Numa salinha de laboratório do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), onde cabem poucos aparelhos e um microcomputador, maneja-se um instrumento de alto poder de resolução que é único no Brasil: o microscópio de força atômica aplicado à área biológica modelo Bioprobe. Uma técnica criada pelo pesquisador Ricardo de Sousa Pereira permite que o aparelho, instalado no laboratório do Departamento de Parasitologia, mapeie a superfície de células vivas e identifique com precisão os pontos nos quais ocorrem, por exemplo, fenômenos como a entrada e a saída de íons de cálcio. No caso, diz Pereira, “tal técnica baseia-se na imobilização de medicamentos bloqueadores de cálcio na ponta da sonda do aparelho”, o que deverá possibilitar o desenvolvimento de bloqueadores de cálcio mais eficientes para baixar a pressão arterial.
O projeto Utilização de Biossensores, Feitos com a Sonda do Microscópio de Força Atômica Aplicado à Área Biológica, para Mapear Canais de Íons na Superfície de Células, conduzido por Pereira e financiado pela FAPESP, começou em dezembro de 1998 e deve terminar em dezembro de 2001. O pesquisador salienta que a grande vantagem do aparelho é a possibilidade de visualizar material vivo: “Um microscópio eletrônico de varredura tem poder de visualização comparável ao de força atômica, mas o fixador usado na preparação da amostra mata as células”.
Segundo Pereira, as informações obtidas pelo Bioprobe permitirão desenvolver medicamentos mais eficazes, pois terão atuação bem localizada: os bloqueadores de cálcio só deverão agir nos canais de cálcio das células, por meio dos quais o mineral atravessa a membrana celular – o que implica alto grau de eficiência no bloqueio à entrada excessiva do mineral nas células. Outra vantagem é a quase ausência de efeitos colaterais, já que os medicamentos não deverão interferir em nenhum outro processo químico do organismo, nem mesmo nas reações ocorridas em outros pontos da célula.
Descoberta casual
O pesquisador conta que ele e seu colaborador Nivaldo Antônio Parizzotto, da Universidade Federal de São Carlos, descobriram casualmente a capacidade que o equipamento tem de visualizar material biológico vivo – células, tecidos, organelas etc.
“Em 1991, eu estava trabalhando no microscópio de força atômica do Laboratório de Fotônica da Faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chefiado pelo professor Vítor Baranauskas. Esse foi o primeiro equipamento do gênero na América Latina. Um dia, esquecemos nele uma amostra de fermento biológico de padaria, preparada numa lâmina com meio de cultura. No dia seguinte, ao tentarmos retirar a lâmina, notamos que a sonda do microscópio – chamada de cantilever – estava aderida na amostra, porque esta havia crescido em área e altura, durante a noite. Nesse ponto, desconfiamos que as células deveriam estar vivas. Elas se multiplicaram e o crescimento em altura envolveu a sonda do equipamento.”
As possibilidades da descoberta são amplas. Em julho último, por exemplo, o pesquisador publicou um artigo na revista Febs Letters, da Federação das Sociedades Bioquímicas Européias, em que demonstra como um biossensor feito com a sonda do microscópio pode detectar a absorção de moléculas de glicose por células vivas de Saccharomyces cerevisae – a levedura conhecida como fermento biológico de padaria. Segundo Pereira, “essa metodologia será interessante para os cientistas que estudam diabetes”.
Pereira revela que a publicação do artigo fez com que o diretor da Escola de Medicina da Universidade Yale, nos Estados Unidos, o convidasse a escrever uma revisão, a ser publicada na revista Biochemical Pharmacology: “Nela, foram incorporados outros interessantes resultados com biossensores, valendo a pena destacar a detecção de álcool etílico com um cantílever coberto com a enzima álcool desidrogenase tipo II – que transforma álcool etílico em glutaraldeído – e a detecção de espécies reativas de oxigênio usando-se as enzimas superóxido dismutase, que detecta íons superóxidos, e catalase, que detecta peróxido de hidrogênio, ou seja, água oxigenada”. O pesquisador diz ainda que cientistas da IBM fizeram da sonda do aparelho uma espécie de chip de DNA (ácido desoxirribonucléico), para identificar mutações em genes – as chamadas SNPs (polimorfismos simples de nucleotídeo).
