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Malária

Mestre em disfarces

Variabilidade genética permite ao Plasmodium driblar as defesas do organismo humano

MARCELO URBANO FERREIRA / USPAtrás do protozoário esquivo: o auxiliar de pesquisa Adamílson Luís de Souza coleta sangue de Mercedes Andreatto da Silva, professora de uma comunidade rural de AcrelândiaMARCELO URBANO FERREIRA / USP

É como se tivesse mil roupas e máscaras. A cada dois dias, quando se reproduz no interior das células vermelhas do sangue, o protozoário causador da malária consegue gerar novas combinações de seu material genético e assim produzir proteínas extremamente diversificadas que lhe permitem escapar das defesas do organismo humano. Essa capacidade de recombinação genética, demonstrada por um grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), tem sérias implicações para o desenvolvimento de vacinas contra essa doença, porque as torna um desafio ainda maior. Também faz com que os sintomas possam variar de pessoa para pessoa, ainda que de modo sutil, mas o bastante para fazer com que essa enfermidade típica de países pobres passe sem ser detectada num primeiro momento. Os levantamentos de campo que complementam as pesquisas feitas em laboratório indicam que as pessoas podem se tornar resistentes a algumas dessas variações, mas sensíveis a outras, sujeitando-se a contrair novas malárias com a mesma intensidade da primeira vez.

Em um dos laboratórios do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, a bióloga Erika Hoffmann dimensionou essa variabilidade genética estudando a MSP-2, uma proteína abundante da membrana de superfície do Plasmodium falciparum, parasita causador das formas mais graves de malária, com convulsões e perda de consciência além da febre intensa. Seu estudo, publicado em julho na revista Gene, baseou-se nas amostras de sangue colhidas de oito moradores de Ariquemes, município de Rondônia em que essa doença era bastante comum. Como ela verificou, esses homens estavam infectados com pelo menos 44 variantes ou cepas diferentes de Plasmodium falciparum, que traziam nove diferentes versões da proteína MSP-2. Um deles portava nove cepas, tão diferentes entre si a ponto de se comportarem como parasitas diferentes. Era uma indicação de que tanto esse indivíduo como os outros, em menor intensidade, haviam sido infectados com Plasmodium falciparum geneticamente bastante diferentes entre si, ainda que encontrados em uma área com níveis de transmissão bastante baixa. A MSP-1, outra proteína comum na superfície do Plasmodium que é uma das principais candidatas a integrar uma vacina contra a malária, também se modifica bastante e assim deixa de ser reconhecida pelo organismo. É como se o labirinto, por si só perturbador, se ramificasse mais e mais, sem fio de Ariadne que leve a uma saída.

Algumas cepas do parasita podem ser mais agressivas que outras, produzindo uma doença de gravidade variável ou com sintomas diferentes. Pode surgir apenas dor de cabeça, diarréia e tontura em vez dos calafrios e da febre intensa que reaparece a cada 48 horas. “Pelo menos uma parte da resposta do organismo depende do tipo específico da cepa do parasita”, comenta o médico Marcelo Urbano Ferreira, coordenador desse grupo do ICB. Se uma pessoa nunca tiver tido contato com uma cepa, especialmente as mais raras, a doença tende a ser mais grave; se aparecer uma variação já familiar ao organismo, a malária pode se desenvolver – os parasitas se reproduzindo inicialmente no fígado e depois nas células vermelhas do sangue -, mas sem nenhum sintoma.

“A possibilidade de surgirem infecções sem sintomas ou somente com alguns sintomas, não necessariamente os mais típicos, pode dificultar bastante o diagnóstico e o tratamento da malária”, diz Ferreira. Outra razão pela qual a enfermidade poderá mais facilmente se alastrar em silêncio é que normalmente são as próprias pessoas que procuram os serviços médicos quando aparecem os sintomas; sem sintomas, não irão aos postos de saúde e portanto não receberão tratamento, mas permanecerão infectadas. Por essa razão, poderão infectar os mosquitos que podem transmitir a malária caso as piquem, em busca de sangue, e depois piquem outra pessoa. Em um artigo de revisão publicado em maio, José Rodrigues Coura e sua equipe do Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, estimaram que um em cada quatro casos de malária na Amazônia seja assintomático e, por essa razão, dificulte o controle dessa enfermidade.

