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Entrevista

Mercedes Bustamante: Antes que a água acabe

Bióloga da Universidade de Brasília alerta que o desmatamento do Cerrado prejudica também outras regiões

Diego Bresani

As mudanças climáticas estão deixando o clima no Cerrado mais quente e mais seco. Em consequência, o volume de rios e reservatórios subterrâneos está diminuindo e mesmo os anos mais chuvosos não fornecem água o bastante para compensar a que deixou de cair ou evaporou nos anos de seca mais intensa. Se o Cerrado secar, vai acabar a água também em outras regiões, porque os rios que nascem nos campos e florestas do Centro-Oeste abastecem oito das 12 bacias hidrográficas do país.

Ao enumerar esses problemas, a bióloga Mercedes Maria da Cunha Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e estudiosa da vegetação nativa da região central do Brasil, clama por mais ação do poder público e dos proprietários de terras para que parem com o desmatamento e os incêndios induzidos. Como integrante do grupo de trabalho de mitigação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ela alerta também que o país está atrasado na adoção de medidas capazes de amenizar os impactos da elevação de temperatura e da intensificação das chuvas esperadas para as próximas décadas.

Idade 59 anos
Especialidade
Ecologia
Instituição
Universidade de Brasília (UnB)
Formação
Graduação em biologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1984), mestrado em ciências agrárias na Universidade Federal de Viçosa (1988) e doutorado em geobotânica na Universidade de Trier, Alemanha (1993)
Produção Autora de 135 artigos científicos e coautora de 2 livros

Nascida em Santiago, no Chile, Bustamante chegou ao Rio de Janeiro com a família aos 7 anos. Divorciada, com duas filhas – uma recém-formada em arquitetura e outra cursando história na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, ela conversou com Pesquisa FAPESP no início de dezembro por plataforma de vídeo. Em janeiro, suas sugestões para aprimorar a proteção ambiental ganharam o reforço das medidas anunciadas pelas novas equipes do governo federal, como a reativação do Fundo Amazônia, com financiamentos internacionais para ações contra o desmatamento, e o restabelecimento do poder dos fiscais ambientais para aplicar multas a proprietários rurais que desconsiderarem os limites da lei. Também no início de janeiro, Bustamante aceitou o convite para presidir a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), onde ela já havia trabalhado em 2016, como diretora de Programas e Bolsas.

Como avalia a participação do Brasil na 27ª Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-27, em novembro no Egito?
Foi muito diferente, porque o país foi representado por três frentes: a oficial, talvez a que teve menos visibilidade; a da sociedade civil, muito organizada desde 2019, em resposta à redução da participação promovida pelo governo federal; e a do Consórcio de Governadores da Amazônia, grupo que entendeu a importância do que é discutido na COP para a região e organizou seu próprio espaço, que também teve muito destaque. As três frentes de representação expõem a desconexão entre o governo federal anterior, os estados e a sociedade civil. O governo eleito [empossado em janeiro] foi recebido na COP com muita esperança de que o Brasil retorne às negociações sobre o clima como uma liderança que já foi no passado, com capacidade de costurar acordos com diferentes países. Essa participação mostra como a discussão climática vai se conformando no mundo, porque deixou de ser só uma questão dos governos e implica também o engajamento da sociedade civil e do setor privado. O período em que o diálogo foi rompido entre esses grupos foi muito prejudicial, porque não há como resolver isso sem uma concertação de todos. O natural seria ter vozes no governo federal para liderar esse processo, mas, como não houve e a natureza não gosta de vácuo, outros ocuparam esse espaço.

Como avalia o anúncio do novo governo de acabar com o desmatamento?
É bom porque o mundo sabe o que esperar do Brasil. Em dezembro, a União Europeia aprovou um marco regulatório para rastrear e barrar produtos associados ao desmatamento, tanto os itens primários, como madeira, soja, cacau e carne, quanto os derivados, como chocolates, móveis e couro. Temos de ver como a regulação vai ser implementada, como o setor privado vai responder e como a comunidade europeia vai fiscalizar, mas é uma indicação de que o desmatamento está entrando de forma mais séria na pauta de comércio internacional. Quem não se preparou antes, agora vai ter de avaliar como atender às exigências de rastreabilidade e transparência. Os países consumidores estão assumindo suas responsabilidades e vendo que suas pegadas ambientais estão também nos países de origem dos produtos que consomem. O desmatamento é um problema multifatorial, que não será resolvido por uma pessoa em pouco tempo, mas várias ações podem ser encaminhadas. Uma delas é sinalizar que, a partir de agora, vai mesmo haver fiscalização e a lei será cumprida.