Contra vírus
Outra aplicação possível comentada na revisão de Pereira é a imobilização de uma partícula de vírus na ponta da sonda do equipamento – o cantílever – para medir a força de adesão necessária para que o vírus infecte a célula: de posse desse dado, os cientistas poderão pensar em medicamentos que enfraqueçam essa força de adesão e evitem a infecção viral.O pesquisador chama a atenção para o fato de que os microscópios de força atômica convencionais, dos quais se valeu em 1991, começaram a ser comercializados em 1989. Usados sobretudo por físicos e químicos, servem, por exemplo, para comparar as imagens de diamantes sintéticos, empregados em brocas industriais, com as de diamantes naturais.
Pioneirismo
Foi só em 1995, conta Pereira, que surgiu o primeiro modelo aplicado à área biológica – o Bioscope, fabricado pela Digital Instruments, da Califórnia, trazendo acoplado um microscópio óptico invertido e mostrando sua grande vantagem: enquanto nos microscópios eletrônicos o fixador usado na preparação da amostra mata as células, o de força atômica pode analisar material vivo sem uso do fixador – tetróxido de ósmio ou glutaraldeído ou ouro evaporado. Essa vantagem se revela tanto em relação ao microscópio eletrônico de transmissão, que investiga o interior da célula, quanto ao de varredura, que faz a topografia do material.
Pereira avalia o equipamento que usa como o mais moderno do gênero. Lançado no final de 1998 pela empresa americana Thermomicroscopes, da Califórnia, o Bioprobe foi comprado em abril de 2000 depois de nove meses de negociação: seu preço inicial de US$ 135 mil baixado para US$ 100 mil, pois – como Pereira argumentou -, além de ser o primeiro e único vendido ao Brasil, o fabricante obteria propaganda indireta a cada vez que o pesquisador fizesse uma palestra ou tivesse seu trabalho em destaque.
Pelos muitos recursos do equipamento, Pereira o considera mais apropriado para a análise tridimensional de proteínas do que o microscópio de força atômica convencional usado pelo Laboratório de Luz Síncroton do Ministério da Ciência e Tecnologia, em Campinas: “O microscópio instalado no Síncroton é apropriado para a área de física e química, mas não permite a localização precisa do cristal de proteína, porque a busca é feita com a movimentação da sonda às cegas. O microscópio que uso é o melhor que existe para qualquer análise na área biológica – o que não quer dizer, de modo algum, que meu laboratório seja melhor que o Síncroton, uma referência em pesquisa”. A operação do microscópio requer uma estação de trabalho ligada a um computador e composta pelo microscópio, um televisor e um monitor de vídeo de alta definição.
Funcionamento
O aparelho usa apenas um feixe de radiação laser de baixa potência, que mantém a amostra viva. Esse feixe incide sobre a microestrutura chamada cantílever. Semelhante a um esquadro de desenho, o cantílever tem um lado que mede cerca de 100 micrômetros. Como cada micrômetro equivale a um milésimo de milímetro, esse lado tem a espessura média de um fio de cabelo.O cantílever é feito de duas lâminas – uma de sílicio embaixo, outra de ouro espelhado em cima. O laser incide na parte espelhada e é captado por uma fotocélula ou fotodiodo, componente eletrônico que transforma energia luminosa em elétrica. Os impulsos elétricos são levados ao computador, que os transforma em imagens digitalizadas.
Na parte de baixo do cantílever há uma ponta ou sonda, que varre a superfície e, à medida que percorre sua topografia, altera a direção do feixe de laser para atingir áreas diferentes da fotocélula. Esse deslocamento do feixe produz mais ou menos impulsos elétricos. A quantidade de impulsos enviados ao computador define áreas mais claras ou escuras, conforme a programação do software: no caso, convencionou-se que, quanto mais alta fosse a topografia, mais clara seria a imagem. O que se observa, numa tela de computador de alta definição, são imagens tridimensionais semelhantes a montanhas, num relevo mais ou menos acidentado, segundo as variações suaves ou abruptas na topografia da amostra. Acima do local reservado à amostra em análise, há no Bioprobe uma caixa plástica azul – o coração do aparelho – na qual está inserida uma pequena peça que contém o cantílever. Abaixo da amostra, em posição invertida, há um microscópio óptico: ele fica sob a amostra para captar tanto a imagem do material analisado quanto da posição do cantílever. Ao lado da amostra, uma câmera transmite ao aparelho de TV as imagens microscópicas do cantílever em movimento.