NATAL SANTOS DA SILVA / USPMédicos sem fronteiras: pesquisadores visitam moradores de comunidades rurais e coletam amostras de sangue onde for precisoNATAL SANTOS DA SILVA / USP

Estima-se que 40% da população mundial, o equivalente a 2,4 bilhões de pessoas, esteja exposta à infecção, principalmente nas regiões tropicais e subtropicais do planeta. Todo ano surgem de 300 milhões a 500 milhões de casos novos de malária, a mais disseminada das doenças provocadas por parasita, que causam pelo menos 1,5 milhão de mortes, principalmente de crianças com menos de 5 anos na África, o continente mais atingido. No Brasil, o total de casos novos passou de 50 mil por ano há três décadas para o patamar, que se mantém até hoje, de 600 mil casos por ano. Esse salto se deve à abertura de estradas, da construção de hidrelétricas, das migrações internas, da formação de assentamentos rurais e do crescimento das cidades, que expressam os esforços em povoar o território nacional. Por essa razão é que a malária é hoje rara nos grandes centros urbanos e concentra-se na Amazônia, que responde por mais de 90% dos casos registrados na América do Sul.

Respostas variadas
Das pesquisas dessa equipe do ICB emergiu mais uma complicação: o organismo humano pode acionar mecanismos de defesa diferentes em resposta a uma cepa ou outra. A médica Mônica da Silva Nunes, do grupo de Ferreira, avaliou como um tipo de células de defesa, os linfócitos T, extraídos de amostras de sangue de moradores da zona rural de Acrelândia, município do Acre, reconhecia seis variantes de MSP-1 do P. vivax, a espécie que atualmente responde pela maioria dos casos de malária registrados no Brasil e no sul e sudeste da Ásia. Em paralelo, Melissa da Silva Bastos, sob a orientação de Sandra Moraes-Ávila, do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, investigava se as variantes da MSP-1 induziam a produção de anticorpos, que representam outra forma de defesa contra microorganismos. Comparando os resultados, elas concluíram que as regiões mais variáveis da MSP-1 são as que acionam as respostas mais intensas do organismo, produzindo mais células de defesa ou mais anticorpos. As regiões mais estáveis dessa proteína foram as que menos mobilizaram os linfócitos T.

Já os estudos em andamento com a MSP-2 de Plasmodium falciparum, feitos em conjunto com Kézia Scopel e Erika Braga, da Universidade Federal de Minas Gerais, sugerem que o fato de o organismo ter produzido anticorpos contra uma cepa dessa proteína não significa, necessariamente, que ele conseguirá se proteger contra essa cepa nas outras vezes em que ela aparecer. Outra verificação é que o sistema de defesa reconhece algumas variantes, mas quase não dá atenção a outras. “Muitas vezes uma pessoa simplesmente deixa de reconhecer a variante do parasita que a infecta”, diz Ferreira. “Portanto, somente uma parte do vasto repertório de variantes de MSP-2 é reconhecida pelo sistema imune de indivíduos expostos à malária no Brasil.”

E assim, produzindo mais células de defesa ou mais anticorpos, o organismo reagirá com maior ou menor rapidez na tentativa de conter o parasita, que chega ao fígado 30 minutos depois da picada do mosquito transmissor. Ali, no maior órgão interno do corpo humano, depois de dez dias, cada célula gera 40 mil outras e invadem as células vermelhas que circulam pelas veias e artérias. Durante a reprodução assexuada do parasita, que se passa no interior dessas células do sangue, a molécula de DNA, que carrega os genes, cria outra cópia de si mesma. Porém a molécula que está se formando e deveria ser idêntica à original pode se rebelar e formar uma alça, que fará com que alguns trechos de DNA sejam adicionados ou perdidos. Desse modo, as cópias de DNA saem maiores ou menores que a versão original. E assim se forma uma diversidade genética ainda maior que a que pode surgir durante a reprodução sexual, que se passa no mosquito. A cada dois dias cada célula do Plasmodium forma de oito a 32 células, que rompem as membranas das células vermelhas – é quando surgem os picos de febre alta.