Por que essa sinalização é importante?
Mudar o discurso por si só é importante porque de algum modo vai inibir quem pretendia fazer coisas ilegais. Para começar, basta dizer que vai aplicar a lei, não precisa mudar nada. Não é o suficiente, claro. O governo precisa agir em várias frentes. Poderia também rastrear de onde vem e para onde vai o dinheiro, porque muito dessas atividades são ligadas ao crime organizado. O sistema financeiro pode ajudar a descobrir quem financia e quem ganha com o desmatamento. Outro flanco em que o governo poderia atuar são as terras devolutas da União. Seria importante designar essas áreas a comunidades ou para conservação, para evitar invasões. Também é preciso destravar os processos de demarcação de terras indígenas, alguns parados há décadas, e reestruturar os órgãos de fiscalização e controle. O Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] ficou muito desprestigiado nos últimos anos. Há muito a ser feito, ou refeito.

Os produtores rurais raramente percebem que a recarga dos reservatórios subterrâneos determina a vazão dos rios

Qual sua expectativa para os próximos anos na área ambiental?
Trabalhei no governo duas vezes. De 2011 a 2013, como coordenadora-geral de gestão de ecossistemas e diretora de políticas e programas temáticos no MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações], e em 2016, como diretora de Programas e Bolsas da Capes [de Nível Superior]. Nas duas ocasiões, vi servidores públicos federais muito bem-preparados. A situação ambiental a ser enfrentada nos próximos anos é muito mais complexa do que há 10 ou 20 anos. O mundo está mais complexo e o país mais dividido. Será uma corrida de obstáculos, mas saímos com uma certa vantagem por causa da experiência acumulada.

Nos debates, a preocupação com o desmatamento se refere principalmente à Amazônia. Como está o Cerrado?
Uma boa parte do desmatamento ocorre no Cerrado, por causa da soja e da pecuária. A situação é muito preocupante porque já perdemos metade da área da cobertura vegetal nativa do Cerrado. Criar unidades de conservação hoje nessa região é muito difícil, porque a proporção de terras devolutas é bem menor do que na Amazônia. Como a maior parte da terra é privada, precisamos incentivar os proprietários rurais e o setor privado a proteger esse bioma, e nisso temos falhado bastante. Ainda se olha, prioritariamente, para o potencial de abrir mais espaço para a agropecuária. No entanto, avançar desse modo vai jogar contra a própria agricultura, porque o Cerrado já está mais quente e mais seco em razão das mudanças no uso da terra, e isso vai se acentuar com as mudanças climáticas. O último relatório do IPCC indica que essa região do Brasil Central já se aqueceu mais do que a média global e vai continuar esquentando. Um relatório da Organização Meteorológica Mundial [OMM], lançado em novembro de 2022, comparou as chuvas de 2021 com a média histórica da região e mostrou que a situação do Centro-Sul do Brasil é crítica. Em toda essa área, a quantidade de chuvas está muito abaixo da média, o que corrobora outros estudos regionais indicando que as transformações em larga escala do Cerrado estão deixando o clima mais quente e mais seco e reduzindo a vazão dos grandes rios.

Qual o impacto desses fenômenos?
O impacto não será apenas regional, porque os rios que nascem aqui abastecem oito das 12 regiões hidrográficas do Brasil, além do aquífero Guarani, que fornece água para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Secando o Cerrado, vai acabar água também em outras regiões. O IPCC chama esse processo de seca agrícola e ecológica, quando a média anual da umidade total do perfil de solo fica abaixo de certo limiar em relação ao período de base de 1850 a 1900. Secando as porções mais superiores, chega menos água aos reservatórios subterrâneos. Se em alguns anos a seca for um pouco mais intensa, um ano muito chuvoso não será suficiente para recarregar os reservatórios subterrâneos, e o déficit aumentará.

Os produtores rurais já percebem que a água está diminuindo?
Percebem, mas têm sempre um olhar localizado. Dizem “este ano foi bom, o outro, mais ou menos”, sem uma perspectiva de longo prazo. Preocupam-se em garantir a safra do ano seguinte. Não veem que a chuva daquele ano não foi suficiente para recuperar o que não choveu nos anos anteriores, porque o reabastecimento dos reservatórios subterrâneos é um processo lento. Os produtores rurais raramente percebem que é a recarga desses reservatórios o que determina a vazão dos rios, que muitas vezes estão fora da propriedade ou de sua região. O padrão geral de redução hídrica só aparece quando se olham os dados mais regionais e de períodos mais amplos, como os do relatório da OMM, que compararam o volume de chuva atual com a média histórica das últimas três décadas. Este é um recado importante: menos recarga de água no solo significa menos água superficial. Precisamos reprogramar o uso da água e a irrigação.

