Para que serve a universidade? O rascunho do anteprojeto da Lei de Educação Superior que o governo federal apresentou ao país dá uma resposta pouco ortodoxa a esta pergunta. O texto, submetido a intenso debate nos meses de fevereiro e março, é lacônico quando trata de atribuições intrínsecas das instituições de ensino superior, como a pesquisa e a produção de conhecimento, mas se debruça, ao longo de cem artigos, sobre conceitos como responsabilidade social (prestação de serviços à comunidade e controle externo das atividades acadêmicas), gestão democrática (participação de estudantes, funcionários e professores na escolha de dirigentes) e reserva de vagas para alunos de escolas públicas. A proposta provocou reações enérgicas. No rol dos entusiastas, destacaram-se os dirigentes de universidades federais. Explica-se: o projeto alivia o torniquete orçamentário a que elas foram submetidas nos últimos anos. Segundo dados da Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), no período de 1995 a 2001, as 54 instituições federais perderam 24% dos recursos para custeio (água, luz, telefone, compra de materiais) e 77% de recursos para investir em salas de aula, laboratórios, computadores e acervo bibliográfico. O projeto retira o peso das aposentadorias da folha de pagamento, garante um volume maior de recursos e concede autonomia financeira às instituições, embora não aponte de onde sairá o dinheiro extra ou indique de que forma os recursos serão repartidos entre as unidades. Censuras ácidas vieram das universidades e faculdades particulares, submetidas a normas restritivas que, entre outros mecanismos de controle, limitam a participação dos mantenedores a 20% dos assentos no conselho superior das instituições – os demais 80% caberiam a representantes de professores, alunos, funcionários e comunidade. Há um consenso de que as federais precisavam de socorro, assim como era esperada uma regulação mais rígida das particulares, após a extraordinária expansão do sistema na década de 1990. Mas a paixão com que esses dois tópicos foram tratados desviou a atenção do debate principal, que é o tipo de universidade proposto pelo Ministério da Educação (MEC).
A crítica principal ao anteprojeto é que a universidade brasileira é muito mais complexa do que supõe o arcabouço jurídico traçado pelo governo federal. “Se era para resolver o problema das federais, o MEC poderia ter apresentado um projeto de lei orgânica das universidades. Uma reforma universitária não é urgente e merecia uma reflexão muito maior”, diz o reitor da Universidade de São Paulo (USP), Adolpho Melfi. Marcos Macari, reitor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), concorda: “A proposta é recheada de boas intenções, como a autonomia de gestão das universidades federais e o aumento do número de estudantes matriculados em instituições públicas. Mas tem um texto ruim e prolixo, que trata de assuntos já abordados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação e ignora a realidade de universidades públicas estaduais e municipais”. Carlos Henrique de Brito Cruz, que está deixando a reitoria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para assumir a diretoria científica da Fapesp, complementa: “Falta estratégia. A proposta não contempla a produção do conhecimento e valoriza demais a extensão comunitária, numa visão utilitária que apequena a universidade”.
No pior dos cenários, as universidades correm o risco de canalizar recursos e esforços para cumprir as metas de ampliação de vagas e as novas tarefas de assistência à comunidade, em sacrifício da atividade de pesquisa. O titular do MEC, Tarso Genro, rejeita essa possibilidade. Lembra que a reforma estabelece a exigência, a ser cumprida num prazo de seis anos, de um corpo docente com no mínimo 50% de mestres e doutores em sala de aula e de pelo menos um terço em regime de dedicação exclusiva. E afirma que está prevista a destinação de recursos específicos no orçamento para projetos de qualidade e expansão do ensino e pesquisa. Repetidamente, Genro se disse disposto a corrigir ambigüidades na próxima versão do projeto, que será divulgada em meados de abril para uma nova rodada de discussões. “Os únicos pontos inegociáveis são a autonomia, a expansão das vagas sem perda da qualidade e as cotas para alunos das escolas públicas”, afirma o ministro. “Na nova versão do texto, deverá ser mais explicitado o papel da pesquisa como atividade intrínseca das universidades”, concede Fernando Haddad, secretário-executivo do MEC.
