linked toxins: insulin signaling prevents the patogenic binding of Abeta oligomers. PNAS. v. 106, n. 6, p. 1971-1976. 10 fev. 2009.