Arquivo pessoalBustamante durante trabalho de campo em área de Cerrado no Distrito FederalArquivo pessoal

Um estudo seu de setembro de 2022 na Global Change Biology mostrou que a temperatura média no Cerrado está aumentando e a movimentação da água na atmosfera diminuindo.
Nesse artigo, mostramos pela primeira vez um quadro geral do Cerrado. No bioma há regiões nas quais a temperatura já subiu mais do que o valor médio. Algumas delas devem ficar mais quentes ainda. É o caso do Matopiba [sigla da região que abrange partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], para onde a fronteira agrícola do Cerrado está avançando, principalmente com soja e milho. Por isso, essa discussão da União Europeia sobre rastreabilidade dos produtos é tão importante para o Cerrado: só o Matopiba respondeu por 63% do desmatamento do Cerrado nos últimos anos. Essa situação, no longo prazo, não se sustenta.

É possível recuperar a capacidade de recarga dos rios do Cerrado ou estamos perto de um ponto de não retorno?
Difícil saber. O Cerrado é um sistema complexo e heterogêneo, com um mosaico de fisionomias campestres, arbustivas e florestais. São 19 ecorregiões diferentes, se considerarmos as variações sub-regionais. É também um bioma extenso. No Cerrado típico, com campos abertos, é mais difícil identificar se a redução do número de árvores é um processo, é um fenômeno natural ou de degradação, mais facilmente visível no cerradão, com uma mata mais fechada. Se olharmos para o conjunto de áreas degradadas no Cerrado nas últimas décadas, notaremos que o uso majoritário da terra ainda é para pastagem – e uma parte expressiva dessa pastagem tem hoje baixa produtividade. Essas áreas de pastagem degradadas poderiam funcionar como reserva de terra para a agricultura ou, caso sejam áreas importantes para a recarga de água, para a recuperação do Cerrado nativo. O mapeamento desse bioma indica claramente que não vai haver um modelo único de recuperação, por causa da diversidade da paisagem e da situação de cada área. Temos de fazer um planejamento mais adequado para a ocupação e a preservação do Cerrado.

O que seria necessário para esse planejamento?
Vontade política e articulação com o setor privado. É fácil colocar no mapa as áreas degradadas que poderiam ser usadas para restaurar o Cerrado e as que permitiriam expandir a produção de soja sem desmatar. Mas tem de combinar com os proprietários porque aquelas terras são de alguém. É do setor público a responsabilidade por abrir esse caminho. É mais difícil convencer esses proprietários quando o setor financeiro concede empréstimos para desmatarem e plantarem nessas áreas. A participação da comunidade científica que trabalha com o Cerrado será importante para orientar esses processos. Hoje conhecemos o suficiente para começar a fazer um planejamento bem-feito, mas precisa haver uma sinalização de que o trabalho terá apoio do setor público e colaboração do privado. No momento, é isso que falta.

Outro estudo seu, também do ano passado, no Journal of Applied Ecology, mostrou que 16 milhões de hectares de terras aptas para a agricultura são importantes para a restauração. Como resolver?
Há uma sobreposição. Temos de discutir em conjunto, com todos os interessados, o quanto queremos expandir a agricultura no Brasil em detrimento das outras funções do uso do solo. A maneira de usar o solo afeta a conservação de água e da biodiversidade, a regulação climática, a produção de alimentos e de energia e os territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais. A própria manutenção da diversidade social do Brasil está associada ao uso da terra. O planejamento territorial não pode se voltar para uma única visão. A função do poder público é arbitrar e conciliar as diferentes demandas. Não é simples. No Brasil, ainda há área suficiente para a expansão da agricultura nos próximos anos sem desmatar mais nada, apenas aproveitando as terras degradadas. Falo isso com base nos mapeamentos do meu grupo e de outras equipes de pesquisa: podemos manter ou até expandir a agricultura brasileira sem desmatar.