Busca do cálcio
Resta saber como Pereira constrói os biossensores com a sonda do microscópio, para mapear canais de íons na superfície das células. Tome-se como exemplo a procura de canais de íons cálcio, importante para o desenvolvimento de medicamentos para cardíacos. Ele põe na ponta do cantílever um bloqueador de íons cálcio: é um medicamento para o coração, que pode ser nifedipina ou um de seus derivados – nitrendipina, nicardipina ou amilodipina. Depois, passa o cantílever sobre células de Saccharomyces cerevisae – o fermento de padaria -, que servem de modelo experimental porque têm canais de cálcio similares aos das células humanas.
Para explicar o que acontece a seguir, Pereira lembra a existência das chamadas forças de Van der Waals: são forças muito fracas, que correspondem às ligações temporárias que se estabelecem sempre que dois materiais, vivos ou inertes, entram em contato. Por exemplo, quando caminhamos, surgem forças de Van der Waals entre nossos sapatos e o chão. É claro que são fraquíssimas, do contrário não sairíamos do lugar. O mesmo ocorre quando encostamos a mão numa mesa ou outro material.
Então, quando o bloqueador de íons cálcio acoplado à ponta do cantílever encontra um canal de cálcio, a afinidade entre os dois aumenta um pouquinho a intensidade da força de Van der Waals no local, puxando o cantílever para baixo e alterando a direção do feixe de laser que vai atingir a fotocélula. Alteração tão pequena não impede o cantílever de se desprender e continuar sua exploração da amostra. Quando ele sai do canal de cálcio, a força de Van der Waals diminui novamente e altera, em conseqüência, a direção do feixe de laser. Resultado: o microscópio produz um gráfico da variação dessas forças de interação entre o medicamento e os receptores na célula – os canais de cálcio procurados.
Fabuloso
Formado pela Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Pereira fez mestrado em Bioquímica na área de metabolismo de drogas na Unicamp, onde também doutorou-se em Química Orgânica na área de síntese de medicamentos. Fez pós-doutorado em microscopia de força atômica na Escola de Medicina da Universidade Yale (Estados Unidos). O pesquisador situa os estudos que desenvolve bem próximos dos de Hermann E. Gaub, do Departamento de Física da Universidade Técnica de Munique, Alemanha, e de Julio Fernandez, da Clínica Mayo, em Rochester, Estados Unidos. Ambos fazem medidas de força de interação entre moléculas biológicas.
Por sua metodologia de pesquisa em células vivas, Pereira foi palestrante convidado no IV Pharmatech (Congresso da Sociedade Brasileira de Tecnologia Farmacêutica – SBTF), em 1999, e teve um de seus resultados com modelagem molecular publicado na capa do livro de resumos do congresso. Já os resultados obtidos com o microscópio de força atômica mereceram citação no livro-texto Yeast Physiology and Biotechnology, de Graeme Walker, publicado na Inglaterra, e foram capa da revista norte-americana Applied Biochemistry and Biotechnology, informa Pereira.
Em outubro do ano passado, ele esteve nos Estados Unidos para aprender mais sobre as potencialidades do aparelho. Em abril, irá a Toronto, no Canadá, para conhecer um novo tipo de microscópio, o Somatoscope: “Esse fabuloso equipamento consegue visualizar o interior de células vivas com a resolução de até 150 angströns” (1 angström = 10-8 cm – é a unidade de comprimento da onda de luz). Ou seja, “na mesma linha do Bioprobe, de visualizar material biológico sem uso de fixador ou corante”.
O Projeto
Utilização de Biossensores, Feitos com a Sonda do Microscópiode Força Atômica Aplicado à Área Biológica, para Mapear Canais de Íons na Superfície de Células (nº 98/07526-6); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Coordenador Ricardo de Souza Pereira – Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Investimento R$ 78.240,42 e US$ 110.449,00