Há sinais de que outros pontos, como a genérica sujeição de fundações de apoio às normas do anteprojeto, também serão revistos. Essa exigência motivou uma moção do Conselho Superior da FAPESP, assinada pelo presidente Carlos Vogt, que foi encaminhada ao MEC: “Um ponto em particular chamou a atenção do Conselho Superior da Fapesp: aquele, no inciso III do artigo 1º que, mesmo modalizado sob a forma do ‘no que couber’, submete as instituições de fomento à pesquisa, de modo generalizado e, segundo nossa avaliação, indevido, ao tratamento do mesmo anteprojeto de lei, que por ser único e por tratar de matéria tão diversa corre o risco de ser perigosamente abrangente ou ser particularmente inócuo em matéria que tem suas especificidades e que, no caso das FAPs, já constituem objeto de regulação constitucional e legal em muitos dos estados do país”. Numa reunião realizada na USP no dia 11 de março, o secretário Fernando Haddad garantiu que a intenção não era controlar as fundações e afirmou que o ponto será retirado. “O projeto amadurece e está melhorando”, diz, otimista, o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ennio Candotti. O texto modificado deverá incluir temas esquecidos, como dispositivos sobre educação a distância e assistência aos estudantes. Da mesma forma, deverá haver algum refresco para as faculdades particulares. A participação de capital estrangeiro nessas instituições vai ser ampliada de 30%, no texto atual, para até 49%. A mudança faz parte da estratégia para tornar o anteprojeto mais palatável ao Congresso Nacional, que apreciará a proposta definitiva a partir de junho.
“Corporações internas” – A essência do projeto, contudo, deverá prevalecer, com impacto sobre o cotidiano das universidades. Um dos pontos mais polêmicos é a criação do conselho comunitário social, composto por membros da sociedade civil, do governo e da própria instituição, “responsável pela supervisão e acompanhamento de suas atividades” e pela elaboração de “subsídios da política geral da universidade”. O temor é que o órgão tolha a autonomia acadêmica, colocando a instituição a serviço de interesses de grupos que nem sequer têm noção das complexas tarefas de uma universidade. Mesmo quem defende o projeto vê inconveniências. “Um tal conselho não pode ter a função de supervisionar as atividades da universidade, como está indicado na proposta ministerial”, afirma Ana Lúcia Almeida Gazzola, reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Para o MEC, o medo é infundado. O objetivo seria criar “vasos comunicantes” entre a universidade e a comunidade, a exemplo do que acontece em instituições de outros países. O ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza considera que o problema não é o conselho em si, mas “a ameaça de que seja dominado por corporações internas”. A Associação Brasileira de Ciências (ABC) propôs ao MEC a substituição do conselho comunitário social por um conselho de desenvolvimento, com participação externa e da comunidade e atribuições análogas às dos curadores de instituições norte-americanas e européias, que dão legitimidade externa à autoridade dos dirigentes universitários. Outro mecanismo de controle proposto é o plano de desenvolvimento institucional (PDI), que as universidades deverão apresentar a cada cinco anos, com objetivos e metas de ensino, pesquisa e extensão.
As atividades de extensão e de apoio à comunidade conquistam relevância inédita no texto do MEC, voltando-se à formação de quadros profissionais “cujas habilitações estejam especificamente direcionadas ao atendimento de necessidades do desenvolvimento econômico, social, cultural, científico e tecnológico regional, ou de demandas específicas de grupos e organizações sociais, inclusive no mundo do trabalho, urbano e do campo, voltados para o regime de cooperação”. “Até este projeto, julgávamos que o interesse social ou a responsabilidade social das instituições de ensino superior no seu conjunto consistiam na formação de pessoal qualificado, por meio do ensino de qualidade, no desenvolvimento do conhecimento, por meio de pesquisa, e na extensão, isto é, na promoção do acesso ao conhecimento que elas detêm e produzem aos setores da sociedade que dele possam e desejem se beneficiar”, observou a ex-secretária de Política Educacional do MEC Eunice Durham. “Na nova concepção, adiciona-se uma série de outras finalidades, formuladas de modo ambíguo, subsumidas no termo responsabilidade social”.