O incêndio que começa em áreas que estão sendo abertas pode facilmente chegar às áreas nativas e protegidas

Você se refere apenas ao Cerrado?
Não, a todos os biomas brasileiros. Sem desmatar o Cerrado, a Amazônia ou qualquer outro bioma. Se aumentar a produtividade, é possível reduzir o ritmo de expansão da fronteira agrícola, embora no Cerrado esses dois processos ocorram ao mesmo tempo. Os produtores deveriam parar de desmatar novas terras depois de um certo limite e diversificar a produção. O Código Florestal determina que, na Amazônia, as propriedades conservem a vegetação nativa em 80% de sua área a título de reserva legal. Essa proporção é de 35% na transição entre o Cerrado e a floresta amazônica e de 20% no restante do Cerrado e nos demais biomas. Esse é o mínimo a ser obrigatoriamente preservado. Ao autorizar o desmatamento, o órgão ambiental deveria avaliar as condições da bacia hidrográfica em que se encontra a propriedade e autorizar a supressão da vegetação considerando a perspectiva regional, ou seja, podendo definir a proteção acima do limite mínimo da lei. Nas situações em que seja possível manter apenas 20% da área como reserva legal, o órgão ambiental poderia apoiar um planejamento do desenho de áreas protegidas nas propriedades para conectar a vegetação nativa entre propriedades e formar corredores ecológicos, que podem trazer um impacto ambiental maior do que áreas pequenas. Não dá para continuar desmatando 80%. Lá no Matopiba, por exemplo, temos que considerar a necessidade de ampliar a proteção nas propriedades rurais, pois estamos falando dos últimos grandes remanescentes de Cerrado. Cabe ao órgão ambiental mostrar que qualquer incremento na área preservada de vegetação nativa pode trazer um impacto positivo para as culturas agrícolas, como a manutenção de populações de insetos polinizadores e o controle de pragas. Tem de colocar tudo isso na conta e convencer os produtores de que compensa manter a vegetação nativa. Fico preocupada quando ouço alguém dizer que vai perder dinheiro se conservar o ambiente. Quem pensa assim está fazendo a conta errada, porque todos ganham com a conservação.

A senhora conversa com os políticos de Brasília sobre essas questões?
Sim, sempre que posso, principalmente nas audiências públicas. Mas tenho visto que o espaço para o debate qualificado sobre os grandes problemas do país se perdeu. Muitas votações importantes no Congresso foram feitas de noite para madrugada, apesar de muitos setores da sociedade não concordarem com as decisões. O empobrecimento do debate sobre o Brasil que a gente quer, nos últimos anos, é o resultado também do negacionismo, da desinformação, das tentativas de descrédito dos pesquisadores e das instituições de ciência. Um político não tem de ser cientista, mas, como representa a sociedade brasileira, espera-se que consiga fazer uma distinção entre o que é ciência e o que não é. Já ouvi, ao participar de determinados debates: “Mas os países europeus estão exigindo do Brasil algo que eles não fizeram, porque desmataram suas florestas”. Esse argumento é nonsense, porque os países europeus desmataram 200 anos atrás e estão investindo hoje na recuperação das florestas. O mundo mudou. Não podemos nos guiar pelas ideias do século XIX. A noção de que o Brasil é o país da abundância, das riquezas infinitas e que tem água para dar e vender já nos prejudicou bastante. Contribuiu para a exploração intensiva dos recursos naturais, sem pensar nos limites e nas consequências de nossas ações. Precisamos nos concentrar nas próximas décadas, quando o impacto das mudanças do clima será central para o desenvolvimento dos países.

A senhora participa do grupo de trabalho de mitigação do IPCC. Estamos preparados para enfrentar os impactos das mudanças climáticas no Brasil?
Poderíamos ter trabalhado muito mais a mitigação das emissões de gases de efeito estufa, já que nossas emissões de CO2, o dióxido de carbono, aumentaram em todos os setores e não apenas no setor de uso da terra e agricultura, por causa do desmatamento. Estamos atrasados também no campo da adaptação. Temos de pensar que as ações de adaptação têm um limite. Alguns são os chamados limites duros, como a capacidade humana de tolerar o aumento da temperatura ou a elevação do nível do mar. E há os limites suaves, que se consegue resolver retirando barreiras, incentivando políticas e melhorando condições de vida. Não estamos considerando nem os limites duros nem os suaves.

Em quais pesquisas está trabalhando?
Um dos projetos examina a origem e o impacto do fogo do Cerrado, em colaboração com colegas da Universidade Federal de Minas Gerais [ver reportagem “Incêndios florestais intensos enfraquecem vegetação nativa” no site de Pesquisa FAPESP]. O fogo depende de material combustível, clima favorável e fatores de ignição. No passado, os incêndios ocorriam no final da estação seca e início da chuvosa, quando ocorrem mais raios. Hoje, o desmatamento se tornou a principal causa do fogo no Cerrado. O pior é que o incêndio que começa em áreas que estão sendo abertas pode facilmente chegar às áreas nativas e protegidas. Temos de controlar as queimadas autorizadas e as ilegais. Nos próximos anos o clima, que está ficando mais seco e quente, será mais favorável aos incêndios. Em outro projeto, monitoramos a invasão de áreas úmidas no Distrito Federal por espécies arbustivas. Isso permite ver a mudança no regime hídrico dessas áreas, que são importantes para recarga de água.

