Uma mandíbula artificial com as mesmas características mecânicas do osso original, como resistência, rigidez e flexibilidade, feita com um material sintético concebido de modo inovador por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, no interior paulista, foi implantada com sucesso em novembro do ano passado em uma paciente com câncer. O material sintético utilizado na prótese cirúrgica é composto por um polímero de poli(metacrilato de metila) ou PMMA, um tipo de acrílico, reforçado internamente com fibras de carbono. “O implante é denso internamente e poroso na superfície, sendo que os poros são revestidos com um estimulador de crescimento ósseo”, diz o professor Benedito de Moraes Purquerio, coordenador do grupo de pesquisa e desenvolvimento de implantes e próteses cirúrgicas para reconstruções ósseas do Laboratório de Tribologia e Compósitos (LTC) da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da universidade paulista (leia mais sobre o assunto na edição nº 150 de Pesquisa Fapesp). O grupo de pesquisa já efetuou o depósito de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) para o processo de fabricação da estrutura porosa dos implantes. “O gel de carboximetilcelulose é o agente que induz a criação de poros na superfície do material, identificados pelas características dimensionais bem definidas, pela densidade e pelo fato de serem abertos e interconectados, o que propicia condições para ancorar um estimulador de crescimento ósseo”, explica o engenheiro de materiais Carlos Alberto Fortulan, que participa do grupo de pesquisa do LTC.
O estimulador de crescimento ósseo escolhido para revestir os poros é a hidroxiapatita, o mineral básico da composição dos ossos. Os poros do material têm dimensões que variam de 50 a 400 micrômetros, compatíveis com os processos de reparação óssea. “Os orifícios têm tamanho adequado para que a mucosa e os músculos possam penetrar e se ligar na estrutura, estimulando o crescimento de tecidos”, diz o cirurgião Edelto dos Santos Antunes, chefe do serviço de cirurgia bucomaxilofacial do Hospital Santa Tereza, de Petrópolis, no Rio de Janeiro, que está à frente dos implantes de mandíbula com o novo material. “A flexibilidade parecida com a do osso gera estímulos elétricos na superfície do material, que sinalizam para os tecidos ao redor, resultando em um campo adequado para a fixação do implante.”
Atualmente, quando há necessidade de reconstruir uma mandíbula, o cirurgião retira o osso de outros lugares do corpo e modela o enxerto, fixado com placa de titânio, durante a cirurgia. “Embora seja um osso do próprio paciente, quando retirado do local de origem ele perde a condição de um tecido vivo e fica sujeito a infecções e ao processo de reabsorção do organismo”, diz Antunes. Alguns meses depois, como grande parte do osso implantado é reabsorvida pelo organismo, o resultado é a piora do quadro obtido logo após a cirurgia. “Isso significa que não há previsibilidade nem estabilidade do resultado, duas características importantes para o sucesso de uma substituição de ossos ou parte deles por próteses cirúrgicas artificiais”, diz o cirurgião, que faz doutorado em engenharia mecânica na USP de São Carlos, orientado pelo professor Purquerio. Ou seja, ao longo do tempo ocorrem mudanças significativas no enxerto ósseo originalmente implantado, resultando muitas vezes na necessidade de cirurgias corretivas.
“As próteses cirúrgicas que desenvolvemos são feitas de forma personalizada, copiadas da geometria do osso que será retirado”, diz Antunes. O processo começa com a tomografia computadorizada, a partir da qual é criado um modelo tridimensional que reproduz a face do paciente. “Com o modelo produzido por prototipagem rápida, é feita uma prótese cirúrgica muito semelhante ao osso que precisa ser substituído”, relata o engenheiro mecânico Jonas de Carvalho, do LTC. Além do ganho estético, é possível prever o resultado da cirurgia.
Na operação realizada no ano passado, todos os músculos da mandíbula, retirada em função de um tumor que destruiu completamente o osso, foram suturados na prótese. “Quando a paciente acordou da cirurgia e colocou a língua para fora, já apresentava todos os movimentos normais de deglutição”, relata Antunes. A rápida resposta da paciente deve-se ao uso de um material que se aproxima das qualidades mecânicas do osso, o que melhora a relação do tecido com o material implantado.
Como nesse primeiro implante a principal preocupação do cirurgião era prender corretamente os tecidos à prótese e a língua à nova mandíbula, a colocação dos dentes ficou para outra etapa. “Estamos preparando outras cirurgias em que as próteses receberão, em pontos estratégicos, pequenos enxertos ósseos do próprio paciente onde serão feitos os implantes dentários”, diz Antunes. Com isso será reconstruída a parte de mastigação e estética dentária do paciente. As cirurgias são realizadas com apoio da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), parceira do hospital fluminense.
A Uerj e outras instituições, como a Universidade Católica de Petrópolis, a USP de São Carlos, o Centro de Pesquisas Renato Archer, de Campinas, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e a Universidade Federal Fluminense, se uniram para montar no Hospital Santa Tereza um centro de tratamento e pesquisa das deformidades craniofaciais. “O objetivo dessa iniciativa é, além da pesquisa, treinar os profissionais da área de engenharia aplicada à medicina dentro de todos os protocolos que desenvolvemos com esses novos materiais”, diz Antunes. “Entre as vantagens do uso de um material artificial homologado está o tempo menor de cirurgia e de recuperação do paciente”,ressalta. Para uma retirada completa da mandíbula com colocação da prótese de material artificial gastam-se cerca de duas horas e meia a cinco horas, enquanto pelo método tradicional de enxerto ósseo esse tempo pode ser estendido até por 10 horas, em média.
Republicar