Outras críticas referem-se aos métodos propostos, não aos objetivos. O texto institui a eleição direta para a escolha de reitor. Hoje tais eleições têm caráter apenas indicativo. O Conselho Universitário, composto por 70% de representantes de professores, determina os nomes (quase sempre respeitando o resultado das urnas) e os encaminha ao chefe do Executivo, a quem cabe fazer a nomeação. A democracia direta, observou o ex-reitor da USP Jacques Marcovitch em recente conferência no Instituto de Estudos Avançados da USP, distanciaria a escolha de seu principal objetivo, que é selecionar para o cargo alguém com mérito e capacidade administrativa. E abre as portas para a “partidarização da academia”. Marcovitch coordenou um estudo que levantou o funcionamento do sistema eleitoral de 27 importantes universidades estrangeiras. Conclui que o ideal é um meio-termo entre a eleição direta e a escolha feita a portas fechadas por um conselho nem sempre representativo. “O cenário da eleição direta para reitor teria uma porta escancarada para o aparelhamento da universidade pública. Por ela entrariam grupos ideológicos em busca de fortalecimento. Grupos de direita, como no tempo da ditadura militar, ou grupos de vários matizes, como nos dias de hoje. Nocivos, todos, ao interesse universitário, porque visam em primeiro lugar à política e não às questões relevantes da academia”, diz Marcovitch. O ministro Tarso Genro considerou exagerada a reação da comunidade acadêmica a tal preceito. Argumenta que os conselhos universitários terão autonomia para definir as regras do processo eleitoral e evitar abusos. Para o reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz, a proposta rompe um equilíbrio altamente desejável. “A universidade pertence à sociedade, não aos grupos corporativos que a compõem. O chefe do Executivo, que foi eleito pelo povo, deveria manter a prerrogativa de fazer a nomeação, depois de ouvida a comunidade acadêmica”, afirma.
A proposta de reservar 50% das vagas para alunos de escolas públicas (e estabelecer cotas para afrodescendentes e indígenas, obedecendo a sua proporção na população de cada estado) traz o receio de que o mérito deixe de nortear o ingresso no ensino universitário e a qualidade de ensino seja sufocada por estudantes com severíssimas lacunas de formação. “O ideal seria estabelecer a meta principal e dar autonomia para as universidades cumprirem os objetivos”, diz o reitor Adolpho Melfi, da Universidade de São Paulo. “Poderíamos, por exemplo, identificar os melhores alunos das escolas públicas logo no início do ensino médio, investir na sua formação e ajudá-los a ingressar pela via do vestibular”, afirma Melfi. Ele cita o exemplo da obrigatoriedade legal de vincular 30% das vagas das universidades paulistas a cursos noturnos. “Cada instituição adequou-se de forma autônoma. A lei não disse como elas deveriam fazer, apenas definiu as metas”, diz. Para o presidente da SBPC, Ennio Candotti, a questão das cotas está mal colocada. “No cômputo geral, não estamos muito longe da marca dos 50% de vagas para alunos de escolas públicas. A questão é que, nas carreiras mais disputadas, o índice é irrisório, enquanto em cursos como o de pedagogia é altíssimo. É preciso encontrar meios de dar acesso a todas as carreiras.” A questão das cotas suscita uma coleção de críticas colaterais. Uma delas é que o anteprojeto silencia sobre a raiz do problema, que é a deficiente qualidade dos ensinos fundamental e médio. “É um equívoco fazer a reforma universitária sem vinculá-la diretamente a uma reforma do ensino básico. Não há universidade boa com ensino médio ruim”, pondera o senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque (PT-DF). Igualmente, o projeto ignora os cursos noturnos, essenciais para os estudantes que necessitam trabalhar durante o dia. “Isso é revelador da ausência de um debate prévio sobre a universidade de que o país precisa. Isso está acontecendo agora”, diz Candotti.