Temos de treinar mais as alunas para coordenarem grandes projetos. Temos de ensinar mais do que biologia

Quando visitou o Cerrado pela primeira vez?
Foi logo que me mudei para Brasília, em 1993, ainda como professora visitante da UnB. Fui com um grupo de botânicos em um ônibus da universidade para um congresso em Corumbá, Mato Grosso. Tinha recém-chegado ao Brasil depois de cinco anos na Alemanha, ainda tentando ver onde eu estava. Ter feito essa viagem e cruzado o Cerrado até o Pantanal foi uma porta de reentrada no Brasil. Mas minha introdução ao bioma ocorreu quando estudava biologia no Rio de Janeiro, no início dos anos 1980, e assisti a uma apresentação de uma botânica no Museu Nacional. Ela mostrou slides das flores do Cerrado e fui atraída por aquela beleza. Até então conhecia apenas a restinga, o manguezal, a Mata Atlântica e um pouco da Amazônia.

Como foi seu doutorado na Alemanha?
Fui para lá em um programa que era uma parceria entre o Daad [Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico] e a Capes. A Capes me dava as passagens e o Daad pagava as mensalidades, não falharam nunca. Era fascinante pedir reagente e ele chegar no dia seguinte; depois de ter feito mestrado no Brasil e, às vezes, ter de comprar com o próprio dinheiro porque aqui não chegava nunca. Lembro da primeira reunião com minha orientadora, quando eu já tinha os primeiros resultados de minha pesquisa. Cheguei com tudo meio bagunçado, ela olhou aquela profusão de papéis em cima da mesa e falou: “Volte na semana que vem com isso organizado, por favor”. Em dois minutos me despachou. Aquilo ficou como lição: nunca mais ir despreparada para uma reunião ou apresentação, porque a outra pessoa está me doando o tempo dela. Quando voltei ao Brasil, senti muito isso. As pessoas chegavam atrasadas, não respeitavam o tempo do outro. Hoje tento trabalhar com as duas culturas. Não exijo que meus alunos marquem hora com a secretária, que nem tenho, e tento ser flexível nas conversas, mas recomendo: “Estejam sempre bem-preparados para tudo”. Para minhas alunas, digo que a gente, por ser mulher, é mais cobrada e tem de ter um desempenho até superior aos demais. Apesar dos avanços, ainda somos avaliadas com critérios mais estritos que os homens.

A senhora defendia o espaço das mulheres no mundo acadêmico muito antes de o assunto ganhar importância. Por quê?
Venho de uma família matriarcal. No lado de minha mãe, que era de Minas Gerais, as mulheres todas estudaram e se formaram em cursos universitários, inclusive as minhas tias-avós. Ter exemplos a seguir conta muito. Nasci em Santiago, no Chile, porque meu pai trabalhava na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], mas vim com minha família aos 7 anos para o Rio de Janeiro. Chegamos no meio da Copa de 1970. Fiz a graduação no Rio e o mestrado em Viçosa, em Minas. Nas universidades, o Brasil tem uma vantagem em relação a outros países, a isonomia salarial, todos começam com o mesmo salário. As diferenças aparecem depois, na distribuição de recursos de pesquisa, nas bolsas, que ainda são enviesados, muito mais para homens do que mulheres. No ambiente acadêmico logo vi a necessidade de delimitar os espaços e dizer: “Olha, estamos aqui com uma igualdade, nem sempre de condições, mas de direito à voz”, tentando manter um diálogo respeitoso. Eu tinha trabalhado tanto para chegar até ali, não poderia me calar.

Como a discriminação se expressava?
Nas reuniões colegiadas, havia uma exclusão participativa. Você estava lá, mas a sua opinião não era tão considerada quanto a dos demais. Esse é um problema mais associado à minha geração. Percebo que há uma nova geração, de homens e mulheres jovens, mais esclarecida, capaz de reconhecer a discriminação e se posicionar sobre isso. Aos poucos, vamos vencendo as barreiras. Na ecologia, minha área, já tive alunas que trabalhavam por cinco meninos em campo. Gostaria de ver mais mulheres em instâncias superiores e em órgãos internacionais. Temos também de treinar mais as alunas para serem coordenadoras de redes de pesquisa, de grandes projetos, para acessarem recursos internacionais e participarem das plataformas internacionais. Temos de ensinar muito mais do que biologia.

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