Uma das peculiaridades desse trabalho é a estreita vinculação da atividade de laboratório com o campo. Mônica acompanhou as reações das células e dos anticorpos à MSP-1 trabalhando em um laboratório construído no Centro de Saúde de Acrelândia, município formado a partir de assentamentos rurais. Ela se mudou para lá em fevereiro de 2004 e até junho de 2005 estudou a malária trazida ou adquirida pelos 467 moradores de uma área rural a 50 quilômetros da cidade. Durante sua permanência nessa e em outras regiões da Amazônia, 63%  dos habitantes já tinham tido malária causada pelo Plasmodium vivax e 45,8% pelo P. falciparum.

Todo dia Mônica percorria os postos de saúde atrás de casos recentes de febre, que também poderia ser um sintoma de outras doenças, como dengue. Logo depois da época das chuvas, quando os rios baixam e se formam as poças que servem de criadouro para os mosquitos transmissores, ela colhia sangue de 10 a 15 pessoas por dia – cada infecção, como se veria pouco depois, causada por parasitas geneticamente diferentes entre si. Marcelo Ferreira, que coordena o grupo e morou em Rondônia por dois anos, faz o possível para seus alunos conhecerem a malária de perto.

NATAL SANTOS DA SILVA / USPPesquisadores vão à mata. Só param o percurso, muitas vezes feito de moto, quando surgem as queimadasNATAL SANTOS DA SILVA / USP

“Podemos ir muito mais longe no trabalho científico se não tomarmos a malária apenas como objeto de estudo, mas como algo que causa sofrimento humano”, diz. Para ele, é o trabalho de campo que poderia também permitir mais avanços originais e uma maior competitividade aos grupos de pesquisa brasileiros, já que o Plasmodium falciparum, mais comum na África, já está adaptado à vida de laboratório, enquanto o Plasmodium vivax, predominante no Brasil, ainda não pode ser cultivado in vitro.

Desde agosto de 2005 é o acreano Natal Santos da Silva, médico infectologista formado em São Paulo, quem representa a equipe da USP em Acrelândia. Ele percorre de moto de 150 a 200 quilômetros por dia, a maior parte em estradas de terra, para encontrar os moradores da zona rural de Acrelândia que contraíram malária. Tão logo os encontra, faz exames e coleta amostras de sangue ao longo de um mês com o propósito de avaliar a eficácia da cloroquina e da primaquina, os dois medicamentos mais usados contra o Plasmodium vivax, e entender por que a doença reaparece depois do tratamento, às vezes no mesmo mês. Dos 78 moradores de quem já reuniu material para estudo, 14 tiveram até quatro recaídas em um ano; uma criança de 2 anos, que não entrou no estudo mas que ele atendeu, já teve quatro malárias.

“Se conseguirmos mostrar um padrão de resistência do Plasmodium vivax podemos propor mudanças na forma de tratamento ou mesmo nas medicações”, comenta o médico, que trabalha com o apoio de uma equipe de controle da malária da Secretaria de Estado da Saúde do Acre. “Pode ser que os remédios não estejam mais funcionando da forma adequada, principalmente nas áreas de alto risco de transmissão.”

No Brasil, lembra ele, a dosagem padrão de primaquina – usado para combater as formas iniciais do Plasmodium ainda no fígado em conjunto com a cloroquina, que elimina o parasita nas células do sangue – é a metade da recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Silva chegou para ficar um ano, mas deve continuar muito mais e ajudar a criar uma base permanente de pesquisa, consolidando os vínculos com os moradores e o atendimento médico nesse município.

O Projeto
1.
 Aproximação genômica e pós-genômica ao estudo das malárias humanas por Plasmodium vivax e P. falciparum na Amazônia brasileira (nº 01/09401-0); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Hernando del Portillo – ICB/USP; Investimento
R$ 3.087.101,23 (FAPESP)
2. Aquisição de imunidade contra P. vivax: estudo longitudinal em comunidade rural da Amazônia (nº 03/09719-6); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenador Marcelo Urbano Ferreira – ICB/USP; Investimento R$ 124.145,18 (FAPESP) e R$ 20.000,00 (CNPq)

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