Também se diz que o projeto é tímido ao fixar metas e frouxo na cobrança de desempenho. No artigo 3º, inciso VII, o texto estabelece como meta que as universidades públicas sejam responsáveis por 40% das vagas do sistema de ensino superior até 2011. Até meados da década de 1960 as instituições públicas eram responsáveis por 65% das matrículas do ensino superior e as instituições de ensino privado ficavam com 35% das matrículas. O quadro hoje inverteu-se, com as universidades públicas responsáveis por 30% das matrículas e as instituições privadas de ensino com 70%. Comparado à realidade de outros países, o objetivo de alcançar os 40% não é muito ambicioso. Nos Estados Unidos 77% das matrículas estão vinculadas a instituições públicas. Nos países da Europa passam dos 90%. “Se o projeto tomasse como objetivo, por exemplo, assegurar que em 15 anos 50% dos brasileiros entre 18 e 24 anos freqüentassem uma instituição qualificada de ensino superior, 50% dos quais em instituições públicas, haveria um rumo”, escreveu Brito Cruz em artigo no jornal Folha de S. Paulo. “Digamos que, nos mesmos 15 anos, se desejasse, por exemplo, ter 15 universidades incluídas na lista das 500 mais importantes do mundo, em vez das quatro que ali constam. Seria desejável termos também 50% das vagas nas instituições públicas federais no período noturno em vez dos 25% que há hoje. Estabelecidas as metas, seria necessário especificar os meios para atingi-las. Depois de tudo isso, chegaria, aí sim, o momento de comparar alternativas, de acordo com o resultado e com o custo, e então criar os instrumentos legais para que o Estado brasileiro persiga e atinja as metas e gere os meios para tal.”
Há quem duvide que o governo consiga atingir as metas que estabeleceu. Ocorre que o projeto prevê, na expansão almejada, a reprodução do modelo das universidades federais, com pesquisa, ensino, extensão. “É um modelo caríssimo e dificilmente haverá dinheiro para isso”, diz o reitor da Unesp, Marcos Macari. “Poderíamos ampliar muito mais o acesso ao ensino superior propondo modelos diferentes, como o das faculdades tecnológicas. E não se trata de reduzir a qualidade. Hoje muitos estudantes passam cinco ou seis anos numa universidade e depois são subaproveitados pelo mercado de trabalho. Poderiam ter feito um curso mais curto para, mais tarde, recorrerem a uma especialização”, afirma. “De que tipo de vagas estamos falando?”, indaga o reitor da USP, Adolpho Melfi. “De cursos com cinco anos de duração, ou com duração menor, ou de faculdades tecnológicas? É bom que existam modelos diferentes, mas eles não são previstos no projeto”, aponta.
“Falta glamour” – A trajetória da reforma foi acidentada. No primeiro ano do governo Lula, a reforma começou a ser debatida, mas voltou à estaca zero com a troca de guarda do MEC, quando Tarso Genro substituiu Cristovam Buarque. Recentemente, o governo lançou mão de medidas provisórias para realizar mudanças importantes, a exemplo da alteração no sistema de avaliação do ensino superior e, mais recentemente, do Programa Universidade para Todos (Prouni), iniciativa inédita que garante bolsas de estudo em universidades particulares para estudantes com renda familiar baixa. Só agora conseguiu apresentar um pacote de mudanças. O desafio do governo é convencer a sociedade e o Congresso de que seu heterodoxo modelo de universidade é o mais adequado para o país. Para o físico Luiz Davidovich, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Ciências, a universidade precisa ser reformada a fim de superar obstáculos como os currículos obsoletos, o baixo número de jovens matriculados no ensino superior, a escassa demanda por profissões qualificadas e as deficiências dos ensinos médio e fundamental. Mas, diz ele, o grande erro é discutir estruturas burocráticas antes de definir o que se espera das instituições. “Falta glamour ao debate da reforma universitária”, afirma. “Nos debates sobre a universidade dos anos 1950 as discussões não eram sobre formas de administração, financiamento ou eleições de reitor, e sim sobre novos modelos acadêmicos. Precisamos recuperar essas experiências renovadoras e sair da discussão burocrática.”
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